Serena escrita por Maria Lua


Capítulo 1
Adeus, Charles




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Era difícil decidir o que se quer da vida durante a adolescência. Era difícil alguém tão novo, ainda aos dezessete anos, ser aceito e ainda por cima ganhar uma bolsa na faculdade de Letras, me disseram. Era difícil aos vinte e um anos um aluno se formar como licenciado na mesma faculdade. Era difícil alguém sem experiência conseguir um emprego antes mesmo de conseguir um estágio. Era difícil para um licenciado, homem, dar aula em um colégio interno feminino. Era tudo muito difícil para aqueles sem visão, sem talento, sem vontade. Mas eu consegui. Tenho vinte e três anos, formado em literatura, e havia caído nas graças da diretora do Colégio Interno Marie Curie. De fato as minhas notas na faculdade, os elogios dos professores e toda a minha falácia na entrevista com a mesma poderiam bastar se fosse um colégio qualquer, mas um colégio interno feminino exige muita confiança em uma pessoa. Confiança que consegui por mérito próprio.

– Charles, a Violet está aqui! – minha mãe me chamou, pondo o rosto para dentro do meu antigo quarto. Olhei para ela, que observava cada canto desse ambiente tão familiar.

– Tudo bem, já estou indo. – falei, fechando as últimas malas em cima da cama.

– É muito difícil ver esse quarto vazio... – ela entrou, parando ao meu lado. Notei que ainda passava o olho por todo lado. – Ontem, era o seu campo militar. Hoje, é só uma lembrança.

Ela estava certa. A cama já não tinha mais forra, as prateleiras e móveis já não tinham mais livros ou roupas, o computador não estava mais na mesa de estudos, assim como cadernos e todos os meus materiais. Estava tudo vazio. Até mesmo a bagunça havia se mudado.

– Sra. Humphrey, não sabia que era tão nostálgica. – sorri para ela. – Sabíamos que uma hora eu ia seguir meu rumo.

– Sim, mas tão cedo! Esse quarto ainda tinha que ter muitos pôsteres pendurados. Por falar nisso... Está levando todos eles? Até aqueles com pornografia no verso? – ela sorriu.

– Você sabia? – arregalei os olhos, ainda sorridente. Era inegável a minha felicidade por conta da transição entre adolescente e adulto. – Deveria ter me contado, evitaria muito segredo e muitas conversas sobre o motivo de eu pendurar o Frank Sinatra em minha parede. E sim, vou levar. É um internato, já viu como as pessoas se vestem por lá?

– Charles! É um ambiente estritamente profissional, não deve notar os uniformes de ninguém. – repreendeu.

– Eu sei mamãe. – ri. – Estava brincando. Agora vamos pra sala, a Juliet já deve estar entediada com o papai.

– Deixe-me ajudar com as malas. – ela tentou pegar uma das bagagens de minha mão.

– Não, tudo bem. Vamos lá.

Ao chegar à sala Juliet estava parada, em pé, conversando com o meu pai na porta da sala. Quando me viu, com os olhos tristes, ela sorriu. Aproximou-se de mim e me deu um beijo ansioso. Juliet havia sido a única pessoa que não ficou feliz com a minha novidade, com o meu primeiro emprego. Namoramos desde o meu segundo ano de faculdade, o ano em que ela conseguiu nota o suficiente para cursar também como bolsista, e desde então estávamos sempre juntos. Seja em família, com amigos, em debates, palestras. Gostávamos das mesmas coisas, o que facilitava o nosso relacionamento, e eu adoro o que temos. Ou o que tínhamos. Essa vai ser a primeira coisa que farei sem ela nos últimos dois anos e meio. A primeira coisa por mim. Longe dela. Por mais que eu venha a sentir saudade de nós dois, não consigo fazer com que isso afete minha ansiedade por uma vida nova, morando em um internato, em uma cidade à quatro horas de distância. Era o meu futuro. Eu dependia daquilo.

Mas, de qualquer maneira, tinha que encarar essa despedida com ela. E me partia o coração. Eu tenho certo fraco por lágrimas – mal consigo suportar ao ver Juliet chorar por conta de filmes, quanto mais por conta de minha partida. Ela, por sua vez, é muito sentimental. Então lágrimas eram quase certeiras. E, se a conheço como penso conhecer, tenho certeza de que ela usaria isso para me convencer de ficar, se eu não tivesse avisado em cima da hora, três dias antes.

– Vamos deixá-los a sós. Charles, eu vou preparar um lanche para você levar durante a viagem. – minha mãe falou indo para a cozinha, sendo seguida por meu pai.

– Já está pondo as malas no carro? – ela perguntou, apontando para a bagagem que trouxe comigo. Eu acenei positivamente, sem desviar os olhos dos dela. – Mas está de noite... Está ficando tarde. Vai pegar a estrada logo agora?

– Sim, é preciso. Tenho que chegar bem cedo para me acomodar, e a diretora Wilkes quer que eu dê aula ainda pela tarde. – toquei em seu rosto, alisando-o suavemente. Ela fechou os olhos e apertou minha mão contra suas bochechas, em um apelo de toque. – Você vai ficar bem. – Eu me aproximei, depositando um beijo em sua testa. Ela abriu os olhos para me encarar.

– Não era isso que eu esperava ouvir em nosso último dia juntos. – ela se afastou, ficando de costas para mim.

– E o que esperava ouvir? Você sabe que o nosso relacionamento podia acabar com uma oportunidade dessas. Nenhum dos dois nunca pretendeu ficar aqui nessa cidade para sempre. – falei, mas logo me arrependendo disso. Ela virou-se para mim em fúria.

– Não, Chuck. Eu não sabia que o nosso relacionamento era frágil assim. Se eu soubesse, com certeza não me jogaria de cabeça nessa. Você muda de cidade, você conquista o mundo, e eu continuo aqui. Continuo na mesmice de uma vida medíocre. - falou, usando um tom ríspido que nunca dirigiu à mim antes.

Respirei fundo.

– Violet, não é hora pra isso... Já tivemos essa conversa antes. Eu lutei muito pela oportunidade que tive, e você tem tanta capacidade quanto eu ou qualquer outro. A questão é que eu me esforcei mais para isso.

– O assunto aqui não é o seu ou o meu futuro. É o nosso. – ela desviou o olhar, cruzando os braços. Conheço essa garota o suficiente para saber que ela disse exatamente o oposto do que pensa. Soltei o ar, novamente.

– Não há futuro. Não vamos saber render um namoro com essa distância. Cidades diferentes, Violet. Acorda! Eu consegui um emprego, um dia você também vai, e mal vai ter tempo para uma ligação de vídeo, quanto mais para darmos uma fugidinha até uma cidade no meio do caminho para passarmos a noite. Não tem nem cabimento pensar na possibilidade! – falei, quase aos berros. Notei que o meu tom de voz e as palavras que escolhi a magoaram. Imediatamente me senti arrependido. – Olha, me desculpa... Você sabe que não é isso que quis dizer. – tentei me aproximar, mas ela se afastou, mandando-me parar.

– Não. Você está certo. Já chega dessa fantasia. Já chega de Elliot e Elizabeth Humphrey Dylon. Já chega de sonhar com os planos que nós fizemos, dos filhos, do futuro, da velhice. Então... – ela falava, enquanto dava passos para trás em direção a porta. A esse ponto, seu rosto já estava vermelho e os olhos cheios de lágrimas. – Vamos facilitar esse adeus. Espero que você tenha sucesso nesse emprego, nova cidade, nova vida, e um novo futuro para programar. Porque é tudo o que tem nesse momento. Bom... Boa sorte. – notei que sua mão tremia ao abrir a porta, mas não a impedi de sair. Não fui atrás dela. Esse pode ter sido o meu maior vacilo em nosso relacionamento, mas não iria correr atrás. Era o nosso fim, o meu começo.

Olhei para a esquerda, e lá estavam meus pais olhando tudo, parcialmente tristes. Abaixei a cabeça e levei minhas malas para o carro. Após arrumar tudo, fui me despedir de meus pais. Nos olhos de meu pai, eu via felicidade. Nos de minha mãe, saudade.

– Por favor, prometa para mim que vai se alimentar bem, que vai nos dar notícias, nos deixar informados... Tudo, como se ainda fôssemos vizinhos de quarto. – minha mãe pediu, me abraçando.

– Não se preocupe. Vou sentir tanta saudade quanto vocês. – eu falei, apertando mais o abraço. Meu pai se aproximou, desfazendo o abraço. Ele sorria como nunca antes.

– Estamos orgulhosos de você. Por tudo. – ele apertou minha mão bem firme. O fato de ele aprovar e se orgulhar faz com que minha satisfação pessoal apenas aumente. Posso não ser o advogado que ele sempre quis ser, mas por ser muito bom em algo que gosto muito, eu sei que ele também está satisfeito. Apenas nunca soube me dizer.

Rendemos a despedida por mais um tempo, até eu entrar no carro e de fato pegar a estrada. Deixar tudo para trás foi mais fácil do que pensei. Quando as únicas luzes que pude ver se tornaram as dos faróis e estrelas eu só consegui pensar comigo mesmo: liberdade. Estou provando o gosto da liberdade pela primeira vez. Indo rumo à vida que eu mesmo vou fazer para mim. Por mim. Conhecer um novo lugar, uma nova realidade, novas pessoas, e aí sim... Pensar no que quero. Criar raízes. Então, Marie Curie, me espere. Estou aí pela manhã.


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