Serena escrita por Maria Lua


Capítulo 25
Consagrados por Beethoven


Notas iniciais do capítulo

ÚLTIMO CAPÍTULO. Notas no fim. Boa leitura!
PS: Recomendo que ouçam a música Adagio – Johann Sebastian Bach durante o capítulo.



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Essa garota é louca. Psicótica. Inconsequente. Esquizofrênica. Apaixonada. Eu estava algemado no chão do carro, sem dores. Sabia que tinha vidro grudado em meu rosto, sabia que estava sangrando, que ficaria todo roxo no dia seguinte, e talvez até tenha luxado o meu joelho, por isso não consegui ver o que aconteceu. Meus ouvidos estavam levemente tapados, minha visão girava – eu havia desmaiado algum segundo?

As vozes começaram a surgir. Ouvia o som dos motores chocados, gemidos dos policiais feridos, metais caindo no chão, ar comprimido vazando, e então movimento. Olhei para o ponto mais alto que minha visão alcançava. A porta traseira do carro estava amassada, sem janelas, um pouco imprensada sob meu pé. Consegui mexê-lo para tirá-lo de lá – só aí senti dor. Aliás, foi nesse momento que a dor veio. Tudo se aglomerou e tomou posse de mim. Eu não sei se gemi ou gritei, mas me manifestei. O sol estava bem em cima de minhas feridas, fazendo-as arder mais ainda. A fumaça tornava quase impossível respirar, sobreviver, falar. Eu ia morrer? Não, meus ferimentos não eram graves, a não ser que houvesse uma explosão.

Ergui mais a cabeça e vi que, de fato, era outro carro lá fora. Um carro chocou-se em nós. E dele eu consegui ver uma linda e longa cabeleira loira e despenteada aproximar-se. Ela tossia de olhos neutros. Esforçou-se para abrir a porta, mas não conseguiu. Então passou a retirar o resto dos cacos de vidro que sobraram na janela. Jogou-se para dentro do carro e sorriu para mim.

— Eu estou aqui. Estou aqui. Fique tranquilo. – ela sussurrava, e estranhamente eu me acalmava. Puxou meu pé debaixo da porta sem delicadeza alguma, mas a minha adrenalina voltou a subir. Esforcei-me para me apoiar nela, e então consegui me sentar no carro. Ela tentou abrir a porta do outro lado, mas nenhuma viatura abre por dentro. Tornou a pular a janela. Nesse momento os policiais, que tentavam sair do carro, viraram-se para trás.

— Ei! Fique bem aí! – um deles gritou. – Onde está o rádio? Rápido, chame alguém!

Eles tentavam se comunicar entre si, confusos e talvez feridos com a batida. O motorista tinha sangramentos na cabeça e no braço esquerdo, mas não pude notar mais nada. Serena gritava do lado de fora da janela para eu lhe dar a mão. Eu o fiz e fui puxado para fora do carro. Senti meu corpo sendo arranhado ao fazê-lo, mas isso era o de menos. Estava jogado no capô quente do outro carro. Ela era a única que mandava em meus movimentos – eu estava incapacitado de ajudá-la a me ajudar.

— Venha, Charlie, entre no carro. Por favor, temos que ir! – ela conseguiu me colocar no banco do carona, sentando-se ao meu lado, Ela deu ré e então partiu por fora da estrada. Subiu no gramado e acelerou.

Minha mente foi voltando a si. Serena havia jogado um carro em cima da viatura para pará-la e me tirar dali. Um ato suicida e romântico. É, apenas um insano apaixonado poderia ver algo bonito nisso. Ela, que foi confirmada com esquizofrenia, me provou o seu perigo e complexidade. Poderia ter se matado. Me matado. Matado os policiais que não faziam nada além do seu trabalho. Mas teve a necessidade de fugir. Devo me considerar seqüestrado? Sou um refém. Ah, se for, com certeza não é dela... Sou refém da vida. Mesmo na cadeia não deixaria de ser seu ou de desejar isso.

Talvez esquizofrenia seja contagioso, sabe? Ou pode ser uma espécie de hipnose. Já li que os hipnotizados não tem consciência de que estão fazendo algo contra sua vontade. Talvez seja isso. Nada justifica minhas atitudes e definições de certo e errado. Nada.

As janelas do carro estavam rachadas, porém semi-abertas. O vento batia em nossos rostos com força. Olhei para ela. Ela sorria. Ah, o sorriso de Serena! Era delicado e suave, nem mesmo Mona Lisa consegue superar. Esse sorriso dizia muita coisa sobre ela, mas também abria espaço para novas interrogações. Seu rosto sangrava em alguns cortes, assim como seu pescoço, ombros, braços, pernas. Havia também hematomas causados por Violet. Mas ela sorria. Quando notou que eu a observava passou a olhar para mim. Seu sorriso virou uma gargalhada que deixava seus olhos minimizados e transformados em duas linhas curvas. Seu cabelo estava voando pelo banco de trás. Ela esticou o braço e ligou o rádio. Conveniente: Love Story, de Beethoven. De fato fomos consagrados por Ludwig.

Olhei para frente. Um campo bem ensaiado. Estávamos deixando rastros na grama. É claro que mais adiante ela pegaria uma estrada e sumiria. Provavelmente iríamos trocar de carro. Mudaríamos de país, nomes, e tudo o que planejamos. Todas as nossas loucuras. Não fazia sentido escolher essa vida, mas eu escolhi. A minha insanidade deu as mãos à dela. Talvez ambas sempre tivessem existido. Talvez uma procurasse a outra desesperadamente para, simplesmente, talvez, deixassem de existir. Talvez essa insanidade complementar tenha sumido, porque agora eu não tinha mais dúvidas. Não queria resposta sobre Deus, sobre o universo, sobre a política ou a verdade universal. Nenhum 42 me interessa mais. Agora o mundo e todas as suas loucuras desapareceram quando o meu sistema solar tornou-se a minha pequena e loira esquizofrênica.

Não tinha mais o que fazer.

Apenas sobreviver.

Adagio – Johann Sebastian Bach.


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Notas finais do capítulo

Bom, gente, acabou. Para mim foi realmente incrível escrever essa história. Sei que no fim tudo desandou, que eu não fui a autora mais comprometida do mundo, mas jamais a abandonaria. Serena e Charles são importantes para mim. É meu triste vê-los indo embora, mas teria que acontecer. Eu sei que essa história não seria o que é se não houvesse tanto apoio da parte de vocês, e agradeço muito. Fiz amigos aqui, e fico honrada de já ter aberto algum sorriso em alguém por aí.
Espero que nos vejamos novamente em outras histórias, afinal o que não me falta é ter coisa para contar e transformar. Espero que tenham gostado tanto quanto eu. Obrigada!