Teus olhos negros escrita por Jude Melody


Capítulo 1
Capítulo único




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Dizem que os olhos de vidro das bonecas de porcelana são como sanguessugas que absorvem almas. Ocas por dentro, elas buscam desesperadamente algo com que possam se preencher. Mas Pinóquio não era uma boneca de porcelana. Era uma marionete de madeira. E, como uma marionete de madeira, todo o seu interior era consistente. Exceto pelos olhos. Eles eram vazios. Negros. Ocos como o interior de uma boneca.

Gepeto fitava-o com um ar melancólico. Sua criação mais parecia um filhote de demônio. O sorrisinho infantil parecia macabro em seu rosto. Mas havia algo mais. Uma magia estranha ocultava-se na negritude de seus olhos vazios. Como um feitiço antigo que ninguém conhece. Um encantamento. Ele não era feito das trevas estampadas em seu rosto. Seu coração de madeira era puro. Em algum lugar ali dentro, ele era apenas uma criança. E Gepeto aprendeu a amá-lo.

No parque sombrio da cidade, as pessoas olhavam de soslaio. Meninos e meninas deixavam suas bolas e bonecas de pano caírem quando a marionete passava. Os adultos faziam uma careta de horror. Gepeto apenas ajeitava os óculos em seu rosto macilento e abria um sorriso gentil. Desde que Pinóquio ganhara vida, era a vida de Gepeto que se tornara mais mágica. Ele segurava a mão pequenina, satisfeito com o toque que preenchia seus dedos trêmulos.

Nunca imaginara que ainda seria capaz de criar algo novo depois que perdera a esposa e o filho. Durante anos, vivera sozinho na casa, jogando restos de comida para o gato de rua todas as manhãs. O felino era magro e feio. Seu miado arranhado agonizava os ouvidos. Gepeto fazia-lhe uma carícia entre as orelhas pontudas e fechava a porta. Retornava à sua solidão.

Quando Pinóquio apareceu, a casa tornou-se mais quente. O gato passou a habitar o sofá velho da sala. Um peixinho miúdo passou a decorar a bancada da cozinha. Após tanto tempo, Gepeto conhecia a felicidade. Ela segurava sua mão trêmula e sorria alegre com seus olhos vazios. Durante as noites, quando ele se deitava, via Pinóquio sentar-se no banquinho e abrir um sorriso sombrio enquanto lhe dirigia um olhar negro.

Os pais reclamavam. Pinóquio assustava as outras crianças. Elas tinham pesadelos com ele. Gepeto encolhia os ombros, entristecido. “Mas ele é a minha criança!” pensava, sentindo o coração apertar “Por que vocês podem ser felizes, e eu, não?” Certa vez, ao descer para a sala durante uma gélida madrugada, encontrou Pinóquio conversando com um pedacinho de carvão em frente à lareira. A cena causou-lhe um riso.

— Que fazes aí sentado, meu pequeno? Não estás sentindo frio?

Pinóquio virou-se para ele, encarando-o com seus olhos vazios.

— Shiu, papai. — sussurrou baixinho. — Assim vamos assustá-lo.

Gepeto achou a resposta curiosa. Ajoelhou-se lentamente ao lado do filho e observou o pedacinho de carvão. Ele era pequeno e negro como os olhos de Pinóquio, mas não tinha vida.

— É só um pedaço de carvão, pequeno.

— Não. — rebateu a marionete. — É minha consciência!

— Tua consciência? — Gepeto coçou a cabeça. — E desde quando tu pensas nessas coisas?

Pinóquio abriu um sorriso divertido.

— Não dizem que os olhos são a porta para a sua alma?

— Sim, dizem, sim. — o velho aquiesceu.

— E meus olhos não são negros como a noite mais profunda?

— Sim, são, sim. — Gepeto concordou, mas ainda não entendia onde Pinóquio queria chegar.

O sorriso alargou-se no rosto de madeira.

— Pois este carvão é escuro como o que tenho aqui dentro. É minha consciência!

Gepeto soltou uma boa gargalhada. Não ria assim havia anos. Com a mão trêmula, afagou os cabelos escuros de Pinóquio.

— E será que eu posso segurar um pouco a tua consciência?

A marionete balançou a cabeça.

— Pode, sim, papai. Mas toma cuidado, que ela quebra fácil, fácil.

Que serendipidade! Pinóquio era um filósofo. Tão jovem e já sabia alguns segredos desta vida!

Os dias passaram-se lentos. Pinóquio sempre carregava a consciência no bolso e a consultava quando necessário. Uma raposa surgiu em sua vida, metendo o focinho no que deveria deixar quieto. Fascinou-se pela marionete e encucou-lhe ideias até conseguir arrastá-la a um circo cigano. Que desgraça! Os olhinhos negros dele encantaram o homem gorducho, que esfregou as mãos, satisfeito.

— Gostas de cantar, boneco?

— O que é cantar? — indagou o inocente Pinóquio.

— É dizer em voz alta o que o coração cala. — respondeu o cigano, fingindo-se bondoso.

— Eu posso cantar com a minha consciência?

O gorducho não entendeu a pergunta, mas achou melhor dar trela ao discurso de Pinóquio.

— Mas é claro! Todo bom cantor canta com sua consciência!

— Pois, então, serei o melhor cantor do mundo! — o pequeno abriu um sorriso alegre.

Ele fez um tremendo sucesso. Logo públicos ensandecidos amontoavam-se em frente a um pequeno palco, admirando-se com a marionete que andava e cantava sozinha. Pinóquio adorou. As crianças não o olhavam mais com medo. Os adultos apontavam para ele e riam. No terceiro dia, a consciência permaneceu em seu bolso. Ele não quis consultá-la.

Uma semana foi o prazo de sua infantil travessura. Gepeto foi buscá-lo no palco, gritou com o cigano diante de vários desconhecidos e retornou à sua humilde casa com as mãos mais trêmulas do que nunca. Em seu quarto, desabou na cama, tristonho. Pinóquio tentou tocar seus dedos, mas Gepeto não sentiu a felicidade de sempre.

— Eu te magoei, pai? — perguntou a marionete.

— Sim, filho. — o velho suspirou. —Magoaste-me com tua travessura.

Os olhos continuaram negros, mas pareceram preenchidos de tristeza.

— Não o magoarei de novo, pai!

As promessas são mesmo muito fortes, mas não são invencíveis. A raposa apareceu de novo, trazendo uma nova proposta. Pinóquio hesitou e tirou o pedacinho de carvão do bolso.

— Preciso consultar minha consciência. — tentou explicar.

— Deixe essa coisa suja de lado! — retorquiu a raposa, batendo no carvão com a ponta de sua bengala. — Não temos muito tempo. Vamos, vamos! A felicidade espera!

Pinóquio seguiu a raposa, deixando o pedacinho de carvão para trás.

— Pinóquio? — chamou Gepeto, saindo de casa com o gato no colo. — Pinóquio!

Ele viu o filho afastar-se ao lado da raposa, cantarolando em voz alta. A tristeza preencheu seu peito outra vez. Gepeto soltou o gato e começou a correr, mas agora suas pernas também tremiam. Ele caiu no chão.

— Pinóquio... — chamou baixinho, o braço estendido. — Meu pequeno...

A raposa levou a marionete a um parque de diversões só para meninos. Havia cigarros e cerveja por todos os lados. A fumaça preenchia os olhos ocos de Pinóquio, causado-lhe irritação. Ele desejou voltar para casa, voltar para seu querido pai. Mas a raposa sumira, e ele desconhecia o caminho da volta.

Depois de algumas horas passeando pelo parque, encontrou um menino ruivo chamado Espoleta. Ele fumava como homem, bebia como homem, mas tinha voz de criança. Pinóquio juntou-se a ele, pois a companhia fazia-o sentir-se mais seguro.

— Quer beber também? — Espoleta ofereceu um copo transbordante de cerveja.

— Não, obrigado. — respondeu Pinóquio, educadamente.

— Não me diga que está com medo. — provocou o menino, tragando o cigarro que segurava na outra mão.

— Não estou com medo!

— Então, por que não bebe? — Espoleta arqueou as sobrancelhas.

— Porque não quero.

— Está com medo, sim!

— Não estou, não!

— O que foi? — Espoleta jogou o copo de cerveja e o cigarro no chão. — Por que não bebe? Por que não fuma? Está com saudades do papai?

Pinóquio moveu seus dedos pequeninos, mas não sentiu o toque familiar de Gepeto.

— Ora, vejam só! — debochou o menino. — Ele está com saudades do papai! Que criancinha!

— Não estou, não!

— Está, sim!

— Não estou, não!

— Oh! — Espoleta recuou. — Seu nariz...

Pinóquio levou a mão ao rosto. Tomou um grande susto! Seu nariz estava maior do que se lembrava. Ele simplesmente crescera sozinho. Angustiada, a marionete caminhou até um beco escuro e se sentou sobre um barril de cerveja vazio.

— O que devo fazer agora, pai? — perguntou baixinho.

Um menino passou pelo beco com um cigarro na mão e chutou um pequeno objeto. Ele voou e acertou o rosto de Pinóquio.

— Ai! O que é isso?

Ele pegou o pequeno objeto em suas mãos e quase não conseguiu conter o sorriso. Era um pedacinho de carvão.

— Minha consciência! Ela voltou!

Pinóquio segurou-a nas mãos pequeninas, como alguém que reza. Se fosse uma criança de verdade, estaria chorando.

— Por favor, deixe-me encontrar meu pai!

— Mas tu vieste até aqui por tua própria vontade. — retorquiu o pedacinho de carvão.

— Mas eu quero voltar para casa! Eu me arrependo tanto... Quero ver meu pai...

— Então, admites que era mentira quando disseste que não estavas com medo?

— Eu estou com medo...

Ao dizer isso, sentiu-se mais leve. Seu nariz voltou ao tamanho normal. Uma pequena recompensa pela sinceridade.

— Pois, então, é só voltar para casa! És uma marionete esperta. Encontrarás o caminho!

Pinóquio apertou o pedacinho de carvão, mas ele não disse mais nada. Resoluto, levantou-se e disparou pelo parque, empurrando Espoleta no caminho.

— Mas o que...? — o menino olhou em volta, assustado.

— Eu estou com medo, sim! — gritou-lhe Pinóquio, agachando-se para desviar de um adolescente bêbado que dançava girando os braços.

Após três noites e dois dias, Pinóquio finalmente chegou a sua casa. Adentrou-a apressado, atropelando as próprias pernas no caminho. Correu até o quarto do pai, louco para abraçá-lo e implorar por perdão. Mas Gepeto estava deitado imóvel na cama. Aos seus pés, o gato ronronava baixinho, tristonho.

— Papai? — chamou Pinóquio. — O senhor está dormindo?

Ele subiu na cama e se ajoelhou ao lado do velho. Viu que seu rosto estava mais macilento do que nunca, e sua pele, fria. Tocou sua mão, mas os dedos dele não envolveram os seus.

— Papai? — chamou de novo. — Eu voltei, papai. Acorde.

Mas não havia qualquer resposta. Gepeto permaneceu inerte. O coração de madeira de Pinóquio entristeceu-se.

— Papai... O senhor morreu?

Ele ficou ajoelhado na cama. A casa estava fria. Não era mais um lar. Pinóquio sentiu o corpo estremecer, mas não conseguiu chorar, pois marionetes não choram. Lembrou-se da preciosa lição que o cigano ensinara-lhe a respeito do cantar.

— Quando você faz um pedido a uma estrela... — murmurou. — Não faz diferença quem você é... Tudo o que seu coração desejar... Irá se tornar... Real...

Pinóquio segurou a mão fria de Gepeto e fitou seu rosto. Se não tivesse quebrado sua promessa, seu pai ainda estaria ali. Gepeto morrera de tristeza.

— Se seu coração está nos seus sonhos... — prosseguiu. — Nenhum pedido é tão extremo... Quando você faz um pedido a uma estrela...

Ele apertou aqueles dedos. Os mesmos dedos trêmulos que o criaram naquela tarde milagrosa.

— Como os sonhadores fazem...

Pinóquio sentiu um leve aperto em suas mãos. Assustado, ergueu o rosto, e viu o rosto de Gepeto contorcer-se um pouco. As pálpebras tremeram. Ele abriu os olhos.

— Meu pequeno... — sussurrou com uma voz quebrada.

— Papai!

O velho sentou-se na cama com dificuldade e abraçou o filho. Um miado agudo preencheu o quarto quando o gato exclamou de felicidade. A casa era quente outra vez. Ela era um lar.

— Papai! Perdoe-me! Eu... — Pinóquio afastou-se, o coração pesado.

Gepeto ergueu uma mão trêmula.

— Você voltou. É isso que importa. — um sorriso torto cortou seu rosto macilento. — Eu te amo, Pinóquio.

A marionete tocou aquelas bochechas pálidas com seus dedos pequenos.

— Eu também te amo, papai. — declarou, retornando àquele abraço.

Dizem que os olhos de vidro das bonecas de porcelana são como sanguessugas que absorvem almas. Ocas por dentro, elas buscam desesperadamente algo com que possam se preencher. Mas Pinóquio não era uma boneca de porcelana. Era uma marionete de madeira. E, como uma marionete de madeira, todo o seu interior era consistente. Exceto pelos olhos. Eles eram vazios. Porque eram a porta para que a alma de Pinóquio preenchesse o mundo de Gepeto.


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