Hunk era uma pessoa da manhã.

Não importava quantas horas tivera de sono – acordava sempre junto do Sol, sem alarme, em um humor invejável, afastando a preguiça com um bocejo e pulando da cama para preparar o café.

Bem ao contrário de seu colega de quarto, na verdade.

Puxando para baixo a camisa do pijama, deu uma olhada na cama ao lado, rindo sua risada que reverberou pelo dormitório colegial quando viu Lance McClain, uma vagem com pernas, completamente enrolado nos lençóis e babando sobre o próprio aparelho celular.

Considerou se deveria acordá-lo agora ou trazer um copo de café forte do refeitório primeiro.

Chegou à conclusão de que ele madrugara – de novo – e talvez realmente precisasse de alguma cafeína.

Limitou-se a afastar o rosto do latino para pescar o celular de baixo de sua boca, e coloca-lo salvo e à seco sobre a mesinha. Deixou um beijo sobre a testa do colega – uma tradição, afinal Lance nunca o permitia sair do quarto sem um “beijo de adeus”.

Trocou-se para dentro do uniforme laranja e branco, e tomou o caminho até a cafeteria. Rotina diária – entrar, evitar as crianças delinquentes, julgar a escolha do cardápio, sentar e comer, e finalmente, roubar um copo ou dois de café puro para Lance.

Voltou ao dormitório, e não se surpreendeu ao ver o outro na exata mesma posição de antes. Revirou os olhos – Deus. Lance dormia como uma pedra.

—Ei, garotão -sacudiu seu ombro com a mão livre, um tom de riso na voz- Vamos acordar? Te trouxe café da manhã.

Lance grunhiu e virou na cama. Hunk o sacudiu com mais força dessa vez, e só ganhou um grunhido ininteligível em espanhol. Mas, na verdade, depois de tantos anos de convivência, já sabia exatamente o que significava: “Só mais cinco minutos, mãe”.

—Não sou sua mãe -respondeu- Lance!

O latino teve um sobressalto, virando-se rapidamente com um “huh?”, e finalmente seus olhos azuis encontraram os de Hunk.

—Ah...meu Deus, cara. Eu tava tendo um sonho muito louco.

—Eu aposto que sim -Hunk escondeu o riso, lhe estendendo o copo que trouxera. Deixou que Lance se ajeitasse sentado na cama, chutando os lençóis para longe.

—Café na cama? -ele sorriu, soprando a superfície do copinho descartável- Ah, mozão, você é tão bom pra mim.

O havaiano riu em resposta, endireitando as costas com um estalo, e se afastando para chutar algumas roupas sujas do chão do quarto.

—Esse lugar tá uma bagunça, Lance. Não é sua vez de levar as roupas pra lavanderia?

—Não estou ouvindo -respondeu, bebericando o café- Acabei de acordar.

Hunk se virou para ver Lance fazer uma careta, tão forte que parecia que o rosto ia entrar em seu crânio. O maior riu, alto, mesmo que não fosse novidade nenhuma – Lance fazia sempre assim. Agradecia, reclamava, dizia não aguentar tanta cafeína, mas esvaziava o copo de qualquer forma.

—Então -Hunk se sentou na cama, de frente para o outro- Se está ainda tão sonolento, acho que não vai poder me falar sobre o garoto com quem ficou conversando até altas horas ontem, não é?

Deu um sorriso cheio de significados enquanto assistia Lance engasgar na bebida e o olhar com olhos azuis um pouco arregalados.

—Uh...eu...não sei do que está falando...?

—Vamos lá -colocou os cotovelos sobre os joelhos, se curvando para que o queixo descansasse nas mãos- Quero um resumo da conversa. Como foi?

Lance pareceu ainda mais embaraçado. Voltou as atenções ao café, enquanto Hunk ria, deixando uma mão descansar.

—Na verdade, eu estou bem impressionado -continuou- É tão difícil manter uma conversa com o Keith.

Lance sorriu.

—Isso eu percebi. Mas até que ele se soltou depois de um tempo? Acho que ele pensa demais no que escrever, mas eventualmente, heh, ele caiu nos meus encantos -inflou o peito, e Hunk lembrou-se de um pombo- Fazer o quê, né? Lance “Irresistível” McClain, esse é meu nome do meio.

—Achei que seu nome do meio era “Charles”.

Hunk riu quando uma almofada o acertou no ombro, se curvando para pegar a coitada do chão e colocar sobre a cama.

—Não, sério. Fico feliz que o primeiro contato tenha sido um sucesso -sorriu.

Lance corou com um “hum”, sorrindo por trás da beirada do copo. Hunk se levantou, se espreguiçando (como era uma mania sua), e recomendou que ele terminasse logo o café e se vestisse.

—Temos álgebra avançada no primeiro horário -disse, tendo que lidar com o choramingar de Lance ao ouvir a “palavra proibida”. Virou os olhos para cima, como se orasse.

—Ahh, Santa Cher...!

X

Era a terceira noite seguida que Keith dormia quase nada, e seu humor não estava dos melhores.

Tratava daquele cano entupido como se fosse a garganta de toda a humanidade, e via o momento em que meteria a mão ali e ligaria a embreagem por acidente. Exausto, os cabelos grudando à testa pelo suor, as mãos cobertas de fuligem, afastou os óculos de segurança e limpou as mãos na calça, retirando o celular do bolso traseiro.

Uma pausa não lhe faria mal.

Certificou no reflexo da tela escura que seu rosto estava igualmente imundo como todo o resto de seu corpo; esfregou um pano para retirar as marcas dos óculos, e desbloqueou a tela, indo para a conversa com Pidge. Tinha de documentar ao seu melhor amigo sua frustração, ou talvez explodisse.

Nerd Authority [18:38]: mAS EI, me documenta tudo quando voltar

S4D_B0Y_2001 [15:02]: AAAAAAAAAAAAAAA

Nerd Authority [15:03]: concordo

Nerd Authority [15:03]: o que foi dessa vez?

S4D_B0Y_2001 [15:03]: Tô puto.

Nerd Authority [15:03]: isso eu percebi, mas posso saber o motivo?

S4D_B0Y_2001 [15:04]: Tá tudo dando errado, Pidge.

Nerd Authority [15:04]: a conversa com o crush ontem não deu tão certo?

S4D_B0Y_2001 [15:04]: Quê.

S4D_B0Y_2001 [15:04]: Não, quer dizer, deu.

S4D_B0Y_2001 [15:04]: Não é esse o problema, seria mais fácil de fosse.

Nerd Authority [15:05]: então o que foi?

Keith tricotou todos os seus problemas. Reclamou do trabalho, do cano de escapamento entupido, dos clientes insuportáveis, de sua paciência curta, das noites mal dormidas, e das olheiras que faziam cada vez mais ele parecer um emo de garrafa de 2005.

Nerd Authority [15:20]: em resumo

Nerd Authority [15:21]: você tá impaciente porque um cara te manteve acordado a noite toda ontem?

S4D_B0Y_2001 [15:21]: Fica tão R18 quando você fala dessa forma. Mas sim, basicamente.

Nerd Authority [15:22]: mas isso não deveria ser uma coisa positiva?

Nerd Authority [15:22]: você disse que gostou de conversar com ele

Keith sentiu-se enrubescer de leve. Gostara, talvez até mais do que havia imaginado – mas não ia deixar-se iludir ainda. Era só uma conversa inocente, um primeiro contato, com um garoto que tinha um amigo em comum com ele, e grandes olhos azuis, e um sorriso atraente, e aquela pele escura...

Sacudiu a cabeça. Decidiu ficar frio sobre ele por enquanto.

S4D_B0Y_2001 [15:22]: É, mais ou menos.

S4D_B0Y_2001 [15:22]: Quer dizer. Ele usa o emoji do :3c.

Nerd Authority [15:22]: revoltante :3c

Avisou a Pidge que tinha de voltar ao trabalho. Pidge argumentou que estava voltando para casa a pé e seria melhor guardar o celular, mesmo. Keith recomendou que não fosse atropelado.

Nerd Authority [15:24]: pode deixar. mas, ei

S4D_B0Y_2001 [15:25]: ?

Nerd Authority [15:25]: cuidado pro seu traseiro gay não criar expectativas sobre o lance

Keith revirou os olhos e corou. Por que Pidge tinha de ler sua mente se estava a quase 300km de distância?

S4D_B0Y_2001 [15:25]: Meu traseiro não vai criar nenhuma expectativa, obrigado pela preocupação.

Fechou a conversa, suspirando e encarando o motor aberto à sua frente.

Subiu a bandana pelo rosto, protegendo a boca da fuligem. Se armou com uma escova e um chave, como se estivesse prestes a enfrentar um exército alienígena inteiro.

—Hora de detonar isso aqui.

X

Quando deixou o capacete sobre a mesa da cozinha e chutou os coturnos para fora dos pés, checou sua caixa de mensagens. Suas conversas estavam estranhamente movimentadas nos últimos dias, muito mais do que ele gostaria que estivessem – mas, só por hábito, abriu o chat com Lance.

Sua última visualização havia sido na madrugada passada, às 3:07h. Keith se perguntou se deveria ter mandado uma mensagem de bom dia, mais cedo. Mensagens de boa tarde contavam? Espiou o horário – já eram mais de seis. Lance estava no Ensino Médio, certo? Talvez celulares fossem proibidos em sua sala de aula.

Mas o que fazia Keith pensar que era tão especial que Lance lhe mandaria algum texto durante as aulas?

Xingou a si mesmo e suas expectativas em voz baixa, e no mesmo segundo, recebeu uma mensagem rara de Shiro.

NASA Dad [18:12]: Hey, Keith? Já bebeu água hoje? Estou mandando um texto só para avisar que vou para casa nesse final de semana. Você me busca na estação de trem de manhã cedo, como sempre, certo? Vou tentar sair no mesmo horário, mas pode ser que me atrase.

NASA Dad [18:12]: Me mande uma mensagem quando puder.

S4D_B0Y_2001 [18:13]: Sabe, você não precisa sempre tratar o chat como um caixa eletrônico.

S4D_B0Y_2001 [18:13]: Eu sei que você vem, você me avisou ontem.

NASA Dad [18:14]: Ah. Ah, sim.

Keith sorriu. Enquanto pescava no armário um pacote de salgadinhos para o jantar, respondeu a um Shiro ansioso todas as perguntas sobre sua saúde. Sim, estava indo bem, não, seus olhos não estavam irritados, ele bebia água regularmente, dormia o bastante, e tomara banho ontem mesmo.

Claro que mentia sobre a maioria. Mas só queria que Shiro ficasse relaxado enquanto ainda haviam duas cidades entre eles.

NASA Dad [19:00]: Fico mais relaxado então.

(Bingo.)

NASA Dad [19:00]: Você já está jantando? Lembre-se que uma refeição reforçada é a base de uma vida saudável. E verde é importante na dieta de qualquer herói, certo?

S4D_B0Y_2001 [19:00]: Shiro, a coisa do super-herói não funciona mais comigo desde a sétima série.

NASA Dad [19:01]: Você era tão mais adorável quando era criança.

Então, eles haviam se conhecido quando Keith estava no quarto ano escolar. Não haviam motivos para um garoto do Ensino Médio, no entanto, sete anos mais velho que ele, falar com uma criança – como havia começado aquela amizade quase fraterna?

Sendo breve: Keith não era exatamente uma criança calma. Muitos...acontecimentos, de fato traumáticos, dificultaram seu contato com outros alunos de sua idade, e sua relação com a maioria deles era agressiva. Violento, metia-se em brigas com uma frequência enorme – e foi em uma delas que Shiro, ainda no primeiro ano, o salvou de levar uma bela surra.

Sua relação se desenvolvera a partir daí. Agora, seus pais ainda mais longe que Keith, Shiro o priorizava em suas visitas. Keith conhecera sua mãe, fora bem aceito no almoço de Natal. Mas ainda preferia morar sozinho naquela cidade quase vazia, pagando o próprio imposto, e recebendo Shiro todo mês para um final de semana de discussões sobre quem comeu do cereal favorito que Keith estava guardando.

NASA Dad [19:02]: Aliás. Eu precisava conversar com você sobre algo que Pidge Holt me disse.

S4D_B0Y_2001 [19:02]: ?

NASA Dad [19:02]: Desde quando você está conversando com esse...garoto, o tal de...Lance?

S4D_B0Y_2001 [19:02]: AI MEU DEUS.

Keith digitou rapidamente uma desculpa, o rosto queimando, a ansiedade lhe torturando os sentidos, e ainda teve de lidar com Shiro deixando um último textão antes de ficar off-line – uma patética corrente de conselhos, praticamente um discurso de como relacionamentos eram algo muito importante na fase de descobrimento do adolescente, e mais coisas que você provavelmente leria em um livro Para Jovens.

Honestamente, Shiro agia como um trintão às vezes.

Keith deixou a cabeça cair sobre o encosto do sofá, relaxando os ombros, soltando um suspiro profundo. Por que todos achavam que seu contato com Lance daria em alguma coisa? Ele não era bom com socialização, nem relacionamentos. Ele não queria se apaixonar de novo, e se machucar de novo. Não queria que sua amizade (amizade?) com Lance desse em nada de especial.

E, nesse mesmo segundo, a tela do celular brilhou azul com uma notificação.

Captain Frijoles [19:04]: MDS. ALGEBRA FOI TAO HORRIVEL HJ, ME CONFORTE PFVR

Keith sorriu para a mensagem, como um bobo. Não queria que sua amizade com Lance desse em nada especial.

Mas ele não reclamaria se desse.