Morto ou vivo para viver uma mentira escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 1
Fomos os reis e rainhas da promessa


Notas iniciais do capítulo

Passa-se antes do filme "O Primeiro Vingador"

Lembrando que o nome do Steve é na verdade Steven. Eu alternei entre as duas formas na fic, depois vou consertar isso



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Steve Rogers era uma criança doente e, como crianças doentes deveriam, passava quase o tempo todo em casa, fascinando-se com o mundo através da janela de seu quarto. Ele se coloria em tons de sépia, graças à camada de poeira que todos os seus esforços não tinham conseguido limpar, e em desejos que o pequeno Steve guardava para si mesmo: brincar com as crianças do lado de fora, chutar as bolas nos quintais dos outros, correr, sujar-se.

Já tinha pedido à mãe que o deixasse ir brincar, mas fora dobrado à verdade detestável. Para um garoto asmático como ele, tão magro que uma ventania mais forte talvez o levasse embora, qualquer esforço físico excessivo era um perigo mortal. E embora tentasse convencer Sarah de que o risco valia à pena, seus tentames sempre resultavam em gritos, castigos e horas sentado no umbral da janela, sonhando com o dia em que seria adulto e não precisaria acatar ordens de ninguém.

Tinha acabado de sair de outra briga com sua mãe e fora ordenado ficar cinco horas no quarto refletindo sobre sua conduta. Jurava que tinha obedecido pela primeira meia hora, mas logo depois seus olhos saíram de foco, as crianças que brincavam do lado de fora se movimentando como borrões. Certa hora, bola que era chutada para lá e para cá bateu em uma das paredes da rua, deixando para trás uma marca de lama e um barulho oco, e Steven sobressaiu-se como quem acorda de um sonho, olhando de olhos arregalados para a janela, piscando sem entender exatamente o que estava acontecendo.

— Ai meu Deus! — gritou um dos garotos na rua, as mãos na face, no exato momento em que Steven notou que aquela mesma bola agora voava em sua direção como uma bala e um segundo antes de ela acertar a janela, seu nariz e jogá-lo para fora do parapeito, direto no chão onde os cacos se amontoavam.

Durante um minuto inteiro, o garoto olhou para o teto do quarto, pensando em aleatoriedades. Não deveria estar enxergando o próprio nariz daquele jeito, deveria? Aquelas picadas no braço também não eram normais. Respirou fundo, e constatou que existiam outros tipos de dor além daquelas que a asma trazia em suas crises; que engraçado!

— Steve! Que barulho é esse? — perguntou a mãe do andar debaixo. — Você está bem?

Piscando um pouco, ele reparou que a janela estava quebrada. Ops.

— Ishtou ochimo, bãe! — gritou em resposta, criando coragem para forçar seu corpo a ficar sentado. O mundo girou um pouquinho. — Foi shó um achidente!

— Você está falando estranho. Está tendo outra crise de asma? Meu Deus, não sei onde deixei seus remédios, preciso procurar, eu tenho certeza...

A voz dela sumiu e Steven soube que ela estava na cozinha, remexendo nas gavetas à procura do remédio e do inalador. O mundo continuava girando, tinha um buraco na janela e a bola estava perto de sua cama, a única participante intacta daquele incidente. Ele tentou rir, mas não conseguiu, e acabou deixando-se cair no chão novamente, sentindo picadinhas nos braços que não estavam ali antes.

Com um assomo de pânico, concluiu que a situação era desastrosa. Sua mãe o proibiria de assistir televisão e provavelmente de ficar na janela também. Talvez o mudasse de quarto, talvez parasse de comprar biscoitos na padaria, tudo porque ele estava assistindo os meninos jogarem bola e tinha sido um acidente, um acidente...

— Steven?

Sarah parou na porta, parecendo gloriosa com seus um metro e cinqüenta de altura e um pouco ridícula com o queixo despencado. Seus olhos viajaram pela cena na velocidade da luz: a janela quebrada, os cacos no chão, o filho com o nariz sangrando e a bola perto da cama, e, quando ela respirou fundo, o garoto soube que estava tudo ferrado.

Felizmente, não para ele.

— PELO AMOR DE DEUS, VOCÊS ACHAM QUE SÃO QUEM? — Em uma piscada, ela estava na porta; na outra, tinha a cabeça para fora da janela por meio do estrago causado pela bola. — MEU FILHO É DOENTE, SEUS PESTINHAS, ISSO POR ACASO É UMA TENTATIVA DE ASSASSINATO? VOU CHAMAR A POLÍCIA PRA VOCÊS, SEUS DEMÔNIOS! TODO MUNDO PRA CASA! XÔ! XÔ! QUEREM SER PRESOS POR ACASO? — Silêncio. — OLHA PRA MINHA CARA DE QUEM VAI DEVOLVER ESSA BOLA! EU VOU É QUEIMAR ESSA BOLA! SAIAM DAQUI!

Steve ouviu xingamentos do lado de fora, que esmaeceram simultaneamente ao surgimento de um zumbido fraco, mas insistente, em seus ouvidos.  Seu corpo inteiro ardia. Nada comparado à dor que sentiu quando, uma hora depois, sua mãe o obrigou a deitar-se numa tina de água com sal, claro, praguejando sobre vizinhanças e falta de noção.

— Esses meninos... — sibilava ela, baixinho, apertando o algodão cheio de remédios contra os vários cortes em seus braços. — Parece que não têm mãe... Vou jogar uma bola na cara deles também...

O menino não respondeu; estava mais preocupado em não gritar. Foi um alívio quando a mãe terminou de envolver toda a extensão dos cortes com a gaze, deu-lhe um saco com pedras de gelo para colocar no nariz e permitiu que voltasse para o quarto, com a promessa de que não mexeria na bola ou se aproximaria da janela novamente. Já era noite do lado de fora e a cena do desastre, sem a luz do dia para iluminá-la, parecia triste e deslocada. Steven ignorou os cacos de vidro e a janela, como lhe fora ordenado, mas não resistiu a pegar a bola, rolá-la nas mãos, colocá-la no chão e chutá-la, esperando pelo barulho oco que escutara mais cedo e recebendo o silêncio em resposta.

Não tinha força nem para chutar uma bola. Socou a cama, mas os braços enfaixados doeram, e sua raiva se amainou. Deitou-se e dormiu.

 

 

 

Quando acordou, havia visitas na sala; Steve reconheceu-as pelas vozes agudas, muito diferentes dos ruídos que ele se esforçava em decifrar na televisão. Decidido a não mostrar a cara, o menino permaneceu sentado na cama, encarando a bola com tanta intensidade que era surpreendente que ela ainda não estivesse furado, enquanto a bola poderia muito bem estar encarando-o de volta. Ele ainda conseguia ver o próprio nariz, ainda mais inchado que no dia anterior, obrigando-o a respirar pela boca, e franziu os olhos para o membro também, desistindo após um espasmo de dor.

Perguntou-se se sua mãe ainda permitiria que ele fosse à escola. Depois de meses chorando e pedindo e de um período relativamente estável sem crises de asma, ela finalmente tinha permitido, com a condição de que ele saísse quarenta minutos antes, de forma a não se esforçar, e que sempre levasse consigo o inalador e os remédios. Ela tinha conversado na escola, explicado a situação de Steven para os professores e conseguido suas promessas de compreensão e apoio, mas Sarah era a viúva de um veterano de guerra e não acreditava em promessas. Naquelas últimas semanas, tinha mudado de idéia incontáveis vezes, e diante daquele incidente, o garoto não sabia o que esperar.

Quis chorar, mas fungar doía, então engoliu as lágrimas. Será que tinha quebrado o nariz? Já tinha visto homens de nariz quebrado na televisão, e todos pareciam enormes e másculos. Steve tinha muita vontade de ser assim também; aqueles homens nunca tossiam e nenhum deles tinha uma crise de asma...

Seus pensamentos foram interrompidos pelo ranger fraquinho da porta se abrindo. Ele esperou por Sarah e sua checagem matinal de saúde, mas não era ela. O menino — um desconhecido — parou à porta e registrou a bagunça no quarto, seus olhos demorando-se em cada elemento da cena até pararem no próprio Steve.

— Nossa — exclamou. — Você tá muito feio! Tá doendo?

— Tá sim. — Steve tombou a cabeça para o lado. — Quem é você? Esse não é o seu quarto!

— Não é mesmo. — O garoto fechou a porta e caminhou até cama, sentando-se em uma das laterais. — Sou James. James Buchannan Barnes.

— Olá, James... Ah... — Franziu o cenho. — Seu nome é difícil!

— Não é não! É um nome bem comum! James-Buchannan-Barnes!

— James Buc... Ah. Esquece! Meu nome é Steven Rogers.

— Eu sei. — James sorriu. — Mamãe me disse. Ela tá lá na sala, conversando com a sua mãe. Conversa de adultos — sussurrou ele, em tom confidencial. — Me mandaram brincar no jardim, mas eu já sou um homem, então vim ver você.

Aquela conversa estava muito estranha.

— Como soube onde me achar? Como sabe quem sou eu?

— Foi só subir as escadas. Nada difícil. Minha mãe me contou de você. Disse que a sua mãe berra como uma marinheira. Não sei o que isso significa, mas deve ser bom, né? — Steven deu de ombros em resposta e ele continuou: — Meu irmão Luke que chutou a bola. Ele me disse que tinha feito uma bagunça! — Admirado, James foi até a janela quebrada. — Mamãe tá muito brava com ele. Proibiu ele de ir brincar, disse que não vai comprar mais bola. Ele chorou muito.

— Ninguém mandou chutar a bola!

— Ele me disse que você era maior, também. — James virou-se e analisou o outro. — Tem quantos anos? Quatro?

— Ei! Eu já tenho sete!

— Pois eu tenho oito. — Estufou o peito. — O mais velho. Mamãe diz que sou um homenzinho. Sou forte!

— Eu também sou forte!

— Não é não. Muito pequeno. Mamãe disse que você era doente e que não deveríamos mexer com você. Mas você nunca vai lá fora.

Steven mordeu-se por dentro.

— Não é da sua conta.

— Nossa, tudo bem. — James deu de ombros. — Não precisa ser chato, sabe...

James, onde está você? — chamou alguém. — Estamos indo embora!

— Ah. Mamãe me chamando. Posso levar a bola para meu irmãozinho? Ele não para de chorar.

Olhando para James e para a bola, abandonada no canto do quarto onde a chutara, Steven pensou por um instante. Agora que se machucara, suas chances minúsculas de uma permissão para ir brincar tinham se tornado inexistentes, mas ele ainda tinha a bola que o acertara. Poderia brincar com ela em seu quarto, caladinho, sem que Sarah o descobrisse!

— Não. É minha agora. Ninguém mandou chutar.

— Que chato. Pois não gosto de você. — O garoto mostrou-lhe a língua. — Tô indo, mamãe! — gritou, correndo em direção à porta. Antes de sair, porém, olhou para Steven e riu. — Seu cara de passa!

A resposta a ser gritada pelo menino morreu na ponta da língua, pois James fechou a porta antes que Steven pudesse formular as palavras. Fez cara feia para a porta, mas era apenas uma porta, e aquilo não foi suficiente para amainar a raiva que estava sentindo.

Não gostava daquele menino James.

Nem um pouco.

 

 

 

Foi necessário chorar, implorar, jogar-se ao chão, fazer greve de fome, mas uma semana depois, foi permitido a Steve freqüentar a escola. Sarah ainda não estava tranqüila, e ele duvidava que um dia ficasse; no dia em que as aulas começariam, conferiu três vezes se o inalador estava na mochila e ensinou de novo a Steve como usá-lo. Sussurrava coisas para si mesma o tempo todo, tão baixo que Steven às vezes não conseguia escutá-la, as mãos nervosas tendo dificuldades para abotoar a camisa do filho até o final.

— Steven — disse ela, enfim, quando estavam prestes a sair de casa. — Você sabe que eu não queria que você fosse à escola. Pensei que seria melhor se você fizesse o elementar¹ em casa. Já que você quer porque quer ir, então eu quero que faça amizade com os professores e não se meta em confusões, tudo bem? Qualquer crise de asma, eu já expliquei para eles o que fazer, mas você sabe que...

— Não podemos confiar, mamãe. Sei sim.

— Exatamente. — Ela lhe deu um beijo na testa. — Esse é o meu menino. Vamos.

E foram. Steven, que nunca tinha ido mais longe do que na padaria da esquina em uma de suas fu— gas falidas, achou o prédio escolar, enorme e cheio de janelas, uma coisa espetacular. Andando sozinho pelos corredores, observando as grandes pilastras e os grupinhos de amigos já formados, ignorando sua presença diminuta enquanto absorvidos em suas próprias conversas, ele sentiu que faria qualquer coisa para continuar freqüentando aquele lugar. Longe da superproteção de Sarah, era como se o mundo subitamente se abrisse para ele, cheio de possibilidades. As condições da mãe pareciam fáceis para ele: ficar amigo dos professores e não arranjar confusão.

O que podia dar errado?

— Olha aqui, um pivete do primeiro ano! — riu um garoto, uma cabeça mais alta que ele, enquanto Steven separava as moedinhas que sua mãe tinha lhe dado para comprar o lanche. — Nossa, que bom que apareceu! Eu esqueci meu dinheiro em casa. Me dá o seu.

Steven levantou a cabeça para olhar para o garoto e sua mão estendida. Ele sorria, seguro de que conseguiria o que queria.

— Não.

— Como assim, não?

— Não vou te dar meu dinheiro.

O refeitório silenciou-se de repente.

— É claro que você vai me dar essas moedas. — O garoto estufou o peito, aproximando o rosto do dele enquanto cravava um polegar em seu peito. — Eu mandei dá-las, entende?

Steven também projetou o tronco.

— Mas não vou.

— Sou pelo menos quatro anos mais velho que você! Tá querendo apanhar? Me dá esse dinheiro!

— Não vou dar! É meu!

Vermelho de raiva, o garoto encolheu as mangas da blusa.

— Vou bater em você!

— O que está acontecendo aqui? — A inspetora parou em frente aos dois, mãos na cintura. — Pensei ter ouvido uma briga. Não estão brigando, estão, Phillips e...

— Rogers, senhora.

— Não estão brigando, né, Phillips e Rogers?

O refeitório inteiro prendeu a respiração; era possível ouvir o zumbizar de uma mosca ou o coração de Steven batendo rápido, ribombando pelas paredes do cômodo, tão alto que ele mal conseguiu distinguir as palavras pronunciadas pelo outro garoto.

— Claro que não, inspetora. Desculpa se pareceu assim — sorriu ele. — Estávamos dando boas vindas a um calouro.

Mais de cem pessoas expiraram ao mesmo tempo — um “aaaahh” uníssono e sincronizado.

— Ah, fico feliz por ter entendido errado. Podem se sentar então. — Ela apontou para as mesas. — Bem longe um do outro, por favor. Não queremos que essas boas vindas se transformem em confusão, queremos?

Steven, as moedas seguras na mão e o estômago vazio, anuiu com a cabeça e saiu, sentindo o olhar de Phillips em sua nuca e o espanto de toda a platéia acompanharem-no até a porta. Ninguém se aproximou dele durante o resto das aulas — ninguém se aproximou dele durante um longo tempo.

Naquele mesmo dia, enquanto voltava para casa, foi puxado para um beco por mãos que não conseguiu prever. Elas o agrediram em todos os lugares que não fossem o rosto. Havia também bocas que riam, que xingavam e zombavam. Os barulhos dos socos ecoavam, junto com o sangue que bombeava em suas orelhas, pela cabeça de Steven, amplificando sua apatia. Depois de alguns minutos, os garotos se cansaram e se afastaram, brincando entre eles ao saírem do beco.

— Pense nisso na hora que eu te mandar dar o dinheiro amanhã — disse Phillips, a guisa de despedida. — Porque eu vou pedir.

Ao entrar porta adentro, a primeira coisa que Steven fez foi deixar as moedas sobre a mesa e correr para o quarto, querendo adiar ao máximo o momento em que Sarah veria as marcas e exigiria saber o que tinha acontecido. Estava quase alcançando a própria porta quando ouviu a voz da mãe vinda do andar de baixo:

— Oras, Steven, trouxe as moedas de volta por quê?

Ele piscou.

— Não estava com fome, mamãe.

Estabeleceu-se um roteiro: todo almoço, no refeitório, Phillips — cujo nome Steven descobriu ser Frank — exigia suas moedas; Steven nunca as dava e, todos os dias, ao ir embora para a casa, era arrastado para o mesmo beco. Frank era cuidadoso o suficiente para nunca bater em lugares visíveis e, por mais milagroso que isso tivesse parecido, Sarah não tinha visto as marcas; parecia disposta a dar um pouco de independência ao filho. As crises de asma estavam em período de abstinência, o mais longo desde Steven tinha lembrança, e aquilo parecia tranqüilizar sua mãe: ela parara de querer ajudá-lo a fazer coisas simples como tomar banho ou assentar suas roupas.

Na verdade, parecia orgulhosa dos avanços que Steven estava fazendo. Parabenizava suas lições de casa bem feitas e os recados que os professores mandavam, sempre tratando do pequeno Steve Rogers como um garoto estudioso e sedento por aprender. Ela nunca desconfiaria de que havia algo errado, e ele preferia assim.

— Steven, me dê suas moedas — riu Frank, em uma daquelas tão previsíveis manhãs. Já havia semanas que se mantinham naquele cabo de guerra. — Quero comprar meu lanche.

Trocaram um olhar sem emoção.

— Não.

— Você é bem maldito, hein?

Steven deu ombros, caminhou até o balcão e comprou seu lanche. Mordeu a massa insossa que as cantineiras insistam em chamar de sanduíche e olhou para Frank, que seguia seus movimentos com algo que se parecia muito com fome; e que não estava direcionado à comida.

— Pois é — respondeu, caminhando até um cantinho do refeitório e sentando-se no chão para comer.

Como numa daquelas histórias de bullying clássico que ele tinha ouvido mil vezes no rádio, todos pareciam temer os incríveis veteranos da quarta grade: eram grandes, fortes e tinham mais experiência dentro da escola, muito mais experiência do que um simples calouro como ele. Graças a isso, as pessoas pareciam ter medo de fazer amizade com Steven, porque só os professores eram burros o suficiente para não notarem que ele estava apanhando — todo mundo sabia.

Os sussurros nos corredores diziam para Steve tudo o que ele precisava saber. Alunos mais novos pareciam impressionados que um menino de quatro anos — é sete!, corrigia ele, para si mesmo — estivesse agüentando tantas surras consecutivos, enquanto alunos mais velhos o consideravam completamente louco. Ninguém parecia querer saber a opinião de Steven sobre o caso, o que era bom, porque nem mesmo ele sabia; as histórias do rádio diziam que o melhor era ser valente e combater seus inimigos, mas as dores que sentia, persistentes, diziam o contrário. Dormir tinha se tornado um exercício de paciência; doía andar, doía correr; doía tossir, doía se deitar...

— Por que você continua fazendo isso?

Steven, a um quarteirão do beco para onde seria arrastado e espancado, parou e olhou para trás. James estava apoiado na parede, os braços cruzados e uma expressão feia no rosto. Parecia maior do que na última vez em que tinham se visto, embora fizesse apenas algumas semanas.

— Isso o quê?

— Não dando as moedas. Passando por aqui. Deixando eles te baterem. Todo dia! Eles são mais fortes! Se não quer dar o dinheiro, por que não dá a volta? Você sabe que eles estão ali te esperando!

Que pergunta idiota.

— Não dou as moedas porque não quero dar as moedas, oras.

James bufou.

— E por quê?

— Porque são minhas, ora! — Cruzou os braços. — Mamãe que me deu. Por que vou dar para eles? Ele nem precisa do dinheiro! Ele compra a merenda dele todo dia!

— Steven, isso não é sobre moedas!

— É sim! São minhas e eu não vou dar!

— Então por que não dar a volta?

— Esse é o caminho da minha casa!

— Existem outros caminhos!

— Mas eu quero passar por esse aqui!

James parecia prestes a arrancar os próprios cabelos em frustração.

— Então peça ajuda pra sua mãe!

— Mamãe diz que sou um homenzinho. Se eu contar, ela vai voltar a me tratar que nem bebê! Não sou um bebê, eu já tenho sete anos!

— E eu tenho oito!

— Grandes coisa! — Steven bateu o pé no chão. — Tô nem aí pros seus oito anos! Seu... seu... seu cara de passa! — gritou, dando-lhe as costas e marchando em direção ao beco de sempre. — Tchau!

As mãos o puxaram novamente, rindo, e vieram os socos, nos mesmos lugares, reforçando dores antigas, como se Frank tivesse estudado exatamente onde bateria de forma a extrair o maior desconforto possível. Steven pensava que estava ficando particularmente bom em apanhar; conseguia não pensar em nada até que acabasse e então mancava para casa. Eram apenas alguns minutos de surra, afinal; por mas inacreditável que soasse, Steven tinha percebido que Frank também tinha pais amorosos esperando por ele em casa, pessoas que se preocupariam caso ele se atrasasse.

Contudo, naquele dia, a dor pareceu durar menos; foram apenas alguns socos e então o beco ficou silencioso por um minuto.

— Quando é que você vai deixar o garoto em paz?

Steven não quis acreditar. James não poderia ter sido burro a esse ponto, poderia? Steven tinha os motivos dele para continuar naquela situação — motivos que futuramente ele consideraria ridículos —, mas James era só um menino de oito anos que gostava se gabar por ter oito anos, e não um briguento. Contudo, quando abriu os olhos, lá estava James Bu... Bucanana... Enfim, James alguma coisa Barnes, parado, de braços cruzados, encarando Frank bem nos olhos.

— E quem é você? Menino da terceira grade? Quer que eu pegue seu dinheiro também?

— Deixar o Steven em paz já tá ótimo para mim.

— Quem você pensa que é?

A resposta da James veio em um soco. Aquilo pegou Frank de surpresa, e ele cambaleou para trás por um segundo, tempo o suficiente para James pular em cima dele e começar uma briga ao mesmo tempo feia e engraçada. Steven, caído no chão, não sabia se ria dos socos desastrados que Bucanana estava dando — aparentemente o primeiro fora, literalmente, um golpe de sorte — ou se ficava impressionado por aquilo que James estava fazendo. Ele era exatamente como os heróis do rádio, homens fortes que não tinham medo de nada e a quem não existia obstáculo forte o suficiente.

— Tá bom, tá bom, para, para! — gritou Frank dois minutos de briga depois, nunca antes tão parecido com a criança de dez anos que ele realmente era, apesar de seu tamanho gigantesco. — Não vou mais bater no pivete! Para de me bater!

James, como que acordado de um transe, cessou as agressões, levantou-se, espanou a poeira da roupa e deu uma risadinha.

— Ótimo. Tá avisado, hein? Se for bater nele de novo... E não precisa nem chamar sua turminha. Bato neles também.

Phillips também se levantou. O beco era escuro, e Steven ainda estava abismado pela súbita virada nos fatos, então nunca teria certeza se o grandalhão tinha mesmo lágrimas nos olhos ou se fora apenas impressão sua. Futuramente, preferiria acreditar na primeira opção.

— Eu odeio você! — gritou para James, fazendo chover cuspe sobre ele e Steven. — Odeio!

E correu para fora do beco. Steven o observou sumir, ainda meio surpreso do fim que aquela tarde tomara; precisou piscar algumas vezes para enxergar a mão que James lhe oferecia e aceitá-la, sendo içado com facilidade do chão.

— Por que fez isso? — perguntou, sentindo-se meio tolo. — Ele estava no papo!

O garoto sorriu.

— Por que eu quis fazer, oras.

— Não sabia que você era tão forte!

— É porque eu tenho oito anos.  — Deu tapinhas amigáveis no ombro de Steve. — Quando tiver oito anos, vai saber como é.

Steven bufou.

— Você é muito metido, seu James Buca... Bucha...

— Bucky — corrigiu James. — Me chama de Bucky. Todo mundo me chama assim.

Frank não voltou a beirar Steven na hora das refeições. Sentava-se num canto, olhando amuado todas as vezes em que ele passava. Aquela atitude, porém, ao invés de reaproximar seus colegas de sala dele, fez apenas com que se distanciassem; ninguém sabia o que Steven tinha feito para ser deixado em paz e todos pareciam muito dispostos a não descobrir o que era. Além disso, um tal de James Buchanan Barnes tinha subitamente decidido que Steven era uma ótima pessoa para se ter por perto o tempo todo, e se aquele nome conseguia fazer até mesmo Frank se arrepiar...

Ele não podia ser nada de bom, podia?

 

 

Quando era criança, Steven lembrava-se de, às vezes, quando acordava no meio da noite, caminhar até o quarto da mãe e sentar-se na borda da cama onde dormia para observá-la em seu sono. Em seus seis anos, ele não pensava em beleza ou doçura, mas sabia que era bom ver sua mãe dormir; que ela se tornava diferente despida de toda a sua energia e determinação ferrenha. Nessas noites, ele sempre terminava por despencar de sono ao lado da mãe, acordando, horas depois, na sua própria cama novamente; foi assim que passou a acreditar que existia magia e que, um dia, talvez, ela gostasse o suficiente de Steven para não apenas levá-lo de volta para cama, mas também para dar-lhe saúde.

Claro que não acontecera; naquele momento, Steven sabia que, ao acordar, sua mãe carregava-o de volta para a cama, sem nenhuma magia envolvida. Contudo, deitada em seu caixão, vencida pela tuberculose depois de uma batalha intensa, Sarah continuava se parecendo com aquela mulher que Steven gostava de ver dormir e aquilo lhe trouxe uma sensação ardente na garganta. Não tinha chorado ainda e desejava ser capaz de fazê-lo, mas seus olhos estavam secos como sempre tinham estado, e ele sabia que todo o povo da família de sua mãe, derretido em lágrimas e lamentos, tinha reparado nisso. Conseguia ouvir seus sussurros, disfarçados em meio aos soluços e choros.

Ele nem sequer chora a falta dela...

— Sarah sacrificou tudo por ele e esse menino não sabe nem agradecer...

— Ingrato...

— Não ligue pra eles — disse Bucky, brotando ao lado de Steven perto do caixão. Ele também não tinha chorado. Durante todos aqueles anos de amizade, tinha se afeiçoado a Sarah como uma segunda mãe, mas ambos pareciam compartilhar aquela mesma inépcia para derramar lágrimas. — Não sabem que existem formas de luto mais verdadeiras do que simplesmente sair gritando de dor por aí como num teatro.

Disse alto o suficiente para o velório inteiro ouvir o que tinha sido dito; os parentes de Sarah olharam para aquele jovem, a quem não conheciam, com desprezo suficiente para matá-lo se fosse possível, enquanto o próprio Bucky deu de ombros, trocando uma piscadela com Steven  antes de voltar à postura e face sérias.

— Eles estão errados, Bucky, mas... — sussurrou Steven. — Eu adoraria chorar. Talvez tornasse as coisas mais fáceis. Tenho essa queimação na garganta. O máximo que vou conseguir fazer para demonstrar meu luto pela minha mãe é ter um ataque de asma bem aqui.

— Não, por favor, ataque de asma não. Já estou cansado desse trauma. — Bucky sorriu para ele, que sentiu seu próprio sorriso despertar em resposta. — O que você pode fazer para demonstrar seu luto é sempre ser grato por sua mãe ser uma pessoa tão boa e por ela fazer os melhores biscoitos de gengibre do mundo. Eu amava aqueles biscoitos. Vou sentir uma falta do caramba.

— Bucky!

— O quê?

— É o velório da minha mãe!

— Sim, e ela adorava quando eu elogiava os biscoitos, você não lembra? — Ele encolheu os ombros. — Ela sempre dizia que eu tinha mais sensibilidade do que você para lidar com mulheres.

— Bucky, até uma porta tem mais sensibilidade para lidar com mulheres do que eu. Ela abre, fecha e dá um rangidinho, eu não faço absolutamente nada.

Num assomo de sensibilidade, Bucky não libertou a risada que a frase pedia. Ao invés, aproximou-se de Steven e o abraçou, e havia algo no perfume que usava — dizia ser para atrair as meninas —, na espontaneidade do gesto e na diferença gritante de altura entre eles que fazia do gesto algo equivalente a estar em casa.

Sarah foi enterrada algumas horas depois, e Bucky o abraçou enquanto fechavam o caixão também. Não houve lágrimas. Voltaram para casa sob o vento que já começava a gelar, preparando-se para o inverno que viria, e em algum momento da trajetória, deram as mãos por um minuto. Steven gostava daquelas demonstrações de carinho, assim como gostava de observar Bucky quando ele estava absorvido em alguma coisa. Era bom, embora ele não soubesse exatamente por quê.

Estavam chegando à casa de Steven quando Bucky perguntou:

— E o que você vai fazer agora?

Steven pensou por um minuto.

— Não sei. Vou dar meu jeito.

— Você pode ficar na minha casa, se quiser.

Era uma ótima oferta, e Steven pensou que adoraria aceitá-la, mas algo lhe dizia que não poderia, a mesma coisa que o tinha feito, dez anos antes, não dar suas moedas para Frank e continuar passando pelo mesmo caminho, mesmo sabendo que o esperava no percurso.

— Obrigado, Bucky. — Ele pegou o molho de chaves no bolso do casaco. — Mas eu posso me virar sozinho.

— Eu sei que pode. — Steven brigou com suas chaves, procurando a que abriria a porta, e quando olhou para cima novamente, Bucky sorria para ele, estendendo-lhe uma cópia de sua chave de casa. — A questão é que você não precisa. Vou estar com você até o fim da linha, Steve.

Olharam-se nos olhos por um longo momento, e Steve viu Bucky se aproximar, centímetro por centímetro, até estar perto o suficiente para beijar sua testa com carinho.

— Não se esqueça disso, senhor Rogers — reforçou ele, afastando-se e sorrindo novamente. — Não é porque você pode ficar sozinho que você precisa estar. Quando você não tiver mais nada, você ainda vai me ter, e eu ainda vou ter você, porque fazer o quê, né? Quando eu briguei com aquele menino que eu nem lembro mais o nome por sua causa, eu deveria ter sabido no que estava me metendo.

Foi a vez de Steven sorrir.

— E você se arrepende?

— Nem um pouco.


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Notas finais do capítulo



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