Sem-Coração escrita por Ju Do


Capítulo 10
Capítulo 10: O Espelho


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! =D



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/706571/chapter/10

— Nós tínhamos mesmo que jogar fora? Poderíamos ter usado para ameaçar mais alguém, se precisássemos, sei lá...

— Tínhamos. - a Rainha falou, com firmeza.

— Mas nós nem sabíamos o que tinha lá dentro...

— Exatamente, e, por isso, foi ainda mais importante que jogássemos fora.

Os dois cavalgavam tranquilamente por uma estrada. O dia estava meio nublado, e uma leve névoa dificultava a visão.

Os dois discutiam sobre a poção da Rainha da Noite. Pouco depois de deixarem o castelo do Duque, a Rainha insistira que se livrassem do frasco, para decepção do Cavaleiro. Ele haviam se afastado da estrada e cavado um buraco, o mais fundo que haviam conseguido, e jogado a poção lá dentro. Estava agora enterrada em um lugar desconhecido e, a menos que alguém cavasse bem fundo naquele local específico, ali ficaria até o final dos tempos.

— Era uma arma efetiva...

— Era um feitiço de magia negra. Carregar aquilo por aí com certeza só nos traria má sorte.

O Cavaleiro abaixou a cabeça, derrotado. No fundo, sabia que a Rainha tinha razão.

Passaram alguns momentos em silêncio, até que o Cavaleiro ergueu bem a cabeça e olhou ao redor, notando algo estranho.

— É só minha impressão ou... A névoa está ficando mais espessa?

A Rainha parou e olhou ao redor também, com atenção.

— Está. - ela falou, após alguns momentos, com um tom sombrio. Alguns minutos antes, dava para ver tranquilamente a estrada à frente. Agora, só se conseguia ver dois metros. Aquilo não era natural.

— Isso é normal?

— Não. - a Rainha suspirou. - Eu só espero realmente que não seja o que eu estou pensando.

E com aquela advertência nem um pouco animadora, os dois seguiram a viagem.

Infelizmente, é claro que era exatamente o que a Rainha estava pensando. Após algum tempo, os dois chegaram na frente de uma parede de pedra cinza de quatro metros de altura, com uma abertura em forma de arco que dava para um corredor estreito. A Rainha suspirou.

— O que é isso? - o Cavaleiro perguntou.

— Era disso que eu tinha medo. Fomos pegos num labirinto.

— Um labirinto? Mas não tem problema, basta a gente contornar.

— Não, não basta. Desde que entramos nessa névoa, estamos fadados a entrar no Labirinto. Era uma armadilha. Eu não tinha percebido.

— Fadados? Mas basta contornar...?

— Não, não basta. Agora, não importa para onde formos, ele vai reaparecer em nossa frente. O único jeito de sair daqui é atravessá-lo.

O Cavaleiro olhou para o corredor estreito de pedra cinza.

— Bom... Não pode ser tão ruim. Basta a gente atravessar. Não pode ser tão difícil. São só paredes de pedra.

A Rainha o olhou, quase que com pena.

— Não são só paredes. O Labirinto tem vida. Ele pensa. Ele confunde. É fácil se perder lá dentro. Não o subestime. - ela pensou por um momento. - É melhor descermos dos cavalos. Eles podem disparar lá dentro por conta de alguma coisa e nós nos perderemos. E fique perto de mim.

Assim, os dois desmontaram e conduziram os cavalos na mão para dentro do Labirinto. O Cavaleiro estava inquieto. Dizia a si mesmo que aquilo não fazia sentido, que era apenas uma construção de corredores de pedra, mas, mesmo contando a floresta da Rainha da Noite e a caverna do Dragão, aquele era, sem sombra de dúvidas, o lugar mais inquietante em que ele já estivera. A névoa tornava difícil de enxergar, e as paredes pareciam respirar. A sensação era de que alguém os estava observando, mas ele olhava ao redor e não via ninguém.

Nenhum dos dois ousava quebrar o silêncio do lugar, interrompido apenas pelo barulho anormalmente alto dos cascos dos cavalos batendo no chão de pedra.

— Espere. - ele falou, de repente. - Nós já não passamos por aqui antes?

Olhou para os lados e para trás. As paredes pareciam estranhamente familiares. Mas se bem que tudo parecia igual do mesmo jeito ali dentro.

— Eu tenho certeza de que nós já... - mas, ao olhar para frente, ele não encontrou mais a Rainha. Parou. Chamou por ela. Ninguém respondeu. Andou um pouco mais para frente, mais veloz, tendo certeza de que a encontraria um pouco mais além. Mas, quando, após alguns minutos, ela não apareceu, ele teve que aceitar a realidade. Eles haviam se perdido um do outro.

 

 

— Não gosto desse lugar. - a Rainha admitiu. - É como se alguém estivesse nos vigiando de cima... Brincando conosco.

O Cavaleiro não respondeu, e ela virou-se para ele, estranhando. Atrás de si, só a névoa e sua sombra. Ela o chamou, mas ninguém respondeu. Andou um pouco mais para trás, mas ele não estava ali. Ela suspirou.

— Ótimo.

Olhou ao redor. Havia alguma coisa estranha. Ela procurou algo de diferente na paisagem, mas não havia nada. Só as paredes cinzentas, a névoa, e sua própria sombra no chão. O que havia de errado?

Sua sombra... Não havia sol. Não deveria haver sombra.

Ela olhou para a figura escura no chão, exatamente do seu tamanho, saindo de seus pés. Inesperadamente, uma boca surgiu, e a Sombra sorriu.

 

 

O Cavaleiro tentava se acalmar. A Rainha havia sumido, mas o lugar continuava sendo apenas corredores de pedra ligados. O que tinha que fazer agora era encontrar a saída. Tinha certeza de que ela faria o mesmo, e eles se encontrariam no final. Por isso, continuou andando. Passaram-se horas. Ele começou a cansar.

Finalmente, chegou em uma salinha. Era um lugar pequeno, mas um pouco mais amplo, quadrado, e não retangular, como os corredores. No centro, havia uma fonte, e ele se sentou à sua borda. Considerou beber de sua água, mas, após pensar um pouco, decidiu que seria melhor não. Quase conseguia ouvir a voz da Rainha em sua mente, o repreendendo por sequer pensar na possibilidade.

Ele suspirou, cansado, e ergueu os olhos. Ali, na parede da sala, estava um espelho emoldurado, pendurado na altura dos olhos de uma pessoa adulta em pé. Aquilo com certeza não estava ali antes.

Fascinado, o Cavaleiro se ergueu e parou perto do espelho. Sua figura o olhava de volta, tão confusa como ele. Olhou ao redor, procurando alguém que pudesse ter pendurado o objeto ali, mas não encontrou ninguém. Voltou a olhar para o espelho. Estreitou os olhos e aproximou o rosto da superfície. E então, o reflexo abriu um sorriso, inesperadamente.

— Olá. - a reflexão falou com sua voz, e o Cavaleiro recuou, assustado. A figura riu. - Vamos lá, está assustado consigo mesmo?

O rapaz observou a si mesmo, no espelho, mudo.

— Que covarde. Vamos, fale alguma coisa. Espelho, espelho meu. - a reflexão zombou. - Existe alguém mais inútil do que eu? Mas claro que não.

— Do que você está falando? - ele perguntou, recuperando a voz.

— De você, é claro. De quem mais eu estaria falando? Você é o único por aqui. Ah, mas claro que você se confundiria. Inteligência não é bem o seu forte, não é mesmo? Aliás, qual seria o seu forte? - o reflexo o analisou. - Não consigo achar nenhum. Você consegue? Vamos, me diga algo de bom sobre si.

— Eu... sou um cavaleiro. - ele balbuciou.

— Há! Mas claro. Você foi o único a se apresentar, bobão. A Rainha não tinha qualquer outra opção que não fosse você. Isso não vale. Fale outra coisa.

— Eu matei um dragão.

— Com a ajuda da Rainha. A Rainha que você deveria proteger. E ela ainda teve que lhe salvar depois. Sem ela, teria morrido. Que tipo de cavaleiro é você? Só consegue matar um dragão com a ajuda de uma moça, e depois, ela ainda tem que lhe resgatar.

— Ela o fez porque gosta de mim. - ele falou, sem muita certeza. O reflexo riu.

— Vamos lá. Nem você acredita nisso. Nem tente. Você vê os olhares de desprezo que ela lhe dá. Como ela poderia gostar de um homem que nem consegue tomar conta de si mesmo sozinho? Um homem que nem ao menos consegue derrotá-la em uma luta de espadas? Você acha que ela sequer o respeita?

— Eu... - o Cavaleiro tremeu.

— Não, ela não o respeita, e como poderia? Você não é digno. Filho de um caçador, não conseguiu seguir a profissão do pai, não foi mesmo? Era péssimo como caçador, e não conseguia nem pegar um mísero coelho. E, aí, desistiu e decidiu que ia ser um cavaleiro. Mas a cavalaria não é para filhos de caçadores. A cavalaria é a função dos nobres. É a função daqueles que nasceram para isso. E você não nasceu para isso. - o reflexo sorriu. - Não nasceu para nada, para falar a verdade.

— Não é verdade. - o Cavaleiro tentou falar, com firmeza. Mas sua voz tremeu. - Eu só preciso treinar mais.

— Treinar mais? Garoto, nenhuma quantidade de treinamento vai conseguir fazê-lo bom em alguma coisa. Ninguém vai respeitá-lo. Você é uma criatura covarde e fraca, não é digno de ser chamado de homem. Você sabe disso. Até você próprio se despreza, eu sinto isso dentro de você. Lá no fundo, você sabe. Sabe que não é digno da Rainha. Sabe que não é digno do título de cavaleiro. Sabe que não é digno de nada!

O reflexo estendeu seus braços, e as mãos saíram do espelho, agarrando o pescoço do Cavaleiro. Os dedos se cravaram em sua garganta, e começaram a apertar. O Cavaleiro engasgou e usou suas próprias mãos para tentar se soltar. Mas seus braços pareciam fracos, e ele não conseguia abrir o aperto de ferro em sua garganta.

— Vê? Você nem ao menos consegue se libertar de si mesmo. - o reflexo inclinou a cabeça. - Ou será que você não quer? Acho que não quer se salvar. Porque sabe que não merece. Você. Não é digno. De viver.

O reflexo mostrou os dentes em um esgar e apertou com mais força. O Cavaleiro caiu de joelhos no chão, engasgando e tentando desesperadamente respirar. As coisas começaram a rodar ao seu redor. Tudo que conseguia ver era o reflexo de si mesmo, que lhe sorria malignamente, apertando seu pescoço. Pontos pretos começaram a surgir em sua visão. Ia morrer. E talvez fosse melhor assim. O espelho tinha razão.

— Claro que eu tenho razão. É melhor assim. Desse jeito, você não poderá falhar novamente com sua Rainha. Ela irá se livrar de você. Arranjará outro cavaleiro, um que mereça de verdade o título, e que poderá merecer portar a espada mágica do Rei. Alguém que tenha uma mínima chance de derrotar o Imperador e tomar o coração dela de volta. Alguém que não seja você. Alguém que seja homem de verdade. - ele riu. - Assim, não poderá ser um empecilho para mais ninguém. Seu pai, a Rainha, o reino, o mundo se livrará da criatura vergonhosa que é você. E assim...

A voz foi interrompida e soltou um grito alto e agudo. O Cavaleiro ouviu um som de algo quebrando e as mãos deixaram sua garganta. Ele caiu no chão de quatro, tossindo e tentando respirar, enquanto o oxigênio entrava aos borbotões em seus pulmões.

Após alguns momentos, ele conseguiu erguer o rosto, ainda tossindo, e viu a Rainha. Ela estava de pé, olhando para ele, com sua espada na mão. Por trás dela, o espelho havia se quebrado em milhares de estilhaços.

— Respire. Seu rosto está roxo. - ela se abaixou ao seu lado, colocando uma mão em suas costas. - Está tudo bem. Ele já se foi.

O Cavaleiro tossiu e arquejou por mais alguns minutos, antes que conseguisse, finalmente, se sentar.

— O que era aquilo? - ele perguntou, abalado. Seus lábios tremiam.

— Espelho Mágico. Eu esqueci de falar. Regra número cinco do Manual da Princesa. - ela tentou animá-lo com uma brincadeira. - Espelhos são malignos.

O Cavaleiro não sorriu.

— Você... Você ouviu o que ele estava falando? - ele perguntou, temeroso.

— Não. - a Rainha o observou atentamente. O Cavaleiro percebeu que estava com os olhos levemente marejados e desviou o rosto, tentando discretamente limpar as lágrimas. - Ele falava só para você. E falava mentiras.

Ele ergueu os olhos para ela.

— Como você sabe?

— É um espelho mágico. Eles mentem para quem se olha neles. É de sua natureza. Não acredite em nada do que ele falou.

O Cavaleiro não respondeu e a Rainha estreitou os olhos, preocupada. Ele havia caído no feitiço do Espelho. Ela sabia um pouco sobre aqueles objetos. Normalmente, eles apenas falavam coisas sobre as quais você já pensava. Suas piores vergonhas, seus piores pensamentos, seus piores momentos. Tudo que havia de ruim em você. Ela esperava que o Cavaleiro não houvesse percebido que o Espelho, na realidade, só repetia seus pensamentos. Que o Espelho, na realidade, era ele. Tinha que pintá-lo na cabeça do Cavaleiro como uma entidade separada e independente, ou ele poderia enlouquecer.

— Não pense mais nisso. - ela tentou falar com gentileza, e, ao mesmo tempo, com firmeza. - Se continuar pensando nesse Espelho, vai se perder. E eu preciso de você aqui.

— Precisa? - ele perguntou, incerto, a voz fraca. Ela apenas acenou com a cabeça, confirmando. O rapaz respirou fundo, abaixando a cabeça por alguns momentos. Depois de um tempo, levantou-se e ajudou a Rainha a ficar de pé, erguendo o rosto. - Como você me achou?

A Rainha começou a ficar mais tranquila. Ele estava mudando de assunto. Agora, tinha que ajudá-lo a ocupar sua mente.

— Não sei exatamente. Acho que consegui uma vitória momentânea contra o Labirinto, e ele acabou me deixando achar você. Simplesmente tropecei nessa sala.

— Uma vitória contra o Labirinto? Como assim? Você lutou contra ele?

— Bom, minha Sombra tentou me matar. - a Rainha falou, encolhendo os ombros. O Cavaleiro arregalou os olhos. - Não foi muito agradável. Mas eu consegui derrotá-la, e acho que isso deixou o Labirinto mais fraco.

— Você derrotou sua própria Sombra?

— Sim. Como eu falei, não foi divertido. - ela tentou fazer aquilo não parecer grande coisa. Não queria que ele se preocupasse. Mas não conseguiu evitar que sua voz tremesse um pouco. A luta com a Sombra era algo do qual ela não deveria se lembrar, assim como o Cavaleiro não deveria se lembrar do Espelho.

Os cavalos haviam sumido, assustados respectivamente pelo Espelho e pela Sombra, e eles tiveram que continuar a viagem a pé. Os dois andaram por mais algumas horas. Dessa vez, a Rainha o segurava pelo braço, e ele não sabia se era para apoiá-lo ou para não se perderem mais. Mas não havia com o que se preocupar. Duas derrotas pareciam ter sido o suficiente para aquietar o Labirinto. Nada mais apareceu, e após mais algumas horas, encontraram uma abertura em arco e passaram por ela.

Imediatamente, a névoa se afinou e o sol começou a brilhar por cima de suas cabeças. Os dois suspiraram, aliviados, e olharam ao redor. Estavam na estrada novamente. Dos dois lados, havia árvores de um bosque, e barulhos de passarinhos enchiam o ar.

Ao olharem para trás, o Labirinto havia desaparecido. Restava apenas a curva da estrada e o bosque.

— Sobrevivemos. - a Rainha sorriu, fraca. O Cavaleiro também lhe sorriu, trêmulo. Ela lhe deu um tapinha no ombro e soltou-lhe o braço. - Acho que vamos continuar a pé daqui.

E, com aquilo, ela sorriu e começou a andar. O Cavaleiro a observou pelas costas.

“Você não é digno.” As palavras ressoaram em sua mente.

Ele cerrou os punhos e saiu andando atrás da Rainha.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Olá, galera! Obrigada por lerem mais um capítulo!

Um capítulo um pouco mais sinistrinho, por falar nisso. Consegui assustar até a mim mesma com a Sombra da Rainha, por mais que ela apareça pouco. Na hora de dormir fiquei imaginando uma sombra com uma boca sorrindo pelo chão do quarto...

Pois sim, avisando logo aqui, antecipadamente, que nossa história está chegando ao fim. Este é o penúltimo capítulo. No próximo, a história acaba. Então fiquem de olho!

Dúvidas? Elogios? Críticas? Todos serão bem-vindos. Obrigada por ler novamente e até o próximo capítulo!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sem-Coração" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.