Abstrato escrita por roux


Capítulo 3
Sol da Manhã




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Eu estava com o capacete na cabeça e isso impedia o vento de cortar meu rosto. Mas meus braços ardiam levemente. A velocidade que Guilherme dirigia a moto era em excesso. Eu não tinha medo. Para quem chegou tão perto da morte, isso não era nada, porém me segurei em sua cintura com mais força. Guilherme estava ultrapassando carros e até mesmo outras motos. Eu sabia que ele estava sorrindo e adorando a diversão que tinha em cima daquela moto pelo jeito como sua barriga e seu corpo se contorciam de felicidade e com as risadas que ele dava. Será que estava achando que eu estava assustado?

A moto percorreu por bastante tempo. Eu já nem sabia onde estávamos. Olhei em volta, mas não conhecia aquele bairro. Era mais vazio que o habitual bairro em que nós morávamos.

Ele parou a moto e apoiou os pés no chão. Eu soltei seu corpo e senti meus braços meio doloridos. Passei tempo demais pressionando os mesmo em volta daquele corpo magro e forte. Eu corei ao pensar nisso. Respirei fundo e desci da garupa da moto. Arrancei o capacete. Meus cabelos estavam amassados, então passei as mãos pelo mesmo e baguncei. Olhei para Guilherme no momento em que ele arrancou o capacete da cabeça e sorriu pra mim.

— E aí, curtiu? É tão divertido, né? Eu me sinto livre quando estou em cima dessa belezinha aqui. — Ele bateu a mão no guidão da moto. O sorriso debochado em seus lábios.

Eu sorri e olhei para frente. O mar lá embaixo. O sol que havia acabado de subir lá ao longe. Estávamos onde?  Ele havia parado no acostamento da avenida. Porém eu via que tinha uma trilha para descer direto para a praia. Não havia barracas, nem pessoas aquela parte era meio vazia. Nunca tinha vindo até aqui.

— Onde estamos? — Eu perguntei ignorando a sua pergunta. Eu tinha gostado sim, mas por outros motivos que não iria contar pra ele.

— É você que vive na cidade há mais tempo que eu! — Ele disse rindo e então saltou da moto.

— Como eu já te disse. Eu não costumo sair de casa. E muito menos para o outro lado da cidade. Meio vazio aqui, né? — Eu perguntei olhando em volta. Não havia pessoas. Apenas os carros passando próximo a gente na avenida.

— É vazio sim. E foi por isso que eu escolhi aqui. Vi esse lugar na primeira vez que vim para a cidade e achei bonito, muito bonito. — Ele falou e se se encostou à grade de proteção. Olhou para baixo. Estava olhando a praia.

Eu o imitei.

— Eu não queria vir para essa cidade, sabe? — Ele me disse. E eu não perguntei nada. Ele apenas me disse. Sentiu a necessidade de me contar, talvez. Estava precisando conversar com alguém. Ele me via mesmo como um amigo. Pois eu fazia isso com o Lucas ou com a Pandora. — Eu tinha a minha vida na cidade da onde eu vim. Namorado. Faculdade. Eu havia acabado de ser aprovado. Porém meus pais resolveram mudar, investimentos.

Ele pausou e eu fiquei esperando. Eu não iria dizer nada ainda. Não sabia o que dizer, e também sabia que seu discurso não havia acabado. Ele apenas estava pensando se deveria dizer.

— Eles resolveram mudar e só me avisaram quando tinham feito o negócio. Então me trouxeram até aqui para mostrar tudo. Eu achei tudo muito bonito. Porém sabe quando você não se sente pertencente a determinado lugar? Não era o meu lar. Eu passei há primeira semana só saindo pela noite. Pegando a minha moto e indo procurar lugar divertidos para mim. Conheci alguns caras, e fiquei com eles. E me sinto um escroto por isso. Porém eu preciso esquecer o Manuel. Ele terminou comigo, me disse que não iria aceitar minha mudança.

— Mas são apenas quatro horas até... — Eu falei e então percebi meu erro. Ele não havia me dito onde morava. Eu descobri isso só porque meu amigo é um fofoqueiro. Calei a boca.

— Eu sei, apenas quatro horas! — Ele disse. Não se importou que eu soubesse, ou não se tocou nisso. — Porém ele disse que não daria certo. Que eu iria acabar fazendo algo de errado, ou ele. E então terminou comigo.

Eu fiquei olhando para ele.

— Eu sinto muito. — Eu sussurrei.

— Eu também sinto. Mas foi ele que decidiu assim. Ele escolheu dar um fim a nós. E agora eu estou tentando esquece-lo. — Ele me disse sorrindo sem jeito.

— Eu percebi. Você estava aos beijos com um ontem. É sempre assim você acaba de conhecer o cara e leva para transar na sua cama? — Eu falei e só depois percebi que tinha um tom de reprovação. Não queria que ele achasse que eu estava enciumado.

— Eu faço isso. — Ele gargalhou. — Quero dizer, estou fazendo isso na última semana. Eu não sei por que você não tem amigos aqui. Eu já achei cinco veados diferentes. Isso é, se você não tiver amigos por achar que não existem gays aqui.

— Não. Claro que não! — Eu resmunguei. — E você é bem rápido, já fodeu cinco rabos diferente em apenas uma semana? Ficou dois dias sem para descansar a rola?

Ele riu.

Então trouxe sua mão até a minha nuca e me faz um cafuné. Eu estremeci com seu toque e fiquei quieto.

— É até mesmo os garanhões precisam de folgas. — Ele riu mais alto e então se virou para mim. — Eu apenas quero esquece-lo. Às vezes fazemos loucuras quando queremos mesmo algo.

Eu ouvi aquela frase e fiquei pensativo por um tempo. Ele tinha razão. Fazemos loucuras quando queremos algo com todo o nosso ser. Eu mesmo tomei remédio para dormir e me joguei no mar. Eu achei que iria acabar com meu sofrimento e morrer sereno. Mas tomei muito remédio, fez o efeito contrário. Fiquei hiperativo. Não conseguia nadar. Eu me assustei e comecei a afogar... Até que me salvaram.

— Você tem razão. Fazemos... — Eu disse baixo e então virei para ele. — Porém não vai ser ficando com um cara a cada dia que você vai esquecer seu ex-namorado. Isso vai doer um pouco mais até passar.

Ele me olhou nos olhos. Aquele azul era tão bonito. Eu me vi preso naqueles olhos azuis então fiz força e me libertei. Olhei para o céu. Era azul também.

— Eu andei culpando os meus pais pelo termino. Porém eles não têm culpa disso. Apenas eu e o Manuel. — Ele diz baixo. Então balança a cabeça em negativa. Ele sorri.

— Ninguém tem culpa disso. A maioria das vezes nós estamos sempre procurando alguém para culpar. Mas as coisas são apenas consequências de outras coisas que às vezes não conseguimos evitar. — Eu digo olhando para ele.

— Você é sempre assim? É sempre inteligente? Diz coisas inteligentes? — Ele me pergunta segurando o riso.

— Eu? Eu não sou inteligente e nem digo coisas inteligentes. Estou apenas dizendo o que sei que você quer ouvir. — Eu falo irritado.

— Ei, calma! — Ele diz ainda rindo. — Eu gosto disso. Você está tentando me fazer sentir melhor. E eu gosto disso.

Eu o encaro. Sinto vontade de bater nele. Mas por que sinto isso? Eu nunca senti isso por ninguém, eu nunca senti vontade de bater nem em quem me humilha.

— Mas eu vou confessar uma coisa para você. — Ele fala baixo. — Se eu não tivesse vindo para cá, eu jamais teria conhecido você. E jamais estaria aqui. Você é uma das pessoas mais incríveis que eu já conheci.

— Nós só conversamos duas vezes. E você mal me conhece! — Eu rebato.

— O pouco que conheço é suficiente para me fazer querer conhecer ainda mais. Eu o vejo como um amigo. E sei que quero que me veja assim também. — Ele diz sorrindo e me puxa. Ele me abraça em seu corpo e eu sinto minha cabeça em seu peito. Ele é cheiroso.

— Eu também... — Sussurro. E é verdade. Eu quero muito ser amigo dele. Gosto como me sinto quando estou com ele. É como se eu pudesse falar o que quiser. Porque ele vai olhar rir ou sorrir e vai ficar tudo bem.

— Você então quer ser meu amigo? — Ele gargalha. — Eu fico muito feliz. Porque eu estive observando você a um bom tempo. E eu quero muito jogar aqueles jogos maneiros que você fica jogando em seu quarto. Você parece um maluco!

Eu sinto meu rosto queimar. — Ei, você esteve me espionando? — Eu pergunto indignado, porém rio. Eu realmente pareço um maluco com aqueles óculos de realidade aumentada. — Eu acho que você pode ir jogar em casa. Os meus pais adorariam saber que eu tenho um amigo.

— Eu vou adorar saber que vai me levar a sua casa porque me acha um amigo. — Ele sorri. — Você tem irmãos? Mesmo sem amigos ter um irmão já ajuda muito. Eu tenho três. O João, a Karen e a Carol. Eles são os meus xodós. Eu não saberia viver sem eles.

— Eu tenho uma, mas ela é bebê! — Eu digo sério. E me sinto mal. Ele parece gostar tanto dos irmãos, e eu não suporto ficar no mesmo ambiente que a Marcela por muito tempo.

— Sério? Eu adoro crianças! — Ele diz. Eu olho para cima sem afastar meu rosto de seu corpo e o pego sorrindo. Volto a olhar para o mar novamente.

— Eu não curto muito. — Falo sério. — Prefiro jogos!

— Eu prefiro a realidade. É aqui que tudo acontece. — Ele fala. — Coisas ruins ou coisas boas, mas é aqui. E eu te garanto uma coisa. Você vai gostar da realidade quando eu apresentar ela realmente para você.

Eu fico em silêncio. Então resolvo mudar o assunto.

— Me conte como era sua a vida antes de vir pra cá.

— Eu sou judoca. Então vivia na academia treinando. Foi lá que eu conheci o Manuel. Nós sempre fomos amigos, até que aconteceu. Eu percebi que quando eu olhava sentia vontade de beijar a boca dele. — Ele falou rindo. Eu desconhecia essa sensação. Não que eu não sentisse vontade de beijar a boca de alguém, mas eles são sempre atores de tevê. — Nós começamos a namorar ainda muito cedo, e foi quando eu descobri o mundo lgbt, sabe? E foi tão divertido. Eu passei a ser eu de verdade. Festas. Maconha. Bebidas. Claro que tudo muito consciente, eu continuei estudando, eu passei no vestibular. As coisas eram boas para mim lá. Eu gostava!

— Você me disse que era um loser. — Eu falei.

— E eu era. Eu nunca ganhei uma luta de judô. — Ele ri.

Então eu entendo a piada e faço a associação. Não rio. Realmente achei que ele era um fracassado, mas como sempre estive errado. Esse cara jamais seria um fracassado na vida. Ele jamais deve ter sofrido bullying ou ter sido ridicularizado na frente da escola. Era só olhar para ele para saber isso.

— Mas e você? Como é a sua vida por aqui? — Ele pergunta.

— Péssima. Eu vivo em casa. E só! — Eu digo de uma vez. Resumo tudo de uma vez. Não gosto de falar sobre mim. E é isso que meu psicólogo está tentando trabalhar comigo. Eu preciso mudar isso.

Ele fica em silêncio então depois fala baixo. — Você me disse que tentou se matar, por quê?

Eu sinto o coração gelar.

— Eu não falo sobre isso! — Respondo seco.

— Eu...

— Não. Eu não falo disso com ninguém! — Respondo mais seco e me afasto dele.

— Me desculpa, eu....

— Não precisa se desculpar. Eu só não falo disso com ninguém. — Respondo e olho para baixo, não quero que ele veja meus olhos.

Eu não falo com ninguém sobre as razões para eu ter querido morrer. Não falo e não quero falar. As pessoas me julgam por querer morrer. Elas me julgarão ainda mais pelo motivo que me levaram a querer morrer. Eu respiro fundo. Não vou começar a chorar aqui. Não vou.

— Está bem. Eu... Eu tenho café da manhã. — Ele fala rindo e tira duas barrinhas de cereal do bolso.

Ele me entrega uma e ela esta amassada. Eu rio, porém abro o pacote e mordo um pedaço. É de banana com mel. Eu gosto. Como a barrinha em silêncio e depois o olho. Ele também parece distante. Está olhando o sol da manhã que agora já esta mais forte. Bem mais forte. Que horas deve ser? Eu retiro o celular do bolso. Já passa das dez da manhã. Nós ficamos aqui conversando por tanto tempo assim e eu sequer vi a hora passar.

— Eu gosto do sol da manhã. Ele arde sem realmente arder. — Ele me diz e eu o olho. Não entendo. Ele ri. — Você não entendeu né?

Eu balanço a cabeça em negativa.

— Vamos dar uma volta na praia? — Ele pergunta.

— E a sua moto, você vai deixar aqui? — Eu pergunto sério e olho para a moto. A avenida agora está menos movimentada, poucos carros passando aqui.

— E quem vai parar aqui para tentar roubar? — Ele pergunta. Então me estende a mão sorrindo. — Vem, vamos!

Eu aceito e balanço a cabeça em afirmativa. Ele continua com a mão estendida. Eu seguro e a gente caminha para a pequena descida. Desço com certa dificuldade, tenho medo de escorregar e derrubar ele que estava a minha frente.

Chegamos a areia e eu sinto os tênis da escola afundando na areia. Vou precisar dizer para minha mãe que passei na praia na volta da escola, mesmo sabendo o que isso vai gerar.

— Me da sua mochila. Eu carrego! — Ele diz.

— Não precisa...

— Me dá logo! — Ele fala já puxando minha mochila e jogando no próprio ombro. Ele caminha ao meu lado. — Gosto de estar aqui. Gosto de estar aqui com você!

— Por quê? — Eu pergunto curioso.

— Porque sei que está aqui comigo, porque me vê como sou. E não apenas porque você está querendo me dar um beijo. — Ele diz rindo.

— E como sabe disso? — Eu pergunto sorrindo também. Ele está certo?

— A forma como me olhou aquele dia na praia. Você não tinha desejo. — Ele riu. — E pelo simples fato de não ter surtado quando soube que eu transei com cinco diferentes em uma semana.

Eu fiquei pensativo, mas sustentei meu sorriso. Eu era bom em sorrir mesmo quando não queria. Ele ficou calado por um tempo. Eu não tinha mesmo desejo nele? É eu não tinha. Falei para mim mesmo e olhei para meus tênis sujos de areia.

Continuamos conversando.

Falamos sobre tudo. Anseios. Desejos. Ele queria fazer faculdade de Educação Física. E iria tentar para a faculdade Federal daqui. Falou sobre seus medos. Eu até me senti confortável para falar dos meus. Nós tivemos uma manhã agradável. Foi bom cabular aula.

 

 

— Eu tenho uma coisa para te perguntar. — Ele falou logo depois de estacionar a moto em frente a minha casa.

Eu o olhei confuso e então balancei a cabeça em afirmativa. Então disso olhando nos olhos dele. — Você pode!

— Na sexta tem uma festa. A minha prima que arranjou, vai ser legal. Eu quero saber se você quer ir comigo! Diga que sim! — Ele fala.

— Claro! — Eu respondo rápido! Festa? O bosta, eu nunca fui a uma festa. Não sei nem o que vestir para ir a uma festa.

— Está bem, então combinado. Eu vou dizer para ele que vou. Vai ser a sua primeira vez, não é? — Ele pergunta animado.

— Vai sim. E eu só estou indo porque você disse que eu beijaria na minha primeira festa. Eu quero perder o meu bv. — Eu digo rindo e olho nos olhos azuis dele. — Mas agora eu vou entrar. Preciso contar para os meus amigos que tenho uma festa para ir.

— Achei que não tivesse amigos. — Ele diz me olhando. — Estou com ciúmes!

Eu sorrio. — Eles moram bem longe daqui. É! — Eu acabo por rir.

— Então não há riscos. Você será meu melhor amigo e ninguém vai impedir isso. — Ele ri. — Acho melhor eu ir. Minha mãe vai querer saber onde eu estava, e por que saí tão cedo de casa. Ela não liga para quantos caras durmam lá em casa, mas liga sobre eu sair sem avisar, vai entender. Vou indo, a gente se fala daqui a pouco. Eu te chamo no whats.

Eu aceno e vejo-o partir com a mota para a casa ao lado. Eu corro para casa e dou de cara com a minha mãe sentada no sofá com a Marcela no colo.

— Quem era? — Ela pergunta. — E por que não foi à aula?

Então ela já sabia. A escola já havia ligado. Minha história não iria colar.

— É o Guilherme. O novo vizinho! — Eu respondi e ignorei a segunda pergunta.

— E por que você estava com ele ao invés de na escola? — Ela pergunta. — Está bem, eu não sei se você está pegando ele — sim, minha mãe falou pegando, — mas eu não quero que você falte aula por isso.

Eu olhei para a minha mãe e então respirei fundo.

— Em toda minha trajetória escolar eu só falei aula quando estive internado depois de quase morrer. Acho que devo discutir com meu psicólogo se faltar aula por um dia para conversar com um amigo é crime. — Eu digo sério.

Minha mãe me olha como se eu tivesse batido em seu rosto. Eu me sinto mal, penso em voltar atrás, mas ela é mais rápida.

— Eu apenas fiquei preocupada. Eu não sabia onde estava. E fiquei com medo de ligar para o seu celular e outra pessoa atender. — Ela diz.

— Mãe eu não estou com pensamentos suicidas ultimamente. Converse com o Dr. Jorge ele mesmo irá te dizer isso. — Eu falo baixo. — Eu apenas quis dar um tempo. Eu posso subir?

— Pode! — Ela fala confusa.

Eu beijo seu rosto. — Está tudo bem!

Corro para meu quarto e fecho minha janela. Eu me jogo na cama e rio. Disco para Lucas. Ele atende depois de eu insisti quatro vezes.

— Alô! — Ele diz com a voz de sono.

— Eu tenho uma festa para ir. Preciso da sua ajuda. — Falo e mordo meu lábio. Estou mesmo animado.


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