Leal a seu senhor escrita por Ágata Arco Íris


Capítulo 7
O pecado de um deus




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No mar, perto da costa de Niigata, ondas enormes se formavam e assustavam a todos moradores da região, eles esperavam o pior visto a agitação das águas. Longe do campo de vista dos moradores estava um enorme Mizu-Tatsu, ou dragão de água; lutando contra o dragão estava Susanoo e sua arma barbara de laminas demoníacas, Onigiki, a espada forjada da alma de Kazu-tsuchi.

Kazu não aceitava muito bem as ordens de Susanoo, ambos estavam juntos há quase dois anos e o deus do fogo se recusava servir aos propósitos egoístas do deus impulsivo. Quando seus irmãos lhe disseram que seu mestre era um deus da guerra, Kazu se sentiu honrado e feliz por tal coisa, mas o deus nunca havia usava sua lâmina em batalha. Segundo o próprio deus, sua lamina era de um corte monstruoso e cortava até montanhas, mas tamanho poder não podia ser usado perto dos humanos, Susanoo temia que onigiki fosse mortal.

Mas como um deus da guerra não utiliza armas que matam? Creio que esteja se perguntando isso agora. Susanoo era um deus da guerra, mas também era um deus de temperamento instável, ele mesmo tinha essa consciência, e não queria lamentar a perda de várias vidas por conta de tal impetuosidade, então forjou todas suas espadas como espadas de vento. Espadas de vento são incapazes de matar humanos, mas tem um corte cirúrgico sobre yokais e outros habitantes do mundo extra-físico.

Voltando ao mar de Niigata, mesmo Susanoo tentando ser um deus melhor, naquele dia seu juízo havia sumido do mapa. Ele caçava o dragão desde Izumo e queria matar a qualquer custo o animal. Mentalmente, Kazu-tsuchi tentava conversar com seu mestre, mas tudo que dizia parecia em vão, ele não o escutava.

—Mestre, pare com isso, as ondas estão só aumentando.

—Maldito seja esse dragão!! –Gritou Susanoo ao ser jogado longe pelo animal—Satoru, sua espada estupida, se você me fizer errar mais uma vez eu juro que te jogo fora!

Susanoo não escutava seu servo, muito menos a voz da razão, sua ira influenciava o mar ao redor e os golpes com Onigiki só deixavam a água mais agitada ainda. Kazu-tsuchi, nomeado Satoru pelo deus dos mares, não achava que aquele confronto terminaria bem, temia pelos moradores de Niigata.

Com todas suas forças Susanoo pulou sobre o dragão, um urro de dor foi ouvido do animal, o deus havia cravado a espada no peito do dragão e rasgado sua pele, ainda com um impulso ele usou sua espada para se jogar para cima. Susanoo estava a alguns metros da cabeça do dragão, se preparava para dar o golpe final no animal. Foi quando Satoru viu o tamanho das ondas que se formavam ao redor, ele sabia que se Susanoo matasse o dragão, as ondas invadiriam a cidade, matando milhares. Então como um bom servo ele fez o que era preciso, queimou as mãos de Susanoo.

Assim que a dor atingiu sua pele, ele se desiquilibrou e esqueceu toda a raiva que sentia, fazendo o mar se acalmar e voltar à sua forma natural. Como reflexo, o dragão jogou o deus longe e fugiu logo em seguida. Susanoo caiu na praia, sobre uma pedra, Kazu caiu fincado na areia perto de seu mestre.

 —Desgraçado! Como ousa queimar minhas mãos. Eu estava a um fio de matar aquele dragão—Gritou Susanoo cheio de raiva e ferimentos.

—E de matar a todos nesta província—Disse Satoru voltando a sua forma humana.

—E daí?! O que importa os humanos? Ele roubou minhas perolas, engoliu elas, agora não tenho nada.

—E não vai ter remorso se fizer isso?

— Eu não conhe... — O deus parou de falar ao sentir algo quente escorrer sua pele fria.

Susanoo havia se dado conta do sangue que escorria em sua face e se lembrou de como era terrível a dor que sentia quando derramava sangue dos pescadores e demais humanos. Como deus encarnação do mar, ele devia ser adorado por todos, mas não era o que acontecia, sua inconstância causava medo naqueles que deviriam ama-lo por ser fonte de vida e alimento.

Ele fazia de tudo para se controlar, mas momentos como aquele, meros segundos eram capazes de fazer o deus perder tudo que era, tudo que tinha e até o que podia ter para raiva. Por esse motivo, Izanagi havia dado os oceanos para Ryujin, o reino das águas precisava de alguém centrada para cuidar de seu filho problemático. Susanoo se sentia humilhado, pois Amaterasu e Tsukuyomi não precisavam de ninguém para cuidar de seus reinos, eram donos de si mesmo, mas ele não. O deus se sentia como uma criança carregada para cima e para baixo, amparado por babás. Seu irmão Tsukuyomi o ajudava com as ondas, até aí tudo bem pois eram irmãos, mas para piorar, ele tinha poderes limitados por um deus mais novo que ele.

—Você pode me jogar fora, eu não me importo—Disse Satoru se sentando ao lado de Susanoo— Mas eu não vou te deixar matar ninguém. Aliás, eram só pérolas, você consegue outras rápido.

—Eram pérolas negras vindas do yomi seu idiota, eu não conseguirei algo tão raro assim tão cedo— O deus se jogou na areia e ficou a olhar o céu— E eu só queria fazê-la feliz...

—Então isso tudo era para uma mulher, quem meu senhor?

— Não é da sua conta novato!

—Se você pretende me usar para matar alguém ou alguma coisa, é totalmente da minha conta seu pescador cretino!

—Saia daqui! —Gritou Susanoo segurando suas lágrimas —Eu não preciso de você para me dar sermão, vá embora!

—Não vou, você vai ter que me escutar agora.

—EU... NÃO... PRECISO!!! — Gritou novamente o deus com uma lágrima escorrendo seu rosto, o mar se agitou novamente e o tempo fechou— Você é só mais um idiota desse mundo estúpido, eu só te aceitei como servo porque minha irmã pediu, mas você é um lixo e não serve para nada.... Minha vida seria muito melhor se você não fosse meu shinki.

Kazu-Tsuchi viu o estado de seu mestre e resolveu deixá-lo refletir sozinho, Satoru não estava em seu melhor humor também, então ir embora era o melhor a fazer.... Ele apenas virou-se e foi embora, quando estava já longe da praia ele resolveu olhar para trás e viu seu mestre gritando e ameaçando suas próprias ondas, como se elas não fossem parte dele.

— Eu também não queria ser seu servo, minha vida seria bem melhor se você não fosse meu mestre... Eu não sou sua posse....

O destino as vezes brinca com a gente, mas ele nunca perde o curso... Como um rio, naquele dia Kazu-tsuchi havia decidido por conta própria ir contra as regras e estava decidido a encontrar sozinha alguém a quem pudesse servir, talvez outro deus da guerra o aceitasse como arma. Inconscientemente tudo o que queria era algum deus poderoso que fizesse suas chamas quase extintas queimarem, deixar ele ser quem era....

Mudando de foco e lugar, indo para outra província do Japão, em Yatsushiro faltava um mês para o aniversário de dez anos de Emi, sua festa seria também sua iniciação como sacerdotisa. Tudo parecia estar bem, foi quando yokais afogados voltaram a aparecer no templo de Tamonten, e acabaram se tornado um problema para o deus, quer dizer, não literalmente para ele, mas para Emi.

Era um começo de tarde calmo, Bishamon treinava com Emi sua kagura, a dança criada especialmente para homenageá-lo. Ambos dançavam sobre a sombra da cerejeira sagrada do templo. 

—Mon-chan, onde aprendeu a dançar tão bem assim? — Perguntou Emi admirada com os leques do deus, sob a forma feminina Bishamon era pura graça e delicadeza.

—Benzaiten me ensinou—Disse o deus de olhos fechados dançando ao balanço do vento— Mas eu só sei dançar com a Yuka, sob qualquer outra forma eu volto a ser o pato desengonçado que sou. Você devia me ver dançando nas festas e casamentos, era humilhante.

—Mon-chan! — Disse a garota em um tom mais alto e parando de dançar, o deus também parou e lhe deu atenção.

—Hã?! O que foi minha estrelinha?

—Você é casado?

—Não, eu não sou. Por que essa pergunta tão repentina?

—Mas e Kichijōten? Nara-chan me contou uma história e disse que Tamonten era marido da deusa da fertilidade, fortuna, beleza e mérito.

—Kichijōten?! —Bishamon riu debochadamente— Não se engane com o nome, ela pode até ser a deusa da beleza, mas é uma casca vazia por dentro, não me interessa em nada uma mulher assim.  Se bem que.... Se parar para pensar um pouco eu sou casado sim, de certa forma pelo menos.

—Com quem?

—Minhas Mikos. Todos dizem que uma Miko é esposa de deus, sendo assim, eu acho que tenho um harém—O deus riu novamente.

—Uma Miko é uma esposa de deus? Tamonten, eu serei uma miko, então eu serei sua esposa?

—Humm... Segundo os homens, de certa forma sim.

—Então não quero ser uma Miko—Emi fechou a cara e cruzou os braços—Eu não quero me casar com uma mulher.

—Mas eu não sou mulher, você mesma já viu como sou de verdade.

—Sim, só que você é muito mais divertido, carinhoso e legal sendo mulher. Sendo assim, você deveria ser garota assim como eu e se casar com um homem.

—Mas eu não sou mulher, apenas gosto da forma de Yuka. Você está cansada de saber que ela me ajuda a me comunicar com minhas filhas, e como tenho mais filhas que filhos, uso com certa frequência essa forma.

—Você tem filhas Mon-chan?

— Sim, filhos também. Sempre enxerguei minhas sacerdotisas como minhas amadas filhas, que amam seu pai e cuidam de minhas moradas. E meus filhos por sua vez, são aqueles que cuidam de suas irmãs e mantem unida nossa família.

—Então eu seria sua filha ou sua esposa?

—Nem um nem outro —O deus se abaixou e olhou meigamente nos olhos de Emi—Você é e sempre será minha estrelinha.

—Mas é sério... —Emi abafou uma risada tímida— você deveria se casar com um homem, um grande guerreiro, quem sabe...

Tamonten se irritou com aquilo, mas não disse nada, apenas pegou seus leques e chamou Emi para dançar novamente. Ele ainda estava sob forma de Yuka, quando sentiu uma presença conhecida.

—Minha estrelinha, eu sei que é pedir demais, mas não fale nada perto de mim, outro deus acaba de chegar ao templo.

Ao terminar de falar isso, um Inugami, animal evocado para proteger saltou sobre a cerejeira e olhou ao redor, logo em seguida outro um pouco menor caiu no chão e igualmente analisou tudo ao redor. Bishamon não se assustou com a presença dos espíritos, apenas cruzou os braços e ficou observando; Emi por sua vez sentiu um arrepio em sua espinha e abafou um grito, Tamonten olhou calmamente para a menina, isso fez com que ela se acalmasse.

Aqueles Inugamis eram os maiores e mais grotescos que o deus já havia visto. Um inugami geralmente tem a forma de um enorme lobo, mas aqueles eram lobisomens, andavam sobre duas patas e eram maiores que um humano em todos sentidos. Bishamon só conhecia uma deusa capaz de evocar espíritos tão grandes como aqueles, Kodamagami, a deusa protetora dos yokais.

Depois que cada inugami terminou de analisar o local, ambos uivaram em uníssono, dando um sinal para um terceiro inugami chegar. Esse era diferente, usava um manto sagrado e carregava uma caixinha dourada em sua coleira, toda trabalhada em ouro e andava calmamente em direção ao deus.

—Mestra, a senhora já pode descer—Disse o terceiro inugami pondo a caixa no chão e se ajoelhando.

A caixa se abriu e de lá saiu uma pequena mulher, medindo aproximadamente dez centímetros, parecia uma fada sem asas, Kodamagami estava em sua forma reduzida.

—Tsutsuji, me ajude por favor—Disse a deusa com bom tom.

—Sim mestra— Disse a inugami à sua frente.

Tsutsuji(ou Azaleia em japonês) abaixou-se e estendeu sua mão esquerda para sua mestra, depois jogou um pouco de canela bem no meio de sua palma peluda. Kodoma inalou o pó e como já era esperado espirou logo em seguida. Ao fazer isso a deusa voltou à sua forma natural, de uma garota de aproximadamente dezesseis anos, era tão delicada, trajava um kimono branco com detalhes em vermelho. Seu cabelo era ruivo avermelhado, estava solto e enfeitado com diversas azaleias brancas e purpuras por todo comprimento.

—Tamonten — disse cordialmente a deusa se curvando perante o deus—O senhor teria um tempo livre para podermos conversar?

—Acho que sim, o que precisa Kodama-san?

—Uma calamidade está solando os bosques dessa região, meus yokais estão sendo mortos de forma fria e maciça. Eu sei que não é sua responsabilidade, nem especialidade, mas eu peço vossa ajuda Tamonten.

—Eu sei da situação, alguns afogados vieram para meu templo nos últimos meses, mas nada de anormal ao meu ver, deve ser um caçador.

—Não é um caçador—Disse Tsutsuji levantando a cabeça— Na última semana, um espirito tentou atacar minha mestra, isso não é normal.

—Mas espíritos as vezes se descontrolam, um humano pode tê-lo corrompido.

—Não era um espirito comum, era um hogo-sha.

—O que?! Isso é possível?

Hogo-sha são espíritos guardiões e protegem bosques e florestas, são incorruptíveis perante humanos, apenas o poder de um Oni ou algo pior é capaz de corromper tal animal. Sendo assim, estava claro que havia muito mais por trás da história dos yokais afogados. 

—Isso realmente não é comum, vou averiguar a situação e ver o que posso fazer Kodoma-san.

—Hum... Muito obrigada Bishamon-san —Disse a deusa se ajoelhando—Ahh, antes que eu me esqueça... Diga à humana que sou muito grata pela ajuda

Quando Kodoma mencionou Emi, a menina olhou rapidamente a deusa, sua cara de estranheza foi o suficiente para que Kodama percebesse que a garota a observava.

—Meu passarinho falava a verdade então, você é especial sabia? –Disse Kodamagami olhando nos olhos da garota-—Nenhum humano nunca foi capaz de me ver, pois sou uma divindade Yokai, mas você me enxerga.

—Você veio aqui só por causa dela? –Disse Bishamon firme e seriamente, o deus segurava adagas (que antes eram leques) escondidas em suas mangas.

—Você assusta mais sendo mulher—Disse Kodama se aproximando de Tamonten – Você parece ter ganhado mais coração e subjuga a razão a seus próprios desejos e sentimentos, isso é mais assustador.

—Por que diz isso?

—Parece mais humanos.... Humanos me assustam.

—E o que isso tem a ver com assunto em questão?

—Nada, mas pensei que respondesse sua pergunta. Voltando à garota, venho lhe pedir ajuda porque você não me esnoba, e apenas soube do poder de sua Miko. Ela é fascinante, um espécime de uma beleza imensurável.

—E o que você espera fazer com tal conhecimento?

—Nada. Não duvidaste de minha fidelidade Bishamon-sama? Acho que não anda com boa memória, esqueceu-se que eu protegi sua tão amada Ryuka, mesmo ela tendo se tornado uma Kitsune e caçadora de ossos no final de tudo? Sua filha me deu trabalho e você bem sabe disso.

—Hã? Uma de suas Mikos fez isso Mon-chan? –Perguntou Emi intrigada com a fala da deusa.

O deus permaneceu em silencio, apenas observando Kodama, engasgando-se com ódio e dor. Nada daquilo era culpa da deusa, mas aquela era uma das feridas mais expostas que o deus tinha sobre sua pele, e ela era uma das poucas que sabia de sua existência.

—Eu te ajudo Kodama-san, apenas não fale mais nada. Não me deixe mais desgostoso que eu já estou agora.

—Como queira, muito obrigada pela ajuda e solidariedade. E saiba que sua protegida também tem minha proteção e benção de vida, aquele que ajuda um yokai sempre terá minha ajuda.

Da mesma forma que Kodama chegou ela foi embora, retornou à sua forma reduzida e voltou para sua caixinha, seu inugami a levou embora escoltado por mais dois de seus irmãos que surgiram do nada, formando uma alcateia de cinco. Bishamon não deu atenção à Emi que lhe fazia perguntas atrás de perguntas, ele parecia estar distante, seu olhar focava o céu e as nuvens que ali passavam.

Ryuka era a humana que o deus mais havia amado em toda sua existência, mas também sua existência carnal era seu maior e mais devastador pecado.  Ela era sua filha de sangue e ele a deixou morrer.

 


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