Flores - Série de One-Shots escrita por nini


Capítulo 1
Capítulo 0


Notas iniciais do capítulo

Bem, aqui estamos.

Voltando de uma bela crise existencial, onde deixei tudo o que tinha, e que ainda era pouco, do mundo das fanfics para trás, excluindo cada um dos meus rastros, cogitando nunca mais voltar e indo contra todo pensamento pessimista, estou de volta. Pode soar um pouco dramático da minha parte estar fazendo com que leiam isso, mas é a mais simples e pura verdade.

O fosso é frio e escuro, mas necessário para que se entenda o que realmente é procurado por nós - no caso, por mim.

Eu procuro a felicidade de quem possa ler isso daqui. Que gaste alguns momentos do dia para ler cada palavra escrita e talvez tentar entender o real sentido disso tudo. Eu procuro a felicidade das pessoas que impediram com que eu dissesse adeus antes mesmo de tentar. As pessoas que não me deixaram, e que possam vir em futuro, me ajudar também.

Procuro a felicidade da minha pequena grande família, e de cada leitor que possa sentir, mesmo que ódio, ao se deparar com essa história.

Principalmente para minha família, com muito amor.



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Aquela que conta histórias

 

 

 

 

 

Ana

 

Fazia frio naquela manhã de novembro.

 

 

A neve caía delicadamente por sobre toda a cidade, deixando cada canto branquinho e, de certa forma, delicado. A garota dentro da cafeteria observava atentamente os flocos, ansiosa demais para fazer outra coisa.

 


O movimento do local era consideravelmente alto para o horário, já que se tratava de um sábado, véspera de feriado, o que supostamente implica em famílias e amigos reunidos, em suas casas. Mas parece que ninguém se dera o luxo de seguir essa observação.

 


O que ali predominava eram casais. Casais apaixonados que dividiam apaixonadamente cafés de sabor apaixonante. E a garota sentia um pouco de inveja ao vê-los juntos, tão cedo e logo no dia em que resolvera sair de sua zona de conforto. A vida estava sendo irônica demais consigo.

 


Ela então desviou seu olhar da janela para poder ver melhor o ambiente, e isso lhe assustou um pouco. Não era acostumada com pessoas perto de si, então a experiência estava sendo, no mínimo, sufocante. Sem perceber, encarou dois jovens risonhos sentados em uma mesa a sua frente. Eles riam animados, provavelmente de alguma piada ou caso desprovido de sentido contado por um deles, mas era tão certo que ela se permitiu os olhar mais um pouco, divagando sobre o que estariam conversando.

 


Não viu quando a garçonete de cabelos ruivos parou ao seu lado, seguindo o seu olhar e rindo de leve quando entende o que lhe prendia a atenção. Apoiou a bandeja debaixo de seu braço esquerdo, pegando o bloco de notas de dentro de seu avental.

 

 

— É incrível, não? – disse, escrevendo em seu bloco, chamando a garota de volta para a realidade.

 

 

— Me desculpe-e, er... perdão, o que disse? – respondeu afobada, virando a cabeça rapidamente e fazendo com que seu óculos desarrumasse em seu rosto. Rapidamente os arrumou, ganhando uma coloração rosada em suas bochechas, olhando atentamente para a garçonete. Esta riu e começou a mascar um chiclete, formando uma perfeita bola em seus lábios. A estourou e pôs a bandeja em cima da mesa da garota, sentando-se logo em seguida, impedindo que a outra continuasse a observar o casal.

 

 

— Incrível como algumas pessoas são extremamente indiscretas, então encaram pessoas sem escrúpulo algum. – Refez a bola, ao mesmo tempo que a olhava fixamente. A garota não soube como reagir, se contendo com a surpresa.


1) Estava sem reação por ter sido tão óbvia em suas ações.

 


2) Surpresa por aquele ser a sua frente ter dito uma (in)direta para si sem ao menos mudar de expressão. Ela ao menos lhe conhecia! Que absurdo!

 

 

E em toda a sua incredulidade, fez o que qualquer um faria em sua posição: abaixou a cabeça e corou violentamente.

 

 

— São tão óbvia assim? – perguntou baixinho, com a vergonha consumindo cada vez mais seu corpo.

 

 

— Olha, eu acho que eles devem estar ardendo, tamanha intensidade com que você estava olhando. – a garçonete alfinetou, observando as reações da menina. Aquela manhã estava sendo tediosa para si, então atormentar aquela desconhecida era um entretenimento inenarrável e imperdível.

 

 

— Me desculpe. – disse, deixando com que sua voz morresse aos poucos. Era realmente necessário que aquilo estivesse acontecendo? Justo consigo?

 

 

— Não desculpo não. – piscou de leve, com uma expressão marota no rosto, para poder continuar. – Mas me diz ai, - tirou uma mecha ruiva dos olhos, a soprando - você não é exatamente uma pessoa com uma vida social ativa, né? Deve estar sendo difícil pra você me aturar agora.

 

 

Seria possível que bochechas ficassem azuis, de tão vermelhas?

 


A garota encolheu os ombros, movendo seu corpo para baixo, querendo e repetindo mentalmente para que sumisse dali, o mais rápido que fosse possível. A garçonete somente assistia em silêncio, se deliciando com aquilo. Apesar do motivo pelo que qual iniciaram aquele estranho diálogo, estava sendo agradável a companhia daquele ser envergonhado.

 


O tilintar de uma sineta se fez presente, avisando o término de um pedido.  A ruiva ignorou.

 

 

— O que te faz pensar isso sobre mim? – a garota levantou o rosto, ajeitando o óculos para poder ver melhor a personificação do abuso em sua frente.

 

 

— Deixa eu ver.... talvez suas roupas, seu cabelo ou sua cara desde que entrou por aquela porta. – apontou a entrada da cafeteria.

 

 

— Está me observando desde quando cheguei? – perguntou incrédula, arregalando os olhos de leve.

 

 

A garçonete riu, mas dessa vez, um pouco alto para os padrões aceitáveis de convivência social. A sineta soou novamente, sendo ignorada de novo.

 

 

— Sua expressão não é uma das melhores, de todos os que vieram aqui hoje. É tipo, sabe, uma mistura de indiferença e tristeza. – disse entre risos, rabiscando a mesa com sua caneta vermelha. – Além disso, está desacompanhada, em uma véspera de feriado. Somando esses fatores, acho que o resultado é uma pessoa antissocial. – desviou da pergunta dirigida a si. Levou sua mão ao cabelo ruivo e começou a brincar com uma mecha solta, enrolando-a entre os finos dedos.

 

 

— Tenho medo de pessoas. T.A.S, sabe?

 

 

— Mentirosa. – desafiou, contestando-a.

 

 

A sineta se fez presente novamente.

 

 

— Desde quando sabe algo sobre mim? Não nos conhecemos.

 

 

— Desde quando você é um livro aberto? Conheço você a exatos 40 minutos.

 

 

— Quer parar, por favor? – a garota mantinha sua voz baixa. Não estava nada confortável com a presença da outra, ainda mais sendo esta desconhecida. Sentia sua respiração se tornar cada vez mais pesada, e seu peito apertar dolorosamente. Os sintomas se agravavam cada vez mais. Já estava perdendo a paciência, mas não queria pedir a outra para que lhe desse licença. Não quando finalmente vieram se aproximar de si.

 

 

Controverso? Talvez.

 

 

— Por favor, poderia parar com isso? É irritante.

 

 

— Parar com o que? – provocou de leve, gostando do rumo daquela conversa.

 

 

— Você sabe... isso. – ainda com a voz baixa, se controlava o máximo que podia. Suas mãos insistiam em suar, deixando o nervosismo lhe tomar de uma vez.

 

 

Mas ela não podia se render. Não quando tinha chegado tão longe.

 

 

— Isso o que? Eu não sei. Talvez se você me disser... – a ruiva disse, olhando atentamente uma ponta dupla em seu cabelo, o desinteresse cobrindo suas costas.

 

 

— Não me responda com perguntas.

 

 

— E quem disse que faço isso?

 

 

— HÁ! Vai negar agora?

 

 

— Vou.

 

 

A garota não queria acreditar naquilo.

 

 

Que menina depravada!

 

 

 A sineta soou impaciente mais uma vez, o que fez a garçonete virar sua cabeça, para observar o balcão de atendimento demoradamente. A garota observava tudo atentamente, parando para prestar atenção no rosto da ruiva. Até que ela era bem bonita, para uma pessoa tão irritante...

 

 

— Você não consegue mesmo observar alguém sem ser tão indiscreta? Sério, você está me dando medo.

 

 

A garota saiu de seus devaneios, para então brincar com seus dedos, os prendendo uns nos outros.

 

 

— Não faço por mal. – começou, bem levemente. – Eu só não estou acostumada a ver tanta gente...

 

 

— E ainda nega ser antissocial. Os tempos realmente mudaram...

 

 

— Quer parar com isso por favor? Pare de concluir coisas! Isso irrita!

 

 

— Se me dissesse porque é assim, talvez eu não concluiria nada por mim mesma.

 

 

— Por que faz isso? – a garota sentia seu coração bater mais forte. Sua pressão baixava lentamente, e seu corpo estava mole.

 

 

— Isso o que garota? Seja mais específica!

 

 

— Por que veio conversar comigo? O que viu de tão interessante em mim para que se aproximasse? Hein? – perguntou, e dessa vez, sua voz era firme.

 

 

— O tédio do trabalho exigiu medidas drásticas para remediação. E o que me custaria falar com alguém só e estranha?

 

 

— Quer fazer o favor de não me julgar? Isso é feio, sabia? Seus pais não te deram educação?

 

 

— Então porque está sozinha?

 

 

— Já disse, tenho fobia social.

 

 

— Quer parar de mentir? Isso já está me enchendo o saco.

 

 

A garota olhou séria para a garçonete. Seu estômago começou a revirar, e suas mãos tremiam levemente.

 

 

— Eu não estou mentindo. Eu tenho fobia social, e ter vindo aqui, sem ninguém, é parte do tratamento. Entendeu? – sua voz saiu firme, fixando cada palavra na mente da ruiva. A expressão desta, passou de marota para centrada. Realmente, não era sempre que se encontrava alguém daquele jeito.

 

 

— Desculpa, eu não sabia...- a garçonete disse, realmente arrependida de ter, de certa forma, a irritado.

 

 

— Tá tudo bem. Já me acostumei a ser ignorada.

 

 

A sineta era insistente, e não se deu por vencida. Tornou a soar. E dessa vez, não foi ignorada. A garçonete se levantou, pegando a bandeja metálica e seu bloco rabiscado. Ajeitou seu avental e pegou sua caneta, a posicionando de frente para a folha do bloco. A garota abaixou sua cabeça, encarando seu colo como se este fosse a coisa mais interessante ali inserida.

 

 

— O que a senhorita deseja? – a voz da ruiva se fez presente uma outra vez.

 

 

— Um alpino e um cappuccino para viagem por favor.

 

 

A garçonete não deixaria aquilo passar.

 

 

— E pra quem seria o outro café, ‘sociofóbica’? Pra sua sombra, talvez? - a risada da ruiva soou anasalada, cheia de ironia.

 

 

Dessa vez, a garota se permitiu rir. Sociofóbica? Nada mal para o nome de um blog ou user no twitter. Aquele era um apelido que nunca tinha escutado, mas era completamente verdadeiro. Ajeitou seus óculos e olhou confiante para a garçonete, apoiando os cotovelos na mesa e deixando as mãos em baixo de seu queixo, apoiando a cabeça.

 

 

— Minha sombra tem intolerância a cafeína – um sorriso decorava seu rosto; sua voz estava calma. – O café é pro meu namorado.

 

 

Os olhos da garçonete se arregalaram, e quando provavelmente iria dizer mais alguma coisa inconveniente, o chefe gritou, chamando a atenção de ambas. A ruiva olhou rapidamente do balcão para a garota, escrevendo em seguida algo no bloco. Arrancou a folha depressa, deixando em frente a menina. Esta olhou curiosa, mas ao se virar, a ruiva não estava mais ao seu lado. Olhou preguiçosamente, procurando pelos cabelos vermelhos, e quando os achou, foi surpreendida pelo que ouviu.

 

 

— Me conte sobre ele; aproveita e me adiciona no LINE! – então ela entrou na cozinha, sumindo daquele ambiente.

 

 

A garota ainda estava confusa, então resolveu ver o papel. A neve ainda caia, incessante, abafando as janelas e impedindo que o mundo lá fora fosse visto. Estava um pouco escuro dentro da cafeteria, o que fez a pobrezinha forçar um pouco sua já prejudicada visão. Quando se deu conta do que estava escrito, a gargalhada que rompeu de sua garganta assustou uma calma senhora sentada na mesa ao seu lado. A senhora, assustada, olhou para a jovem, encostando em seu braço, gentilmente a perguntando.

 

 

— Minha criança, está tudo bem? Aconteceu algo?

 

 

A garota olhou para a senhora, e esta ficou preocupada ao ver que a mais nova tinha ralas lágrimas descendo por suas bochechas, mas um sorriso maravilhoso as acompanhava. A garota apoiou sua cabeça no estofado da poltrona em que estava sentada, tentando fazer seu coração desacelerar um pouco. O contato com a senhora tinha sido demais para seu psicológico.

 

 

— Ahjumma, eu conheci uma desgraçada. E sabe o que é pior?

 

 

A senhora estava chocada com o palavreado, mas, sabe como é. Os jovens estão cada vez mais indomáveis.

 

 

Voltando a cena.

 

 

— Ela é um anjo.

 

 

 

“Esquece que eu não te conheço. Só finge que não tenho pena de você, e leia até o final.
Te entendo mais do que você imagina. Deve ser um saco ter medo.
Então divide. Quando se compartilha, tudo fica mais fácil.
Ninguém fez isso comigo, então sou amadora. Mas o que custa tentar?
                                          Quer ser minha amiga, Sociofóbica?
Aproveita e me liga. Quem sabe não rola um papo decente.
                                               (02) 721—2789 – A ruiva,”

 

 

 

—*-*-*-*-

 

 

 

O café quente entre as mãos grandes e finas não estava sendo o suficiente para aquecê-las. O vento gelado tocava o rosto branco, provocando uma leve ardência neste. O cachecol levantado até os lábios cobria parte de seu rosto, mas não conseguia esconder o rubor de sua maçãs. Caminhava lentamente, já que a biblioteca ficava somente a poucos minutos da cafeteria.

 

 

Embora estivesse frio, andar um pouco ajudaria na organização de seus pensamentos. Ainda eram 9:35am, e mais coisas tinham acontecido do que nos últimos dois dias; sua cabeça girava um pouco, tentando assimilar aquela manhã digamos, diferente.

 


O cachecol vermelho contratava bem com o sobretudo marrom, mantendo o corpo alto aquecido. Os cabelos negros esvoaçavam para trás, bagunçando os fios. Embora fossem curtos, sabiam ficar mais bagunçados que ninho de rato. E isso a irritava; ah mas como irritava!

 


Continuava a caminhar, observando seus converses vermelhos pisarem nas linhas da calçada, brincando de acertar cada uma delas.

 


A neve já parara de cair a uns bons minutos, mas as ruas continuavam a parecer imensos algodões, o que fez com que a garota tivesse vontade de se jogar nela. Fazer o que, se era uma vontade reprimida? Andou mais um pouco, correndo seus olhos pelos rostos que passavam próximos a si, estudando cada feição e característica. Ver rostos e não sentir vontade de sair correndo ou chorar descontroladamente era um momento novo para si, e com toda certeza, era maravilhoso. O nervosismo doentio ainda era presente, mas nada que não pudesse ser resolvido com o tempo.

 

 

O tempo lhe tinha curado tanto... por que não o faria de novo?

 


Tropeçou em uma pedra, esta que estava escondida entre o tapete branco estendido para aonde se visse, quase caindo e quase derrubando o café entre as suas mãos. Mas o pobre de seu óculos não fora poupado, o que resultou no pobre se perdendo entre o mar leite.

 


A garota parou, desesperada, sentindo seus olhos encherem novamente de lágrimas. Já não tinha chorado o suficiente naquela manhã? Pelo visto, não. Se agachou, tateando, perdida, a neve em sua frente, procurando pelo seu bem precioso. Se não o achasse, adeus economias, olá parcelas bancárias.

 

 

As pessoas continuavam a andar, cada uma em seu caminho, mas como forma de ajuda, desviavam da garota, o que somente a trazia mais desespero. Será que não entendiam que poderiam estar pisando em seu pobre apetrecho? Continuava a procurar, tentando ter êxito em cada tentativa.

 

 

Ia desistir daquela caça, mas sentiu sua mão ser coberta por algo quente, que começou a se mover, fazendo movimentos suaves em cima de seus dedos; leves carinhos. Sentiu uma mão em seu rosto, limpando algumas das insolentes lágrimas que desciam de seus olhos; estes estavam arregalados, já que a visão embaçada não a permitia identificar quem estava ali a sua frente.

 


A mão em seu rosto retirou uma mecha de cabelo de seus olhos, e desceu por seu nariz, batendo o indicador na ponta. Uma risada anasalada se fez presente, o hálito fresco de encontro a sua testa.

 

 

— Deixou seus óculos caírem de novo? Espera um pouco que eu pego pra você, tá bem? – uma voz masculina se fez presente, mas soando aconchegante ao ouvir da garota. Esta, já ouvira diversas vezes aquele mesmo timbre, aquele mesmo tom e não deixou de ficar surpresa pela presença dele justamente ali, naquele momento. A garota permitiu que um pequeno sorriso de canto enfeitasse seu rosto, verdadeiramente feliz pelo outro estar ali.

 

 

— Como me achou? Não estava na biblioteca? – perguntou baixinho, tendo a consciência do outro bem próximo a si. Corou violentamente, suspirando. O outro demorava a responder, o que indicava sua preocupação em encontrar o óculos caído. Aquele sim era um namorado esforçado!

 

 

— Mas quem disse que não estamos? – sua voz era divertida – Você deu a sorte de cair bem perto das escadas, se não, não haveria como te auxiliar. Achei! – gritou, pegando o óculos fujão, próximo à rua. Mais um pouco e o pobre teria caído no esgoto.

 


A garota sentiu as mãos do namorado ao lado de suas faces, ajeitando carinhosamente o óculos em seu rosto. Aproveitou do momento e fechou os olhos, sentindo os dedos alheios provocarem leves arrepios por onde passavam. O garoto riu, pondo o propositalmente devagar o óculos, dando tempo para que vislumbrasse o rosto da namorada e as feições que o adornavam com seu simples toque.

 

 

E a garota adorava os carinhos que recebia.

 

 

— O momento é lindo, mas precisamos sair daqui. Estamos no meio de uma calçada, lembra? – o garoto sussurrou, divertindo-se ao ver a expressão incrédula da garota, que se levantou imediatamente, batendo frenética as mãos em seu sobretudo, retirando qualquer possível resíduo dali.
O garoto simplesmente ria descontrolado da namorada; esta conseguia ser exagerada até nos pequenos detalhes.

 

 

— Do que está rindo moço? Não tem graça! – a garota buscava se defender a todo custo. Detestava quando riam de si, ainda mais por motivos tão bestas quanto calçadas ou pão (sim, eles já discutiram seriamente sobre pão e suas qualidades). Esperou paciente por sua resposta.

 

 

— Claro que tem graça! Para você talvez não, já que nunca vai poder ver o quão engraçada é para mim.

 

 

— Isso foi uma tentativa de cantada? Sério?

 

 

— Talvez. Nunca se saberá. É um mistério!

 

 

— Isso foi péssimo! – a garota começou a rir, mostrando seus dentes, o que fez com que o rapaz parasse de rir. Este voltou sua atenção e olhar para a namorada, levantando enfim da calçada. O garoto parou de frente a menina, segurando o rosto alheio e selando de leve os lábios a sua frente. A garota tinha o coração disparado, mal contendo a alegria que sentia ao ser beijada por ele.

 

 

Para ela, ainda era um sonho que tudo aquilo estivesse acontecendo; e para ele, era a mais simples e doce realidade que uma pessoa verdadeiramente feliz podia querer viver. Tão diferentes, mas tão iguais.

 

 

Findado o selo, o garoto sussurrou contra os lábios da garota, causando arrepios gostosos nesta.

 

 

— Vamos entrar? Está frio e não quero que fique resfriada.

 

 

— Hipoteticamente falando, e se eu já estivesse? – respondeu o namorado, brincando com ele. Este sorriu e passou seu braço pelos ombros da garota, a abraçando e a trazendo para mais perto de seu corpo.

 

 

— Pode deixar que eu cuido de você então. Agora vamos. – e começaram a subir as escadas, subindo com os passos combinados. Desequilibraram algumas vezes, provocando risos em ambos.

 


Passaram pelas grandes portas de vidro da biblioteca; o garoto as abrindo para passarem, entrando em um ambiente aconchegante para os apaixonados em livros.

 


Era um local antigo, com colunas de mármore sustentando as escadas de madeira que levavam para os andares mais altos (totalizando 4). O balcão onde a bibliotecária estava se estendia de uma coluna a outra, dando a aqueles que entrassem, a total visão das compridas e imensas prateleiras, repletas dos mais variados títulos, novos ou antigos.

 

 

Se tinha a visão dos outros andares, já que as grades eram espaçadas e de bronze. O teto de vidro permitia que a luz natural entrasse, mas em dia como aqueles, luminárias eram acessas, dispostas pelos cantos do local. Uma verdadeira obra de arte.

 


Era possível encontrar algumas pessoas disfrutando do ambiente, mas nada que o tornasse agitado ou muito movimentado. Infelizmente, o número de ratos de biblioteca vem caindo bastante com o decorrer dos anos, se tornando uma raça rara, quase extinta. O garoto se aproximou da bibliotecária, deixando com que a garota admirasse mais o local. Não era a primeira vez dela ali, mas cada ida era uma nova experiência, uma nova história, um novo livro amigo, um novo autor.

 

 

E isso nunca a cansaria.

 


O garoto observava as expressões da namorada, se encantando com aquele ser indecifrável, tendo sua atenção totalmente entregue a ela. Estava tão imerso, que não sentiu uma caneta bater em sua testa.

 

 

— Ai, mas que po...

 

 

— Os modos senhor Hong! Não os esqueça! – a bibliotecária se levantou, organizando alguns livros dispostos a sua frente, sentando em seguida para continuar a cadastrar cada exemplar.

 

 

— Mas precisava mesmo da caneta? Existem leis contra a violência.

 

 

— Existem também outros lugares para namorar ou secar a namorada. A biblioteca não é um desses. – apontou para a garota.

 

 

— Mas quem disse que eu...

 

 

— Bom dia Senhora Yi. Como vai? – a garota interrompeu o namorado, sorrindo alegre e a cumprimentando. A bibliotecária sorriu de volta, curvando o corpo em uma leve reverencia, enquanto o garoto as olhava com uma cara não muito amigável.

 

 

— Vou bem, graças a Deus. E como vai o tratamento minha criança?

 

 

— Progredindo cada vez mais! Já consigo andar na rua sozinha. Não é o máximo?

 

 

— Que bom ouvir isso minha jovem. Enfim, o que querem para hoje?

 

 

— Somente viemos te ver. Vamos ficar até mais tarde de novo. – o garoto respondeu, com uma bela carranca enfeitando seu rosto. Não estava com muita vontade de estender aquele diálogo, para si, desnecessário.  A bibliotecária simplesmente o ignorou, voltando a jovem animada seu melhor e mais sincero sorriso.

 

 

— Pode deixar que a chave estará na gaveta. Só peço para que tranquem bem as portas. Não quero nem imaginar o que aconteceria a mim se descobrissem!

 

 

— Pode deixar dona. Sabemos disso. – o garoto impaciente olhava para suas mãos, não disfarçando em nada o tédio. E novamente, ele não sentiu quando a caneta o acertou, e dessa vez, seu óculos foram derrubados.

 

 

— Quer parar com isso mulher? Qual o seu problema? – as duas ali presentes riam divertidas, esperando que o outro se acalmasse e pegasse novamente o apetrecho atingido. Quando o fez, a garota pegou delicadamente em seu braço, o puxando de leve para subirem a escada esquerda.

 

 

— Juízo vocês dois! Boa leitura! – a bibliotecária disse enquanto voltava ao seu cansativo trabalho. Aqueles dois ainda a tirariam do sério, mas caso ocorresse, iria amar. Eram suas crianças favoritas. Os filhos que nunca teria, e que não queria ter. Vai entender!

 

 

O casal subia devagar as escadas, aproveitando do momento para conversarem mais. Haviam alguns dias que não se viam, logo a saudade era presente.

 

 

— Onde já se viu aquilo? Me agredir com uma caneta! Que abuso! – o menino dizia indignado, abraçando mais os ombros da namorada.

 

 

— O problema foi seu óculos ter caído. Certeza que não racharam ou algo assim?

 

 

— Absoluta, grandona. Falando neles, somos um par de míopes lindo, não concorda?

 

 

— Meu Deus Young, que observação foi essa? – a garota ria, tampando os lábios com a mão. Surpreendeu-se quando o namorado a tirou dali, virando seu rosto e selando seu lábio.

 

 

— Já disse que gosto de ver seu sorriso. Pare de escondê-lo assim! – um sorriso de canto nos lábios do garoto fez com que a jovem suspirasse. Além de chato, o outro era lindo.

 


Continuaram a subir as (quase) infinitas escadas, até chegarem no segundo andar. Cansados, pararam para respirar um pouco. Subir três lances de degraus não é exatamente uma coisa fácil, convenhamos. A garota se recompôs e primeiro, se aproximando e sentando em um dos sofás ali dispostos. Ainda segurava o café que comprara, esperando o garoto se sentar ao seu lado.

 


Sentar seria uma palavra educada demais para o que realmente aconteceu, então sejamos mais realistas. O garoto se jogou no sofá, logo apoiando a cabeça no colo da garota.

 

 

— Louco! Pra que se jogar assim? Sente-se, trouxe seu café. – indignada, a morena deu um tapa leve na cabeça do rapaz, e se inclinando para pegar a bebida que havia posto na mesa de centro de frente ao sofá.

 

 

— Ai! O que vocês tem contra minha testa? Isso é recalque? – o garoto resmungou, mas sentou-se, pegando o delicado o café das mãos da namorada. – Obrigada. Qual você escolheu? – deixou um selo na testa da garota e se pôs a tomar a bebida. – Alpino? Ana, você é um anjo!

 

 

A garota riu, bagunçando os cabelos alheios, logo se levantando e puxando de leve o ombro do namorado. Este riu e repousou a bebida novamente na mesa de centro, se levantando e passando o braço em volta da cintura da menina, a trazendo para mais perto de seu corpo. Começaram a andar novamente, indo em direção as prateleiras altas ali dispostas.

 

 

O chão de madeira deixava os passos do casal mais altos, mas nada suficiente para que atrapalhasse algum leitor concentrado. Os dois estavam envolvidos em uma quase dança, rodopiando entre as fileiras de livros, lhes tocando o máximo possível. Não é maravilhoso sentir a textura da capa de um exemplar?

 

 

Bibliotecas tinham um efeito entorpecente naqueles dois: se alienavam a tudo e todos, tendo os sentidos completamente tomados pela fantasia que ali era proporcionada. Sentiam-se livres para ser o que quisessem, para imaginar sem limites; ali dentro se sentiam vivos, como nunca poderiam se sentir.

 


A liberdade é tão relativa...

 

 

*-*

 

 

O garoto estava sentado no chão, com as costas apoiadas em uma prateleira, de olhos fechados para poder aproveitar mais da voz que lia um poema para si, apoiada em seu peito, sentada entre suas pernas. Sabia do potencial que a namorada tinha para ser oradora, ou algo relacionado a discursos, mas em respeito a mesma, nunca disse nada. Não queria mais ver a mesma em mais uma crise por causa da fobia.

 

 

Se sentia abalado somente pela lembrança do sofrimento da garota. Era esse um motivo para gostar tanto do sorriso desta. Quando sorria, significava que tudo estava bem.

 


Seu lado mais egoísta também o impedia de compartilhar aquela voz com mais alguém, ainda mais com pessoas estranhas e desconhecidas. Então se contentava em apreciar cada palavra dita, cada texto recitado; se envolvia aos poucos, sentindo o corpo e alma mais leves.

 


Abriu os olhos quando a voz da garota não era mais presente, sendo tomado pelo silêncio local. Olhou para baixo e não encontrou a outra entre os seus braços, deixando com que o desespero se apossasse de seu coração por um breve momento. Suspirou e balançou de leve a cabeça, procurando com o olhar a garota.

 

 

Ela estava de pé, ao lado do rapaz, observando calmamente os nomes dos livros dispostos na prateleira. Percorria com seus dedos cada lombada, se lembrando das histórias que conhecia e que conheceu com aqueles títulos. Daquela fileira, tinha lido quase todos, passando horas e horas namorando cada página, de cada um. Um sorrisinho satisfeito brincou em seu rosto, mas logo sendo substituído pelo cenho franzido.

 

 

A jovem levantou a mão e retirou de onde estava posto, um livro por si desconhecido. Agachou ao lado do namorado, apoiando a cabeça em seus ombros. O jovem a olhava curioso, já que esta tinha uma expressão confusa no rosto.,

 

 

— Hey, o que houve? Achou alguma coisa? – perguntou baixinho, fazendo sua melhor voz para momentos de suspense.

 

 

— Conheço todos os livros dessa seção, mas nunca vi esse por aqui... Você já? – a menina respondeu, abrindo o livro e lendo o conteúdo da primeira página em bom tom.

 

 

As flores não tem estação. São indomáveis, como os sentimentos humanos.  E assim como eles, devem florescer e enfeitar a vida daqueles que os tem.

 

 

— Nossa...que triste. – o jovem comentou, suspirando ao olhar para cima.

 

 

— Eu sei...mas é tão...atraente. – a garota tocava com as falangetas a página amarelada onde o índice estava datilografado. O aproximou de seu rosto e respirou profundamente, sentindo o aroma. Canela. Alguém já o lera e ainda marcou suas páginas com um pau de canela.

 

 

Esplêndido! Era bom saber que ainda haviam apaixonados por papel e tinta.

 

 

A garota sentiu seu cotovelo ser puxado para baixo, de leve, sendo obrigada a se sentar no chão. O garoto a trouxe para perto, aconchegando em seu ombro a cabeça alheia, bagunçando seus cabelos e ajeitando seus óculos. A abraçou, e beijou sua bochecha.

 

 

—Então leia para mim o que te fascina. – sussurrou, olhando para o rosto corado a sua frente. A jovem ajeitou novamente os óculos, abaixando de leve a cabeça, tentando esconder o rubor de suas bochechas, e virando delicadamente as páginas, achando em fim o primeiro capítulo.

 

 

O relógio marcava com seus ponteiros 16:35pm. O silencio não era presente, pois ao longe, uma voz se manifestava, iniciando uma história da maneira mais clichê que se conhece.

 

 

Era uma vez...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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