Leal a seu senhor escrita por Ágata Arco Íris


Capítulo 6
O poder de uma criança




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Como de costume, Emi acordou antes do sol raiar e foi para o templo de Bishamon ouvir histórias, mas como já era hábito, a criança levava consigo comida para o deus. Nesta manhã, em especial, ela estava muito ansiosa, pois era a primeira vez que ela mesma havia cozinhado algo para Tamonten. Naquela manhã fria, sua avó havia acordado cedo como ela e lhe ajudou a preparar o arroz e a montar tudo que queria levar para o deus. 

—Mon-chan! —Gritava Emi, procurando Bishamon ao redor do templo.

—Ai, já é manhã? —Disse Bishamon em sua forma original, o deus havia acabado de acordar e ainda estava deitado—A noite mal passou direito.

—Levanta Onii-chan, vem comer—A criança ajoelhou-se e entregou o embrulho com toda a comida para o deus—Hoje fui eu que fiz.

—Hã?! Então minha estrelinha agora é uma cozinheira? — Disse o deus se levantando.

—Sim senhor, minha vovó disse que estava passando da hora de eu aprender.

—Bem, então vamos ver o que você fez.

Bishamon abriu a vasilha metálica onde estava a comida e se deparou com algas queimadas, uma comida com aparência estranha e um arroz amarelado. O deus não esboçou qualquer feição negativa àquela comida, na verdade não esboçou reação alguma, apenas olhou a comida e com um grande sorriso disse à garotinha:

—Parece delicioso—O deus pegou seu hashi e sem cerimônias começou a comer.

O arroz estava salgado demais, e o resto não tinha nenhum tempero ou algum shoyo que pudesse salgá-lo, a comida era difícil de se engolir, mas o deus não se importava com o sabor, estava vendo bem além. Aquela garotinha era a filha que ele nunca pôde criar, qualquer coisa que ele fizesse era motivo de orgulho para o deus, sem contar que aquela era a primeira vez que Emi cozinhava em toda sua curta vida; Bishamon não esperava ganhar algo feito por um profissional, e sim algo feito com carinho.

Emi riu ao ver Bishamon comendo, já que o deus ainda estava sonolento e seu olhar caído. O deus não esboçava nenhuma reação então não sabia por que a menina ria dele.

—Você é muito desajeitado, é engraçado te ver comer assim—Disse a garota sorrindo.

Emi ria alegremente quando ouviu um som que tocou seu coração, uma melodia cantada por um pássaro. Rapidamente ela procurou com os olhos de onde saía aquela melodia e ao virar-se viu um lindo pássaro branco, um rouxinol albino de calda vermelha. Essa foi a primeira vez que nossa garotinha viu um yokai em sua vida. Ele estava sobre o salão principal do templo, seu canto chamou Emi para perto, a menina estava encantada com tamanha beleza e graça do animal.

— É lindo esse yokai, não é? —Disse Aya, chefe das Miko do templo de Bishmon e amiga de Emi— Ele vem aqui todo verão

—Hã?! O passarinho é um yokai? —Aya acenou positivamente com a cabeça

—Mas ele parece um passarinho comum –Disse Emi.

—Os yokais servem simplesmente para a conservação e equilíbrio de nosso mundo, é comum muitos deles terem forma de animais do bosque.

É de conhecimento dos sábios que a mediunidade, ou a capacidade de se comunicar com o mundo extrafísico, é dada ao começo do ciclo de sete luas. Acredita-se que Tsukuyomi, a encarnação da lua e deus da sombra e escuridão, é o responsável por dar tal capacidade aos humanos; pois no escuro ele é capaz de enxergar como as pessoas são de verdade, mas nem os deuses sabem dizer quais seus critérios de avaliação, só sabem que ele enxerga além do bem e do mal, o certo e o errado.

Sobre a mediunidade, em outras palavras, seja qual for a forma de comunicação, o dom é dado para o indivíduo, ou tirado, a cada sete anos. Tudo depende de seu livre-arbítrio e se o médium aceita ou não seguir este caminho.

No caso de Emi, ela teve sua primeira experiência aos seis anos, quando viu Bishamon pela primeira vez. Mas suas habilidades só começaram a desabrochar aos oito anos, um ano e meio depois da

—Aya-San, eles são maus? O yokais fazem mal para nós? Mamãe já me contou histórias de yokais muito maus e de aparência horrível.

—Isso não é verdade, estando em equilíbrio eles são animais comuns e inofensivos aos humanos. Mas lembre-se, se você estiver com raiva, triste, ou feliz, qualquer sentimento em demasia. Os yokais vão sentir o que você está sentindo, pois, as energias do meio são absorvidas por essas criaturas.

—Entendo—Disse a garotinha sem saber ao certo o que falar, não havia entendido direito o que Aya quis dizer, mas em sua cabecinha já havia se formado mais mil e uma perguntas—Seu canto parece com de um Rouxinol, mas muito mais bonito.

—É verdade.

Depois de ouvir histórias e de todas as crianças terem ido embora, a menina ainda ficou um bom tempo apreciando o passarinho. Quando voltou para casa começou a reparar aonde andava e percebeu os estranhos animais que tinha pela vila, animais que ela nunca havia vistos antes, eram yokais, ela tinha certeza. Emi então sorriu estridentemente ao ver que na rua de sua casa, sobre uma árvore havia um ninho cheio de yokais estranhos e com aparência tão amigável e fofa, a menina se sentia muito feliz por conseguir vê-los.

—Emi-sama, o que houve? —Perguntou sua criada ao ver o sorriso de sua senhorinha.

—Onee-chan, eu só estou feliz.

—Mas pelo que?

—Por enxergar.

—Mas, minha senhora, você não nasceu deficiente, por que a tão repentina alegria nisso?

Emi não respondeu, apenas abriu o sorriso e continuou andando por aquele mundo novo e misterioso que acabara de descobrir. Aquele dia foi então, o nascimento “não registrado” de uma poderosíssima Miko.

O tempo passou novamente, e como um sopro as estações levaram mais um ano embora, trazendo o verão novamente à terra do sol nascente. No primeiro dia de verão, Emi acordou apressada e foi ver o yokai que cantava no topo da colina, seu canto havia lhe encantado e entretido por horas no verão passado.

Assim que chegou ao templo ouviu o som que tanto lhe agradava. Lá estava ele, tão graciosamente cantando sobre a tenda mais alta da casa de Bishamon. Então, durante uma semana inteira ela apreciou o canto do pequeno animal, mas no oitavo dia, ele não apareceu. A menina achou isso estranho, pois durante todos os dias do verão passado ela o viu cantar, “aonde será que ele foi parar? ” Pensou Emi enquanto olhava ao redor.

—Ele deve estar em outra árvore—Disse Emi para si mesma.

Então a garotinha pôs-se a procurar o yokai pelas árvores do templo, mas não teve sucesso. Então ouviu um canto de pássaro, um tanto diferente vindo dos fundos do templo, vinha da floresta que encontrava com o templo. Aquele som não era de seu pássaro, era como se fosse uma versão triste e melancólica do canto de seu yokai rouxinol.

Sem medo algum Emi passou pela cerca que separava o templo e adentou a floresta, ela seguiu o canto do animal até chegar em uma enorme árvore de tronco retorcido e galhos secos. O animal parou de cantar quando ela se aproximou da árvore e se escondeu no tronco.

—Não precisa ter medo de mim, eu sou sua amiga—Disse Emi se aproximando da árvore, mas o animal não saiu do lugar—Olha amiguinho...

Emi tentou assoviar como o yokai, mas mal conseguia segurar o fôlego por alguns segundos. Ela tentou várias vezes, e toda vez que não conseguia ela ria de seu erro. A risada era tão gostosa que fez o yokai sair para ver o que a menina fazia, aquele som estava acalmado a alma do pássaro.

Quando Emi viu o yokai, se assustou com o estado deformado do animal, sem querer ela acabou dando um grito, o animal logo voltou para o buraco onde estava. O que era um passarinho, estava sem metade da asa direita, seu olho esquerdo provavelmente havia sido arrancado, suas penas estavam todas arrepiadas e seu bico estava quebrado. Uma gosma preta envolvia o animal e só de olhar dava era possível ver que machucava o animal.

A garotinha logo percebeu que aquilo não eram feridas comuns, mas não sabia o que era, apenas sentia que devia ajudá-lo. Com um pouco de esforço, Emi conseguiu pegar o pássaro, o colocou em seu kimono e correu para o templo com o yokai. Ao entrar no local sagrado ela viu o animalzinho se contorcer de dor, a energia pura e concentrada daquele lugar feria ainda mais seu corpo fragilizado. Desesperada, Emi correu atrás de Aya, a menina tinha certeza que a sacerdotisa saberia o que fazer.

—Aya-Sama! Aya-Sama! — Gritava Emi

—Shhh... — Disse Aya sorrindo meigamente ao ver Emi—Silencio minha criança, não é educado fazer barulho em um templo sagrado.

—Aya-Sama, o passarinho que canta aqui está muito ferido—Sussurrou Emi.

Os olhos de Aya haviam estatelado ao ver o yokai, algo devia ter corrompido o animal, ele estava todo machucado por conta disso. A sacerdotisa bateu na mão de Emi, a fazendo deixar cair o rouxinol, depois puxou menina até a fonte sagrada no templo para lavar suas mãozinhas.

—Aya-san?! —Disse Emi sem saber o que estava acontecendo.

—Emi, por que trouxe um yokai corrompido para o templo?

—Hã?! Ele não está corrompido, apenas machucado.

—Não, aquilo são sintomas de corrupção, e pelo jeito já passou para dentro dele.

—Você pode fazer algo?

—Sinto muito Emi, mas não há cura para corrupção de yokai.

—Não.... Não.... Deve ter um jeito de curar esse passarinho.

Emi se livrou da sacerdotisa e saiu correndo, pegou o yokai corrompido em suas mãos e correu novamente pelo templo, dessa vez à procura de Bishamon. Assim que pegou o yokai, a menina sentiu sua pele queimar, mas não se importou com a dor, apenas continuou correndo. Foi fácil encontrar Bishamon, ele estava sobre a forma de Tadashi, treinava com sua lança debaixo de uma árvore na parte mais arborizada do templo.

—Mon-chan! Mon-chan! —Gritou novamente Emi, ao ver a garota o deus parou de treinar e lhe acenou sorrindo—Me ajude Mon-chan, por favor.

—O que houve minha estrelinha?

—Ele!

Emi abriu a mão mostrando o animal corrompido, assim que o deus viu o yokai, pegou rapidamente o pássaro e o pôs no chão. A reação do contato direto de um corrompido com a pele de um humano, quase sempre causa queimaduras piores que as de uma lacraia, ou taturana. Bishamon que estava até agora pouco tranquilo treinando, em uma questão de segundos passou a temer pelas queimaduras da pequenina.

—Deixe me ver—Disse Bishamon apreensivo puxando as mãozinhas da criança—Estranho, não tem nenhum arranhão ou queimadura. Isso não é possível.

—Mon-chan... —Emi começou a chorar, Tamonten novamente sentiu-se apreensivo—Por favor, ajude ele.

—Estrelinha, dói em algum lugar?

—Não, mas ele está muito mal, por favor ajude-o.

—Ele quem?

—O passarinho, por favor, ele é meu amigo. Vem para o templo todo verão.

Bishamon olhou o pequeno yokai, quase de imediato lembrou de seu canto, e também lembrou como era gostoso acordar ao som do animal. Tamonten então analisou melhor o animal e viu que havia uma espécie de piche presa sobre seu corpo, o deus conhecia muito bem aquela gosma, era o sangue de yokai morto sem estar corrompido. Como o dono do sangue havia morto contrariado e sem merecer, seu sangue estava profanado e corrompido.

O deus não tinha notícia de nenhum caçador de ossos pela região, então quem havia feito aquilo? Caçadores de ossos são humanos mal informados que veem yokais bons como ameaça e acabam matando os pobres animais por isso.

—Bishamon!! —Gritou Emi—Por favor, o ajude.

Tamonten apertou a barriga do yokai com o seu dedo indicador, como resposta ao estímulo o pássaro cuspiu piche.

—Desculpe Emi, mas ele já se afogou, não posso salvá-lo.

—Por que não?

—Quando um yokai se afoga, o piche vai para dentro dele, formando uma casca dura feito vidro que o corta e o machuca, ele sofre. Enquanto ele lutar contra, a dor só irá aumentar; e o animal ainda tentou voltar para o templo, esse ambiente está o machucando mais ainda.

—Você não pode fazer nada? —Perguntou Emi com olhos cheios de lágrimas.

—Posso—Bishamon pegou sua lança e voltou para perto de Emi—Deixe-me acabar com a dor desse pobre yokai.

—Nãaaooo! Tem certeza que não pode fazer mais nada?

—Desculpa minha estrelinha, mas não posso.

—Por favor, pense em algo—Disse Emi enxugando suas lágrimas—Você é um deus, deve saber de algo que possa curar.

Ao ver aquela cara, aquele jeito meigo e bondoso, Bishamon não teve escolha a não pensar em algo. Depois de alguns segundos o deus se lembrou de uma canção feita por Benzaiten, sua irmã, a deusa da música, das artes e da misericórdia. A deusa sabia acalmar as mais raivosas feras apenas usando sua arpa e notas mágicas, mas um dia criou algo novo ao ver de perto o trabalho dos deuses da guerra.

Benzaiten ficou muito triste ao ver que seu irmão e os outros deuses da guerra se machucavam tanto após longas batalhas, como presente, ela mesma compôs uma música que poderia curar até o mais doente e cicatrizar as mais diversas cicatrizes. Bishamon nunca tinha testado tal magia, pois a canção só funcionava se cantada por uma mulher, e o deus não utilizava a forma da Yuka em batalha, nem a mostrava para seus companheiros de batalha por motivos óbvios e pessoais.

Mas o deus também não sabia se aquela canção serviria com humanos cantando, ele havia tentado ensinar uma vez para suas sacerdotisas, mas nenhuma nunca tinha conseguido usar o poder de suas notas. De qualquer maneira, ele não podia ficar sem fazer nada ao ver sua protegida chorando, então não custava tentar, tirando o fato que ele também sabia que Emi não era como as autros.

—Você sabe cantar estrelinha? —A criança acenou dizendo que sim—Então cante para o passarinho uma música.

Era quase uma canção de ninar que Bishamon cantou para Emi, a música não tinha letra e se assemelhava ao canto das sereias por tamanha graça. A garotinha rapidamente aprendeu a cantar, então o deus pediu que ela cantasse com todo seu coração. Quando fez isso a pele do yokai começou a formar uma espécie de casca verde no topo da cabeça, quanto mais ela cantava, mais o pássaro era coberto pela casca verde e com aparência de folha, até que o animal foi totalmente tomado pelo verde.

—Continuo a cantar Mon-chan? —Perguntou Emi.

—Não sei.... Tenta cantar.

—Como não sabe?

—Minha irmã fez essa música para mim, mas eu nunca a usei. Então, também é minha primeira vez.

Emi voltou a cantar, mas nada aconteceu dessa vez, então ela parou, respirou fundo e com um olhar triste fez um pedido do fundo de seu coração aos céus, “eu queria que o passarinho cantasse mais uma vez”. Quando ela disse essas palavras, a casca começou a se rachar e de lá saiu o yokai, renovado e com penas mais lindas que antes.

—Passarinho! —Disse Emi ajudando o yokai a se limpar.

—Ela tem potencial—Disse Bishamon bem baixinho, apenas para ele mesmo ouvir

O deus encostou na árvore onde estavam e ficou vendo a alegria de Emi e a gratidão do yokai, juntos. Estava feliz com visão tão agradável, mas ao mesmo tempo, o deus via-se preocupado “quem está caçando yokais? ”, pensava o deus enquanto olhava o vento soprar sobre as árvores.  

 

Mal sabia ele que nos fundos da mata, sobre a árvore sem vida e de tronco retorcido, a mesma que Emi havia encontrado o rouxinol, estava uma mulher o observando.

—Você não se cansa mesmo de enganar os outros—Disse uma mulher com roupas cheias de barro, cabelo encharcado de água e feições esqueléticas.

Mesmo com todo barro sobre seu corpo, algo era evidente e inegável de se dizer. Aquela mulher se parecia muito com.…Yuka.


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Notas finais do capítulo

Para o próximo capitulo eu só digo uma coisa, Ryuka ^~^



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