Admirável Novo Mundo escrita por Joana Guerra


Capítulo 4
Rápidas aves furtivos animais


Notas iniciais do capítulo

Muito obrigada à Priscilla por ter favoritado e à Sofia pelo incentivo : ).



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Anna via o seu reflexo no lago da bacia de porcelana a meia capacidade, precariamente encastrada na parede do porão, enquanto tentava inutilmente anular o decote excessivo do vestido carmesim.

Se lhe tivessem dado a escolher, nunca se teria decidido por envergar um vestido de meretriz sem a necessidade premente de ter que o utilizar como disfarce.

Nunca tinha sido pessoa para ter sentimento por objetos, mas lhe aflorava à superfície da pele um ódio miúdo por aquela indumentária forçada. Que mulher tinha sido aquela que tinha conseguido esquecer algo tão volumoso quanto um vestido num navio pirata? Teria sido luxúria, a razão para a antiga proprietária o ter retirado do seu corpo?

Ela nunca o admitiria, mas, no fundo, o que realmente apoquentava Anna era imaginar a relação entre Ferrão e a dona do vestido encarnado.

A inglesa cheirou o tecido da manga. Já não conservava o perfume original, mas não tinha estado guardado durante muito tempo. O mistério datava de um passado recente.

Miss Millman colocou disfarçadamente o medalhão de família no bolso do vestido. Mais do que o medo de que algum pirata o roubasse, tinha o receio de mostrar algo tão íntimo a outra pessoa.

O tempo tinha passado rapidamente, mas se acumulava sem possibilidade de retorno. Um mês. Fazia trinta dias e trinta longas noites que estava viajando com aquele bando.

Somavam-se horas infinitas em que ela tinha voltado a utilizar os conhecimentos de grumete aprumado adquiridos no início da adolescência.

Ela tinha ficado satisfeita ao ver a cara de estupefação do Capitão quando ele percebeu que ela sabia manobrar um barco tanto ou mais do que qualquer um dos seus homens, trepando com o à vontade de um montanhista suíço pelas cordas que manipulava em nós perfeitos.

Pelo sim, pelo não, Ferrão tinha resolvido esconder os mapas de navegação da sua refém convertida em tripulante entusiasta. Não queria de nenhum modo que ela se escapasse por entre os seus dedos.

Para Anna, aquele era um pequeno sopro de liberdade. Viajava pelo mesmo mar através do mesmo vento, mas eles lhe pareciam agora muito mais frescos do que dantes. Não podia reclamar da oportunidade de pensar por si mesma. Já não sentia falta de pisar em terra firme.

Na falta de evidências, tinha que inventar queixas sobre o modo como vinha a ser tratada. Ferrão tinha tido o cuidado de abdicar dos próprios aposentos, os cedendo para que Miss Millman tivesse privacidade, mas não se esquecia de oferecer a sua companhia ao jantar.

A refeição era invariavelmente um ringue de adversários muito diferentes que se aprendiam a conhecer.

O cômodo da cabine do Capitão era reduzido e, depois de montada a mesa desdobrável, sobrava pouco espaço para a circulação dos dois.

Na primeira noite, quando Ferrão chegou já Anna se sentava muito direita na cadeira de espaldar e colocava o guardanapo cuidadosamente aberto sobre o colo.

A oscilação das ondas fazia com que pratos e copos dançassem de uma forma interminável sobre a mesa.

A comida rolava dentro do prato e obrigava a que os esfomeados apurassem a sua coordenação motora para a conseguirem caçar. Anna resmungava enquanto corria para espetar o garfo.

A loira estava zangada por lhe terem dado uma faca que mal cortava manteiga. Raios. Ferrão não tinha como saber que ela conseguia matar um homem de quinze maneiras diferentes, usando apenas uma faca de cozinha.

Por outro lado, Anna também não estava gostando nada da falta de modos de quem estava sentado diante dela. Ele era um menino faminto e ela, conseguindo ouvir os grunhidos da sua companhia, se encolhia com isso:

Please, Captain. Use talheres. Não me sento à mesa com selvagens.

Teria sido bem mais inteligente usar psicologia reversa com Ferrão. Ele apenas sorriu momentaneamente e nada disse quando fez questão de usar as duas mãos para comer com satisfação uma enorme perna de cordeiro, soltando gemidos de contentamento que desconcertavam a sua refém.

Anna só se conseguia focar nos lábios reluzentes de gordura do seu sequestrador, que ele lambeu vagarosamente com a ponta da língua.

Ela engoliu em seco. A inglesa sabia que o uso de talheres não era ainda generalizado nas classes mais baixas, mas tinha a certeza que ele fazia aquilo só para a irritar.

— O que é que a Marquesa esperava? O seu chá das cinco? – perguntou ele, continuando a charada ao limpar propositadamente a boca na manga da camisa.

— Uma tradição britânica civilizada. – respondeu ela, ficando sem posição para colocar tranquilamente as mãos quando percebeu que já não conseguiria dar mais uma garfada.

Ele riu, reposicionando os candelabros que se moviam com a subida do nível do mar:

— Uma tradição britânica… Uma tradição que uma princesa portuguesa levou para Inglaterra e que vocês roubaram.

 — Oh, Ferrão. Vai catar coquinho.

Anna provava que estava familiarizada com as expressões idiomáticas do português, mas trincou a língua na impossibilidade de fazer o que realmente lhe dava vontade. Quanto mais se defendia, mais aquele safado se ria na cara dela. Parecia que ele só concordava em discordar com tudo.

Tiago permaneceu imperturbável e verteu de um pequeno pote de estanho um líquido escuro aromático numa pequena chávena finamente decorada.

Ele nunca iria dar o braço a torcer quanto a ser um sentimental, mas Ferrão gostava da história por detrás dos grãos que tinham dado origem àquela bebida.

Em 1727, um sargento português tinha seduzido a esposa de um governador da Guiana Francesa. Graças a esse meio pouco diplomático, ele tinha conseguido trazer para o Brasil a primeira muda de café-arábico, produto proibido de ser exportado da Guiana e ferozmente protegido.

Tiago gostava da história porque sabia que um bom espião sempre consegue um subterfúgio para cumprir a sua missão.

Admitindo que Ferrão ainda não tinha chegado ao ponto de a querer envenenar, Anna inspirou o aroma do café quente antes de o levar aos lábios. Era forte, encorpado, o que a satisfez no critério de qualidade.

O Capitão percebeu que ela tinha gostado, desvendando o aspeto da novidade:

— Você nunca tinha bebido café produzido no Brasil.

Ela assentiu com a cabeça, surpresa com a origem do produto. Os livros e os relatórios lhe tinham mostrado que as grandes riquezas cultivadas em solo brasileiro eram o açúcar, o tabaco e o algodão.

Claro que ela sabia que o que realmente importava a quem explorava aquele solo era encontrar ouro e pedras preciosas, usando seres humanos despojados de direitos e da sua dignidade como mão-de-obra gratuita.

Uma ideia feliz atravessou o espírito da inglesa. Se o solo brasileiro era assim tão bom, porque não o valorizavam?

— Porque é que não cultivam café em grande escala? Na Europa não faltariam compradores…

Ao compor a imagem que Anna lhe ofereceu, a cabeça de Ferrão deu-lhe um estalo metafórico, lhe abrindo os olhos e a boca num sorriso. Seria realmente possível não só sonhar, mas sim um dia criar um país independente, autossuficiente, que fosse uno com o respeito pela sua terra?

A utopia cedeu perante a realidade do momento e o Capitão se deixou escurecer, debitando a resposta que Anna não queria ouvir:

— Porque os portugueses estão muito ocupados a sangrar o chão e o povo do Brasil.

Eles eram sol e lua, cão e gato numa discussão perpétua que divertia de sobremaneira toda a tripulação a bordo.

Se ele a tinha catalogado como uma fidalga mimada, Anna iria transformar essa mentira em verdade, o enlouquecendo no processo.

 Quanto mais depressa ele se quisesse livrar dela e receber o valor do resgate da loira, mais depressa ela voltaria para a sua missão junto de Leopoldina e da Corte portuguesa.

A inglesa não tinha que puxar muito pela cabeça para se lembrar de pedidos esdrúxulos que sabia que Tiago não teria forma de realizar, mas esses requerimentos não pareciam apressar a vontade do pirata em devolvê-la.

Quando Anna acordou com a pele empolada pela picada de formigas e exigiu um físico formado em Londres para a atender, Ferrão mandou tranquilamente que o cirurgião-barbeiro do navio a examinasse, relaxado perante o brilho feral da sua hóspede:

— Não tenho medo de um bicho. Pelo contrário, até meio que adoro.

Ela continuou o protesto, apelando com bons argumentos que caíam em saco roto:

— Me devolva rapidamente, Captain. Eu valho o meu peso em ouro.

— Magrinha como você é, acho que ainda vou ter é prejuízo.

Trinta dias e trinta noites juntos, mas foi na hora em que viu um navio cargueiro inglês passando perto deles, que Anna se atirou à água, esperando que os seus conterrâneos a resgatassem, mas percebendo que eles tinham fugido precipitadamente ao reconhecerem a bandeira do navio pirata.

O Lobo do Amor se apressou no encalço da louca que se tinha lançado ao mar, obrigando à necessidade de se pescar a refém fugitiva que, embrulhada na rede remendada, se agitava como um carapau sentindo falta de oxigénio enquanto a puxavam para bordo através de roldanas:

Debaixo dela, se esgueirando dos pingos de água salgada que escorriam das redes, Ferrão procurava a palavra final:

— Você se rende?

Never!

Anna estava com cara de quem iria morder alguém, pendurada no mastro, coberta de algas e tendo por companhia pequenos peixes que tinham tido o azar de terem sido apanhados na rede.

Era uma imagem que nenhum daqueles homens iria esquecer, muito menos Ferrão, que tentava engolir um ataque de riso.

Não era aquele seu riso sarcástico, ensaiado ao pormenor para causar impacto e ecoar pelo espaço.

Aquele era um som leve que Tiago tentou reprimir, mas que se transformou em gargalhadas que o deixaram com lágrimas nos olhos e dores musculares.

 A tripulação do Lobo do Amor ficou parada, sem saber o que fazer. Estavam num universo paralelo em que o seu Capitão ria em público como se fosse um louco. Acabaram se juntando também num coro de gargalhadas para que ele não sentisse a sua sandice.

O Capitão cortou as redes com cuidado e Anna caiu no seu colo num baque surdo. O sol incidia nos olhos da inglesa e a luminosidade mostrava a cor de mel da íris, mas Ferrão já tinha percebido que ela estava longe de ser doce. Aquele brilho de bicho selvagem dos olhos da loira cortaria como adagas.

Para ele, Anna era uma estranha insolente numa terra selvagem. Aquilo não tinha como dar certo.

Tiago não se queria envolver com uma fidalga mimada, mas não conseguia evitar a satisfação íntima de alfinetá-la. Foi o que ele fez quando foi necessário repor o vestido de Miss Millman arruinado pela água do mar.

Como antecipado, ela gemeu com a visão do vestido que ele lhe ofereceu, uma peça trazida inadvertidamente para o navio depois que um dos marinheiros teve que fugir disfarçado de mulher e morto de medo de um marido de pavio curto.

— É isso ou um par das minhas calças, mas já nem me lembro da última vez que elas foram lavadas.

Ferrão já tinha antecipado o protesto que se seguiu à sua oferta, mas daquela vez conseguiu segurar novo ataque de riso com a resposta dela:

— Eu sou uma dama!

— Mas eu não sou um cavalheiro.

O Capitão tinha a certeza de que se Anna fosse uma ave, ela voaria direta ao seu pescoço, mas ela resolveu atacar com palavras rasantes:

— Claro que não. Você é um criminoso, um ladrão!

A seriedade e o silêncio tomaram conta dos homens do Capitão. Anna recuou, não entendendo onde se encontrava o lapso verbal. Sabia que estava sendo hipócrita, mas por acaso estava dizendo alguma mentira?

Ela tinha visto com os seus próprios olhos o Lobo do Amor abordando vários navios ao longo daquele mês e os roubando de tudo quanto tinham de valor a bordo.

Em silêncio, Tiago tinha virado costas à sua refém, para depois emitir a sua sentença:

— Queira por favor acompanhar o Piatã, que lhe vai mostrar as suas novas acomodações no porão. Para evitar banhos desnecessários da tripulação, e todo o mundo sabe que esses homens odeiam tomar banho, a Marquesa vai ficar presa com algemas. É a última tendência de moda no Brasil, não sabia?

Anna sabia que, por hora, tinha perdido a batalha e deixou que o índio a conduzisse para o interior do navio, furiosa com a falta de atenção do chefe dos seus captores e com a pena que ele lhe tinha aplicado. Quem Ferrão achava que era para fazer aquilo com ela, sem sequer a encarar nos olhos?

Só quando deixou de sentir os passos da loira e o seu vestido molhado arrastando pelo chão, o Capitão se voltou novamente para os seus homens.

Tiago tinha passado os minutos anteriores atento à sua tripulação. Tendo visto o olho guloso de machos que já não partilhavam cama com uma mulher havia meses, instruiu os seus piratas num tom que daria arrepios de medo a qualquer um deles:

 — Se um de vocês tocar nem que seja num cabelo dela, nunca mais vai precisar de gastar uma moeda que seja no prostíbulo porque eu capo o filho da mãe na hora. Compreendido?

Sob o ponto de vista tático, Anna entendeu o porquê do seu carcereiro não sair da sua presença, mas o índio respeitosamente virou as costas enquanto ela se trocava no porão.

Ela percebeu que Piatã não estava feliz em ter que algemar uma mulher. Talvez conseguisse que ele a ajudasse a fugir. Compreensiva, tentou estabelecer uma ligação com o homem:

— Lamento que você tenha que trabalhar para alguém como esse Ferrão.

O índio percebeu que ela já estava pronta e se voltou, franzindo levemente a testa, incomodado com a insinuação, enquanto a prendia a um dos postes:

— Tiago tem um mal na alma, um bicho ruim que rói o coração, mas tem luz também. Tem muita bondade dentro dele. Você só tem que aprender a enxergar.

O que Anna desejava realmente ver era uma saída para aquela situação, não imaginando que o que está mau pode sempre piorar.

Essa lição foi primeiro aprendida por Ferrão, correndo pelo convés do navio ao espreitar pelo binóculo e constatar que estavam a ser perseguidos pelo seu pior inimigo, protegido por um couraçado de guerra.

Barba Azul raramente fazia prisioneiros. Quando o fazia, eles desejavam ter morrido na peleja inicial.

Tiago tinha tido a sorte de várias vezes antes ter escapado do pirata temível, mas o azar acumulado a ponto de o ter irritado profundamente por isso. Barba Azul não iria aceitar como vingança menos do que a aniquilação completa do Lobo do Amor e da sua tripulação.

Talvez aquele fosse o mesmo carma que dizia que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

Ferrão se tinha visto livre dos canhões a bordo no sentido de alcançar a velocidade necessária para abordar o Dom João VI, mas esse truque se virava agora contra ele.

Não tinha armas para enfrentar o Barba Azul, nem conseguia fugir dele, mas se recusava a deixar morrer inutilmente um único dos seus homens.

Em Tiago, apenas os seus olhos denunciavam as suas mudanças de humor. Pela primeira vez em muito tempo, ele teve medo de fracassar.

Um par de pulmões bem trabalhado pelo exercício continuava gritando ordens acima do ruído do vento e do barulho das ondas batendo contra o casco do Lobo do Amor. Tiago queria conduzir o seu navio para águas traiçoeiras, colocando tanta distância quanto conseguisse entre ele e Barba Azul.

Se não o conseguia vencer pela força, o venceria com inteligência. Apenas Ferrão conhecia como a palma da mão aqueles bancos marítimos.

Desarmado, o Lobo do Amor teve que dar o peito à bala quando Barba Azul deu a ordem para dispararem sobre o navio de Ferrão. Voavam balas de canhão certeiras contra o casco de madeira indefeso que protegia vinte homens e uma mulher.

Ferrão compreendia a ligação entre ser animado e objeto inanimado. O seu coração lhe dizia que o seu barco estava irremediavelmente perdido. Restava apenas tempo para tentar salvar o que realmente de valor era possível resgatar.

O Capitão largou o leme que afagava em tom de despedida e correu na direção do porão, mas Piatã o segurou pelo braço e o enfrentou com os olhos:

— Você não é responsável só por ela. Você é responsável por todos os homens.

Chamado à atenção por alguns dos seus homens que apontavam como se tivessem descoberto uma jazida de ouro Ferrão viu que, depois de muitas semanas, o continente estava diante deles. Terra à vista, mas ainda tão longe. Conseguiriam lá chegar antes que o Lobo do Amor afundasse?

Presa no porão, Anna se agitava por dentro tanto quanto os solavancos dos impactos das balas de canhão a abanavam por fora. Ninguém se tinha dado ao trabalho de lhe explicar o que se estava passando no convés, mas ela percebeu que coisa boa não podia ser porque conseguia ouvir os ecos das rezas dos marinheiros nos espaços vazios entre as explosões.

Eles bem podiam estar apelando proteção a Santa Bárbara, mas seria preciso bem mais do que um milagre para reparar o rasgão no casco, boca aberta na barriga do navio que deixava entrar água a um ritmo vertiginoso de cascata fértil caindo a pique, depois do navio ter sido atingido por uma bola certeira de canhão.

O nível da água subia sem que Anna conseguisse usar um truque de prestigiador para se libertar das algemas. Ela tentou subir para cima de uns caixotes, mas a água já batia de uma forma pouco mansa no teto e lhe entrava nos pulmões sem pedir licença. Ia morrer ali sozinha.


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Notas finais do capítulo

Duas notas históricas: Foi D.Catarina de Bragança quem levou o chá para Inglaterra. O cultivo do café no Brasil só se tornou significativo depois de 1850. Subestimei o trabalho envolvido na escrita de ficção histórica. Tenho mesmo que enfiar a cara nos livros e isso leva tempo :). À partida, não conseguirei garantir muito mais do que as postagens quinzenais. Espero que compreendam. No próximo capítulo: Ferrão prometeu que nada de mal iria acontecer com Anna enquanto estivesse com ele. Anna vai finalmente colocar os pés no Brasil. Beijo para todos!