Allan in Horrorland escrita por Yuna Aikawa


Capítulo 1
O Coelho


Notas iniciais do capítulo

Aqui vamos nós novamente, deste vez numa trama que está em minha cabeça a anos e nunca foi colocada no papel... Senhor, espero ainda saber escrever.



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A princípio achei que estava delirando, aquele coelho andava sobre duas patas, estava vestido em farrapos e trazia correntes nos pulsos subnutridos - um prisioneiro fugitivo. Ele percebeu com seus olhos bem vermelhos que eu o observava e veio cambaleando rapidamente em minha direção, implorando por ajuda, falando rápido demais, baixo demais. Comecei a rir em meio àquela loucura, a batida em minha cabeça foi assim tão forte para eu estar alucinando?

— Por favor, senhor, me escute! - Insistiu o animal - Alguém precisa dar fim a tirania daquela mulher! Por favor, me ajude!

— Acalme-se, senhor coelho. Você é apenas fruto de minha imaginação, logo logo ficaremos bem.

— Não, senhor, você não entende! Se ela me encontrar, ela vai…!

Um raio, seguido por um forte trovão, interrompeu o pequeno. Eu podia sentir seu coração disparado, seu medo. Por fim, ele apenas olhou em meus olhos e partiu, numa espécie de corrida desajeitada para lugar nenhum. Pedi para ele esperar, mas o animal não passava de uma mancha distante no horizonte. Consultei meu relógio, agora quebrado pelo queda, para saber quanto tempo passei desacordado, mas os ponteiros estavam parados. Soltei algumas palavras indecentes pela perda e, por fim, decidi voltar para casa, estava encharcado, mau-humorado e sentia minha cabeça latejando - um completo inútil para qualquer lição de piano.

A chuva estava diminuindo enquanto eu fazia o trajeto de volta, agora sem pressa, e, em meio as minhas palavras chulas e reclamações, mais uma vez ele apareceu. Aquele pêlo agora encardido e pesado pela chuva veio em minha direção, estendendo os bracinhos magros e acorrentados para mim numa súplica por ajuda, antes de cair no chão e ficar ali, imóvel.

Corri em sua direção, implorando sem motivo para ele ainda estar vivo, e o peguei imediatamente no colo. O peito daquilo que até então eu considerava uma alucinação ainda se mexia, numa respiração lenta e pesada. Cobri seu corpo, tão pequeno e leve, com meu cachecol molhado e o levei para casa, sem saber ao certo o que fazer com um coelho falante cheio de machucados e cicatrizes.

Com muita dificuldade o soltei das correntes, joguei fora o trapo que ele vestia e o banhei em água morna. Em seguida, ainda incrédulo, fui atrás de curativos e um lugar quente e seco para deixá-lo repousar.

Haveria uma explicação racional quando o pequeno acordasse, tinha que ter.

Contudo, dois dias se passaram sem que o animal recobrasse a consciência. Dois dias de aflição e curiosidade enquanto trocava seus curativos e o mantinha aquecido. Entretanto, na terceira noite, quando voltava para casa depois de um longo dia, lá estava ele, em cima da cama com suas orelhas atentas, encarando-me com seus enormes olhos vermelhos e uma expressão alerta no rosto. Percebi seu alívio quando me viu entrar, num estranho esboço de sorriso que coelho algum deveria fazer. Percebi que não sabia o que dizer, queria muito que o pequeno despertasse, mas não imaginei o que faria quando ele abrisse os olhos.

— Obrigado, senhor - Sua voz ainda era baixa, cautelosa - obrigado por me salvar.

— Quem é você? - Foi a única pergunta que consegui formular em meio a tantas dúvidas.

— Senhor, há muitos anos não possuo mais identidade. Dai-me de comer, por favor.

Imediatamente fui para a cozinha, ou pedaço da casa que assim considerava, uma vez que morava num cubículo escuro com alguns móveis e um cômodo separado para o banheiro, e preparei uma sopa quente com o que tinha na geladeira. Passamos algum tempo em silêncio enquanto comíamos, mesmo comigo querendo conversar com aquele pequeno ser que me fazia companhia.

— Havia me esquecido como era fazer uma boa refeição - Disse por fim - Senhor, tenho-lhe uma enorme dívida.

— Não se preocupe com isso - Sorri - Mas eu gostaria de saber de onde você veio, senhor coelho, quem é “ela”, como você consegue falar?

— São muitas perguntas, senhor.

“Vim de um lugar terrível”, começou, “um lugar onde as trevas se instalaram há muito tempo, onde os rios secaram e nada mais cresce ou vive. Vim de uma terra distante onde já não há mais cor ou qualquer tipo de felicidade, senhor. Uma terra de tristeza e agonia, onde seus habitantes são escravos e vivem em função de servir a rainha. Uma terra de insanidade onde eu fui transformado de nobre à escravo por trazê-la até nós. Ela é a Rainha Bones, o ser mais vil que existe, que transformou nosso país das maravilhas de um país de horror, de caos.Todos nós falamos lá, senhor, todos nós somos loucos lá.”

“Rainha Bones”, sibilei, tentando lembrar onde já havia ouvido coisas parecidas e surreais assim antes.

“Precisamos de ajuda, senhor!”, continuou, “por ser pequeno eu consegui escapar, mas temos um país inteiro sofrendo. O senhor tem que me ajudar, senhor! Por favor, impeça a rainha!”

Aquilo estava realmente confuso para mim. Impedir quem, o que e onde? Que país mágico era aquele onde os animais falavam? Seria um país de coelhos escravizados? Confesso que não queria, mas a curiosidade era intensa demais.

— Allan - Disse por fim - Meu nome é Allan e é claro que vou te ajudar, senhor coelho.

— Senhor Allan! - Seus olhos brilhavam - Ah, muito muito obrigada, senhor!

Não tinha certeza se havia tomado a decisão certa. Quer dizer, queria muito descobrir sobre esse país de onde surgiu o coelho falante, mas o que um órfão classe média de 16 anos pode fazer? Ainda mais politicamente. Tocar piano para agradar a rainha enquanto imploro pela vida dos animais? E se a própria rainha for um coelho? Não, aquilo estava errado, eu deveria ter voltado atrás com minha palavra, não sabia com o que estava lidando.

Mas, mesmo com minhas dúvidas, concordamos que ele me levaria à “toca do coelho” no dia seguinte, uma passagem antiga onde ele diz ter cometido o maior erro de sua vida de ter mostrado o caminho”.

Partimos antes do sol nascer, em direção a parte nobre da cidade, onde antigos casarões se mantinham orgulhosamente há séculos. Fomos até a mansão Liddell, abandonada há anos, onde pulamos o muro e seguimos até o enorme bosque aos fundos que os antigos donos humildemente chamavam de quintal. Passamos uma hora procurando a árvore certa, a árvore “de cem anos atrás” que protegia a tal passagem.  

Por fim, sob um enorme tronco apodrecido, achamos o buraco tão carinhosamente chamado de “toca”.

— Pule - Disse o coelho - Pule para a morte certa, senhor Allan.

— O quê?

Mas antes mesmo de entender o que estava acontecendo, senti duas patas em minhas costas e, com a lama cedendo sob meu peso, quando percebi estava em queda livre numa espécie de túnel negro infinito.


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