Admirável Novo Mundo escrita por Joana Guerra


Capítulo 18
E assim contando tudo quanto vi


Notas iniciais do capítulo

Tenho muitos agradecimentos a fazer :). Muito obrigada a sakurita1544 pela recomendação e por ter favoritado, a DayMeirelles por ter favoritado, a todos quantos comentaram e a MalucaPorHumbelle por ter favoritado (e ressuscitado) Doze Minutos. Eu sei, já vi discursos mais curtos nos Óscares ;) kkk.



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A chuva caída havia pouco sobre o tapete de erva brava que se estendia até perder de vista no chão plano, gotas de brilhantes transitórios dispersos sobre o verde vegetal, combinava com o anel com uma pedra da cor da esperança bem preso ao dedo de Anna.

Hirto estava também Ferrão, sobressaltado pela menor movimentação a curta e a longa distância dele e da esposa. A antiga capacidade de improviso e o amor pelo risco tinham cedido a sua habitação ao homem que temia pela sua família, numa angústia mal disfarçada pela envelhecida ironia:

— Tem a certeza de que Leopoldina conseguiu amansar a fera?

O suspiro libertado através dos dentes cerrados do pirata denunciou a sua angústia pelo plano arrojado da inglesa.

Só existe medo dentro do ser humano quando há algo a perder. Anna e Tiago arriscavam tudo num único momento.

A antiga espia concentrava os seus sentimentos numa exclusiva resposta:

— Não, mas tenho esperança. Foi o que nos sobrou.

No momento de espera prolongada, arrastada pelo passar de horas molengas, Ferrão procurava com as mãos a segurança do toque nas armas propositadamente ausentes naquele dia:

— Você devia ter-me deixado trazer a nossa tripulação.

A loira compreendeu o motivo da singela admoestação e sorriu.

Anna recordava ainda o momento de reembarque no Marquesa, a prancha colocada com toda a gala para que ela subisse com pompa e circunstância e todos os homens perfilados com os seus chapéus respeitosamente nas mãos, enquanto a recebiam sussurrando o seu novo epíteto.

Capitoa. Não a mulher de um capitão, mas uma líder em nome próprio, que levaria todos até um bom porto.

Quando os dedos delgados da inglesa tocaram no leme pela primeira vez, sentiu as suas palmas cuspindo fogo, não do tipo que se faz só para vista, mas de lume fátuo.

Mesmo que a sua glória se viesse a revelar de curta duração, teria uma luminosidade que não poderia ser ignorada.  

— Pedro precisa confiar em mim. Vinte lobos do mar de aspeto feroz não seriam exatamente uma comissão de boas-vindas que descansasse um Imperador.

 O príncipe elevado por si mesmo a imperador ainda não tinha coroa com a qual se pudesse fazer retratar, mas tinha marcado o seu vigésimo-quarto aniversário com a fundação oficial do Império do Brasil e uma aclamação que alterava muitos ânimos.

 – Porque é que Pedro foi marcar esse encontro tão perto de Santos?

Anna despertou do ensaio mental que vinha fazendo, inconsciente para o fato de que semicerrava os olhos e não escondia o desdém carregado de malícia na hora de responder ao pirata:

— Se eu tivesse que adivinhar, diria que ele vai aproveitar para visitar aquele rabo de saia que conheceu no final de agosto. Não sei como Leopoldina aguenta. Se fosse meu marido…estrangulava o bastard com as minhas duas mãos!

O inconsciente irrequieto, esse ser carregado de graça, impeliu a loira a exemplificar o gesto, não conseguindo agarrar entre as mãos um punhado de ar inocente.

O fogo da revolta lhe tomava conta da íris e lhe enrubescia as maçãs do rosto, o que, para o marido, não podia ser uma imagem mais agradável, ainda que nele se observasse como resposta o movimento mecânico de tentar proteger partes anatómicas vulneráveis:

— Já tomei nota, Marquesa.

Não seria o receio justificável de estarem cercados por um regimento inteiro que lhes tiraria o sentido de humor.

Tiago voltou para perto dos cavalos que pastavam placidamente e retirou de uma das selas uma cesta.

Mesmo contra a vontade de Anna, desde que lhe tinha sido anunciada a boa-nova da gravidez, o Capitão a vinha mimando em dobro e a alimentando em triplo.

Abrindo o cabaz de verga, o futuro pai começou a dispor em fila o banquete que pretendia transformar em refeição da inglesa:

— Tem sopa, suco….

Ferrão espreitava o conteúdo do cesto e enumerava a lista digna de um cardápio de taberna de qualidade:

—…. morango, laranja e você precisa se alimentar direito.

Num momento ligeiro não antecipado pela gravidade do dia, ela se sentiu salivando, mordendo o lábio inferior, e provocando a curiosidade incontida de Tiago:

— Que foi?

— Me deu um desejo de comer um leitãozinho…

Ambos riram. Não se tratava, nem de perto, nem de longe, do desejo de grávida mais esdrúxulo que a inglesa tinha tido durante aquelas semanas.

Não fosse estar tão perto da linha terminal de um precipício metafórico, Anna estaria tendo uma gravidez tranquila. Tanto tempo em cima de água embalava a futura mãe da mesma forma que o seu líquido interno vinha embalando o filho.

O tempo que tinham passado dentro do Marquesa, arquitetando os pormenores do plano, acertando acordos e pactos e vendo uma barriga feliz crescendo, tinha dado a Anna e a Tiago uma estranha certeza de que a criança que vinha a caminho estaria, de uma forma ou de outra, para sempre ligada àquele modo de vida.

Certa noite, Ferrão tinha sido acordado pelo abanar de um tsunami vindo, não debaixo do casco do navio ou por cima do convés, mas sim do lado esquerdo da cama.

Esfregando os olhos, viu uma doida adorável sobrevoando a sua face com o motivo para o terremoto emocional:

— Sonhei com o nome do bebé, se for um menino.

Ele riu, puxando Anna Millman para o abraço mais apertado que a segurança lhe permitia antes de fazer um pedido acertado:

— E, para variar, vai manter segredo. Tudo bem, mas só se eu escolher o nome se for menina.

Encurralada por si mesma, Anna assentiu, assustada com o gosto peculiar do marido no que se referia a escolher denominações:

— E se for menina vai ser…

Consciente da represália, Tiago manteve o limbo do silêncio, atormentando numa luta igual os lábios que se inclinavam sobre ele, na tortuosidade da antecipação antes da concretização desejada:

— Se for menina, eu também vou manter segredo sobre o nome até ao nascimento. Ficou achando que, só porque me conseguiu levar até ao altar de padre Olinto, vai me conseguir dobrar sempre, Marquesa?

A capitoa do seu próprio barco podia não o conseguir verbalizar, mas apreciava aquela picardia bem-humorada que sempre ardia entre eles, do fogo eterno com que se devoravam entre gestos e palavras para que renascessem uma vez mais e nunca se deixassem de sentir vivos.

Estariam juntos até ao fim, ou até um novo início.

 Naquele prado verde, enquanto esperavam um talvez ambicionado, Anna sentiu a voz embargada:

Thank you.

Ferrão desistiu de montar a secção de sobremesas e as substituiu por beijos açucarados:

— A lista de agradecimentos devidos é longa. Você vai ter que ser mais específica, meu amor.

Anna esqueceu a linha do horizonte e se fixou nos olhos do seu Captain:

— Obrigada pelo que vamos fazer. Sei que você só aceitou para me ajudar.

— A liberdade é também entender o outro. Se você confia em Pedro para governar o nosso Brasil, eu também tenho que acreditar que ele vai ser capaz de cumprir os sonhos dos oprimidos.

Nenhum dos dois era ingénuo. Ambos sabiam que a vida real estava muito longe de uma fábula, mas a inglesa se defendia com o conhecimento íntimo sobre o governante diante do qual se tencionava colocar de joelhos:

— Pedro não é um tirano…

— Mas se arrisca, com muita facilidade, a sofrer o destino de um. É o que acontece sempre que demasiado poder é confiado a apenas um homem.

O referido homem e não o seu crescente mito nasceram no horizonte longínquo, cavalgando como um herói de histórias antigas, valentes solitários que embatiam de frente com exércitos inimigos.

Chegara o momento da dolorosa confrontação, a hora fatídica onde nascem os fortes.

Ferrão nada disse quando o Imperador desmontou com estrondo e se afastou com Anna até uma sombra. Aquela conversa incluiria palavras que pertenciam somente aos dois.

A loira demorou alguns segundos a reconhecer naquelas feições transfiguradas por linhas cansadas o príncipe que tinha sido o seu.

Pedro também se sentiu preso pelo turbilhão de sentimentos contraditórios pela mulher diante de si.

Ela, que durante anos tinha sido a sua segunda dama, tinha sido também a mulher invisível puxando os cordões de um jogo manipulado que visava transformá-lo numa marioneta de uma potência estrangeira.

No homem ferido, a raiva engoliu o amor e o respeito de anos:

 – Me dê uma boa razão para eu não fazer uma execução sumária, com as minhas próprias mãos, nesse exato momento. Eu confiei os meus filhos a uma traidora!

Com a calma que lhe foi possível manter, ela lhe deu todas as razões que ele precisava conhecer e despejou tudo o que sabia numa torrente de cheia que lava, mas destrói tudo no seu caminho.

Não se pedia que Pedro se defendesse da ameaça de inimigos anónimos, mas sim de todos que lhe eram próximos. Estava em causa o sangue do seu sangue e Anna conhecia o percurso de cada gota.

 As objeções e as interjeições do Imperador se foram esgotando e se obliterando à medida que lhe falhava a capacidade de resposta:

— A minha mãe… o meu próprio irmão…

— Intercetei e li a maior parte da sua correspondência secreta com os seus espiões no Brasil. Dom Miguel e a Rainha estão preparados para arriscar tudo num golpe de estado. Eles irão aniquilar tudo o que estiver entre eles e o poder do trono. Consegue entender?

Pedro mal conseguia esconder a face pálida diante da informação que teve que considerar como certa. Para se manter no trono, não existia um ser vivo em quem pudesse confiar?

Como sempre, Anna lhe lia os pensamentos e os ajudava a organizar:

— Infelizmente, sua Majestade não pode confiar em ninguém. Nem em José Bonifácio.

A menção ao grande amigo e mentor fez estalar de novo a revolta do antigo príncipe rebelde:

— O meu próprio ministro?

Qualquer um teria que admitir que José Bonifácio de Andrada e Silva era um homem muito à frente do seu tempo, um académico nato e um servidor leal. A tragédia consistia em admitir que mesmo as suas melhores intenções iriam provocar dano ao Império.

— José Bonifácio é muito bom a fazer amigos, mas ainda melhor a fazer inimigos.

A declaração de Anna, feita em tom assertivo, provocou uma onda de choque no homem que a agarrou pelo braço, se esquecendo que um outro o observava atentamente, procurando o momento necessário para defender a mulher amada:

— Você está me pedindo que eu acredite numa espia contratada para me vigiar!

A inglesa fez um sinal discreto para que Ferrão se mantivesse afastado. Olhos nos olhos com Pedro, ela se abriu numa flor de sinceridade cujas pétalas se recusavam a murchar:

— O meu amor pelos príncipes sempre foi verdadeiro. Eu preciso da minha redenção. Quero pagar a minha dívida pessoal.

Pedro fraquejava com facilidade diante de uma mulher bonita, mas diante daquela, se sentiu derrotado na sua apreensão pela franqueza com que Anna o desarmava:

— Como é que, depois de tudo, eu posso ter alguma certeza de que você me vai dizer alguma verdade?

Séria, ela pousou a mão sobre o ventre, a maior jura de fidelidade que alguma vez poderia fazer na vida:

— O meu filho vai nascer brasileiro. Sua Majestade sabe como um pai ou uma mãe só querem um mundo melhor para criar os seus filhos. Eu quero um país livre para o meu. Quero que ele ou ela tenha a oportunidade de crescer feliz numa terra segura.

Pedro vacilava na sua certeza, descobrindo a área cinzenta num mundo dividido entre preto e branco. Era nesse terreno inexplorado em que a inglesa procurava alicerçar o novo país:

— Conheci o homem debaixo do príncipe, mesmo antes de ele se tornar imperador. Sei que ele ainda não tem um plano.

Ele riu em tom sarcástico, libertando a loira do aperto físico em que se encontrava:

— E você tem? Claro que tem, Anna Millman…

— Para que o Brasil não morra antes de nascer, Sua Majestade precisa de uma esquadra…de uma frota que não tem e de alguém que a comande.

Ironicamente, o saque dos homens do já inexistente Lobo do Amor podia ainda servir para pagar pela construção de muitos outros barcos.

Pedro não conseguia dispor dessa quantia, mas ela podia ser emprestada pelos piratas, ainda que a discrição se impusesse no momento.

Sem reserva, o Imperador percebeu pelo discurso da inglesa como Anna estava inspirada para agir:

— O primeiro objetivo a cumprir é unir o Brasil. A única forma de o fazer vai ser através da marinha. Consigo colocar do seu lado um amigo do meu pai que serve na marinha chilena.

De métodos duvidosos, mas altamente eficazes, Lord Cochrane era o homem certo numa hora necessária.

— Thomas Cochrane deve muitos favores à minha família. Sei que José Bonifácio já o convidou a vir para o Brasil, mas sei também que ele só vai aceitar se eu cobrar a dívida de sangue que ele tem para com os Millman.

De uma forma sincera, o homem mais poderoso do Brasil teve pena de não ter forma de dispor de Anna como seu general. Qualquer um tremeria de medo ao ter que lidar com ela:

— Se Sua Majestade permitir que Lord Cochrane o sirva oficialmente; eu, o Capitão Ferrão e os nossos barcos o seguiremos em segredo e conquistaremos as províncias juradas a Portugal.

O homem debaixo da coroa entendeu que existiam momentos em que até um imperador precisava voltar atrás na sua palavra. De formas diferentes, Anna e Pedro precisavam um do outro.

Se despediram como antigos amigos que se redescobriam depois de décadas de separação.

Antes de Pedro voltar à posição majestosa de se encontrar sentado no lombo do seu cavalo lusitano, Anna lhe entregou a boneca de pano cosida nas poucas horas ociosas.

Podia ter conseguido a sua segunda oportunidade, mas não iria escapar incólume, principalmente das lágrimas que procurava ignorar:

— Pode entregar de presente para Maria da Glória? Não precisa dizer de quem é.

O príncipe e a plebeia sentiram aquele, como o momento em que se quebrou o vidro que os separava.

Pesaroso, Pedro voltou a subir para o cavalo e para um nível que ela não conseguia alcançar:

— Anna, não tenho como te levar de volta para o Rio.

Ela sorriu, voltando o olhar para Tiago:

— Eu sei. De qualquer forma, eu não queria voltar, Pedro.

No marido de Leopoldina era natural o instinto de querer fecundar cada mulher que se atravessava na sua frente, de fazer filhos com a mesma simplicidade com que uma árvore dá frutos.

Com bonomia, Sua Majestade riu e apontou com o indicador na direção da barriga da inglesa:

— Então, quer dizer que eu perdi a minha chance.

— Nunca a teve, Majestade, mas pode contar comigo do seu lado para sempre.

Com um leve toque no chapéu, Pedro de Bragança se despediu de Anna e de Ferrão. Se encontrariam de novo em breve.

Esquecendo tudo o resto, Tiago se aproximou de Anna, a abraçou pela cintura e lhe plantou um beijo na testa:

— Finalmente, tudo termina bem.

No meio de tantas dificuldades, quase custava a crer que aquele momento se tivesse desenrolado com tanta facilidade aparente. Quem controlava os fios do destino gostava de brincar com os sentimentos dos seres humanos, mas Tiago escolheu aceitar aquela benesse sem colocar qualquer tipo de condições futuras.

Anna não se sentia de forma contrária, mas discordava em parte com aquela avaliação:

No, my love. Agora tudo começa, só que dessa vez do jeito que sempre deveria ter sido.


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Notas finais do capítulo

Nota histórica: Durante algum tempo, algumas províncias mantiveram focos leais a Portugal e contrários a Pedro. Lord Cochrane foi decisivo nas lutas da independência da Bahia e do Maranhão e na unificação do Brasil. Adicionalmente, foi também amigo de Maria Graham. Tenho uma certa inclinação por personagens imperfeitas, mas não são assim os seres humanos? :) Anna e Ferrão, essas criaturas complicadas, mataram, roubaram e enganaram, mas eu não consegui evitar adorar esses dois criminosos :). No último capítulo: um pequeno salto até 1824 para uma breve despedida. Beijo para todos!



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