A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 35
Marcas de sangue




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O vento agitava os pés de arroz, produzindo uma espécie de chiado, quase um lamento, melodioso e constante. Por alguns minutos, tal ruído foi a única coisa a preencher seus ouvidos enquanto encaravam a ameaça que se aproximava, mas não demoraria para que outros sons, bem menos agradáveis, tomassem conta do espaço.

Os demônios vinham aos bandos, emaranhados uns aos outros, selvagens e grosseiros. Alguns lutavam entre si e eram eliminados pelo caminho. Outros, apenas ignoravam os demais e mantinham a distância. Vista de longe, era uma cena confusa.

— O que está acontecendo? — Kuwabara perguntou.

— O portal não foi fechado a tempo. Esses são youkais simples, diria categoria D talvez. Geralmente os primeiros a se aproveitarem de uma brecha — respondeu Kurama, que olhava fixamente para o que acontecia mais à frente.

— Como assim? Os portais ficaram abertos por meses! Por que só agora essa invasão? — perguntou Kuwabara.

— Porque nós destruímos o Mercado Negro e acabamos com os que comandavam o lugar — Yusuke falou, taciturno — Não há mais ninguém controlando a passagem.

Kurama concordou silenciosamente com o amigo. Temia que isso fosse acontecer, mas tinha esperança que as barreiras fossem fechadas a tempo. Pelo visto, os youkais tinham sido mais rápidos.

— Espera aí — Kiki interrompeu — Que isso de categoria? O que isso significa?

— É só um ranking, baseado em níveis energéticos — Kurama explicou — Não é muito preciso, já que o ki de um indivíduo não é algo estático e pode oscilar até mesmo durante a batalha. Mas basicamente, no caso de demônios, quanto mais baixa sua categoria, mais primitivo ele é.

— Primitivo? Quer dizer que não são muito espertos?

— Exatamente. Mas o que não possuem de cérebro, compensam com músculos. Esse tipo de youkai só conhece uma maneira de conseguir o que quer, que é usando a força bruta. Já soube de casos onde foram capazes até mesmo de derrotarem demônios mais evoluídos, que pecaram por os subestimarem demais. Nunca duvide da persistência de um ignorante. Eles não sabem quando recuar.

— Pois eu aposto que acabo com todos sozinho — falou Hiei, já sentindo a sede de sangue que começava a tomar conta dos seus sentidos.

Ele sacou a espada, se preparando para o ataque, mas os demônios não vinham mais na direção do grupo. Haviam desviado a rota, e agora se dirigiam a uma pequena vila, a oeste dali, atraídos pelo irresistível aroma humano que provinha do lugar.

Os cinco olharam horrorizados, já prevendo o que aconteceria. Alguns soltaram exclamações e palavrões, e Yusuke foi o primeiro a se mexer, correndo o mais rápido que conseguiu. Tentou diminuir a distância a todo custo, mas o bando estava muito mais avançado e alcançou o vilarejo antes que o garoto pudesse desferir qualquer tipo de golpe. Usar o Leigan agora implicaria em admitir a morte de todos aqueles locais — e ele não queria mais nenhuma morte desnecessária na sua conta.

Logo os outros quatro também corriam a seu lado, compartilhando sua urgência. Não foram ágeis o bastante, no entanto, para impedir que os primeiros gritos de terror fossem arrancados de gargantas inocentes.

Na vila, as casas ao longo da estreita rua de pedras haviam se transformado em um cenário de tragédia. Telhados estavam arrancados, paredes, destruídas, e móveis, espalhados pelo que restava das construções ou jogados pela calçada. Os demônios não vinham problema em devastar o que viam pela frente, se isso significasse conseguir o que vieram buscar.

A visão que tinham do lugar ia ficando cada vez mais lúgubre a medida que avançavam. Os youkais se espalhavam por toda parte, se divertindo com o pavor dos humanos que conseguiam capturar e devorar. Riam entre si, deixando à mostra as presas afiadas manchadas de sangue.

Kuwabara se sentiu enojado e desceu com força sua espada espiritual em todos os inimigos que conseguia tocar. Rasgou alguns ao meio e chegou a amputar outros tantos, enquanto era seguido de perto por Yusuke, que concentrava toda sua energia no punho enquanto os atacava com raiva. Aplicava tanta intensidade em cada golpe que seus adversários eram arremessados pelos ares às vezes com um único soco.

Hiei, por sua vez, também já se locomovia com destreza pelas ruínas, seus olhos brilhando com a mesma intensidade do metal da espada que refletia a luz do sol. Em poucos segundos, a lâmina já tinha perfurado a pele de dezenas de inimigos, cortando com maciez a couraça de outros tantos.

Perto dali, o Rose Whip de Kurama estalava no ar, acertando sem piedade os demônios que encontrava. Sua maior dificuldade estava em justamente desviar das pessoas que corriam em pânico por entre os destroços, fazendo os youkais se espalharem ainda mais. A maioria simplesmente fugia do chicote de Kurama, preferindo sair no encalço dos humanos e dar início à caçada — com o youko logo atrás.

Kiki tentava ajudar os moradores como dava, bloqueando o caminho e atrasando seus predadores para fazê-los ganhar um pouco mais de tempo. Em alguns casos, se engajava em lutas corporais, comprometendo ainda mais o estado do ombro direito — que ainda sofria as dores pelo deslocamento recente. Quando queria dar um descanso ao membro machucado, apenas repelia os oponentes, os atirando para longe. Conseguiu quebrar a cabeça de pelo menos uma meia dúzia com essa estratégia.

Aos poucos, o grupo foi se cansando. A desvantagem numérica continuava enorme, e, depois de terem abatido dezenas, alguns ferimentos começaram a aparecer. Kuwabara tinha certeza de que tinha fraturado ao menos uma costela, enquanto Yusuke colecionava arranhões pelos braços descobertos. As roupas de todos davam sinais de quão brutal estava sendo aquele combate e não havia um só entre eles que não estivesse com gotas de suor escorrendo pela nuca.

A balbúrdia já tinha causado a morte de vários aldeões, principalmente idosos e crianças, os mais fragilizados. A maioria perecia nas mãos dos youkais; entretanto muitos foram simplesmente pisoteados durante a confusão, criando uma trilha de corpos que era devorada na primeira oportunidade.

E eles faziam de tudo para o número de óbitos não subir ainda mais — o que significava ter que frear o próprio uso de suas energias. Sabiam que se apelassem para o máximo de suas capacidades, atingiriam vários inocentes pelo caminho. Todos aqueles fatores os causavam a sensação de estarem perdendo a batalha, mesmo sendo capazes de ganhar.

De repente, um feixe de luz intenso cortou o céu, causando um alvoroço em um ponto mais distante do vilarejo. Os cinco se viraram ao mesmo tempo. Bastou um olhar entre eles para que todos começassem a correr naquela direção.

Nem precisaram se aproximar muito para entender o motivo da confusão. A dezenas de metros dali, o Esquadrão de Defesa do Mundo Espiritual, encabeçado pelo Comandante Liu, marchava em ritmo militar pelos destroços. Pararam precisamente no ponto mais central da aldeia e iniciaram uma formação triangular, se preparando para o ataque.

Quando o comandante deu alguns passos para o lado e gritou algumas palavras de ordem, eles se sobressaltaram. Foi com um certo receio que viram cada um dos soldados erguendo os braços, acumulando energia na palma da mão.

— Merda, eles vão atirar! — Kiki exclamou assim que percebeu a iminência do disparo.

Instintivamente, todos procuraram se proteger do ataque, que por pouco não os deixou atordoados. Primeiro, foi um clarão, tão intenso que quase os cegou, obrigando a fechar os olhos. Em seguida, uma vibração potente empurrou tudo ao redor, fazendo tanta pressão em seus corpos que eles precisaram levar uma das mãos ao rosto para se proteger.

Quando abriram os olhos, todo o pouco que sobrava da aldeia tinha virado pó. As ruas, casas e comércios não existiam mais. Haviam sido desintegrados, junto com os demônios que ainda restavam. E junto, eles perceberam, com o resto dos moradores. Agora todo o terreno era apenas uma enorme planície aberta, coberta de pó e manchada de sangue.

— Miserável! — Kiki exclamou — Não acredito que a gente teve tanto cuidado em poupar as pessoas, pra vir esse maldito e acabar com tudo!

Em dois tempos, Yusuke já estava sobre o comandante, acertando um soco que não apenas o derrubou, como também o fez ser arrastado por metros. Imediatamente, o pelotão que o acompanhava cercou o garoto, erguendo as mãos para um novo ataque.

— Você matou centenas de inocentes! — ele berrou, nem um pouco impressionado com a ameaça da tropa ao seu redor.

Liu levantou, avançando sobre o rapaz com passos firmes.

— O bem de poucos não deve se sobrepor ao bem da maioria — o comandante respondeu — Se essa invasão não fosse contida, o estrago no Mundo dos Humanos seria muito maior.

— E desde quando o Reikai se preocupa com o bem-estar dos humanos?

Yusuke tinha uma grande implicância com o Esquadrão, mas ainda desconhecia as acusações de Kurama sobre o comandante. Se soubesse, certamente não estaria perdendo tanto tempo com debates.

— Você está brincando com fogo, rapaz! Não pense que por ser amigo de Koenma, não sofrerá consequências pelas suas ações.

Ao seu lado, Kurama percebeu o rosto de Kiki mudar. As sobrancelhas se uniram e ela franziu os lábios, esticando de leve o pescoço para frente, a típica expressão que fazia quando estava prestes a explodir. Sabia que ela começaria a vomitar todas as acusações que tinha ouvido contra o comandante e o esquema obsceno que montara no Reikai, e achou que não seria prudente. Não em um momento delicado como aquele, que incitaria ainda mais revolta entre os presentes. Por isso, apoiou a mão no ombro da garota e tomou a palavra antes que ela tivesse a chance.

— Veio colher os louros da batalha, Liu?

— Vim cumprir meu papel e proteger o Mundo dos Humanos da ameaça dessa escoria. E encontro justamente vocês aqui, o que não me admira muito, considerando a fama que carregam. Ou devo dizer, infâmia?

Kiki se agitou de novo, mas Kurama mantinha a mão em seu ombro, e a segurou com firmeza, esperando que ela entendesse.

— Nós nos arriscamos no Makai para tentar ajudar você a limpar a sujeira do Mundo Espiritual — Kuwabara falou — O mínimo que deveria fazer era nos agradecer.

— Eu não quero agradecimento nenhum — Hiei se pronunciou, com uma voz gélida — mas a sua prepotência está começando a me irritar. E você não quer me ver irritado.

O clima entre os dois grupos era o mais denso possível. Qualquer fagulha ali seria capaz de gerar uma explosão de níveis extraordinários.

No entanto, algo muito pior aconteceu.

Uma risada seca e rouca ressoou do alto, atraindo a atenção de todos e revelando um novo youkai que agora se aproximava. Ele, porém, era completamente diferente dos que tinham acabado de enfrentar. Os primeiros eram animalescos, enormes, com feições monstruosas. Este era humanóide, imponente e bem mais contido em seus gestos.

O demônio trajava vestes claras que flutuavam com leveza, deixando a mostra os braços musculosos de tonalidade azul que mantinha dobrados na frente do corpo. Kurama, Yusuke e o Comandante Liu ficaram particularmente chocados com a visão.

— O Ningenkai está um pouco diferente desde a última vez que estive aqui — o demônio falou, escancarando os lábios.

— Não é possível! Você devia estar morto! — Yusuke gritou — Eu tenho certeza de que...

— Você está falando daquele plágio mal feito? Não me confunda com aquilo, por favor. Eu sou o verdadeiro Bozukan. Só não me chame de Grego. Detestei esse apelido.

A tropa do Esquadrão estremeceu discretamente ao ouvir aquele nome. Do grupo, a grande maioria só conhecia o youkai pelas histórias contadas boca-a-boca, sem nunca ter estado a tão poucos passos de distância como naquele momento.

— Plágio? Como assim...? — Yusuke murmurou, confuso.

— É muita ousadia de sua parte vir até aqui — o comandante interrompeu — Não vamos permitir que avance! — E, virando-se para a tropa, continuou — Pelotão, ativar modo ofensivo...

Mas Bozukan nem deixou Liu continuar.

— Acho que você ainda não entendeu. Nosso acordo acabou, Liu — disse tranquilamente.

— Eu não sei do que você está falando.

— Não se faça de desentendido. Por quanto tempo você achou que eu fosse continuar esperando? Eu só aceitei esse trato para poder aproveitar a brecha na barreira entre os mundos. Ou você realmente achou que eu estava me importando com seus joguinhos políticos? Não confunda minha cortesia com burrice.

— O que você quer dizer com isso? Nosso comandante não faz acordos com demônios como você! — um dos soldados exclamou.

Novamente a risada rouca se espalhou pelo ar.

— Acho que você está um pouco desinformado, meu jovem.

— Cale a boca, seu maldito! — Liu gritou.

— Cale a boca você!— ele vociferou, aumentando o tom de voz pela primeira vez. Limpou a garganta e continuou — Me perdoem por essa grosseria, mas eu realmente detesto injustiças. Veja bem, o nosso comandante aqui quis usar meu nome e minha fama para proveito próprio, enquanto me mantinha sob controle. Em troca, o Reikai me deixaria em paz e eu ainda ganharia um belo carregamento de filhotes humanos toda semana para me divertir. Parecia um bom negócio, não e mesmo? Eu só precisava ficar longe dos portais, e deixar aquele metaformo idiota se passar por mim.

Kurama não acreditou no que ouviu. Achou que Liu não seria estupido o bastante para ir atrás de um youkai da classe de Bozukan, mas pelo visto estivera enganado. O comandante não tinha ideia no que tinha se metido.

— Acontece que eu não me dou muito bem com certas regras. Não ia aguentar ficar na sua coleira por muito tempo. Cansei de depender da Red Society, e quando soube que o Mercado Negro tinha vindo abaixo, achei que era a hora de voltar à ativa.

Com um movimento rápido, Bozukan arremessou Liu para um canto como se fosse uma velha boneca de pano. O agrupamento de soldados soltou uma exclamação e ficaram divididos entre conferir o estado de seu comandante ou atirar no demônio. Optaram pela primeira opção.

— E parece que posso começar por aqui mesmo... — o youkai falou, olhando para o grupo dos cinco jovens que o encaravam — É cheiro de humanos o que estou sentindo?

Kuwabara logo empunhou sua espada, enquanto Kurama se colocava na frente de Kiki com seu chicote também a postos.

— Chegue perto de alguém e você morre — Kurama avisou, fazendo Bozukan sorrir perante a audácia.

— Você é bem corajoso. Uma pena que essa coragem não será de muita serventia para sua amiga aqui.

— Você claramente ainda não conhece Kurama — disse Yusuke, se aproximando dos amigos — Se eu fosse você, pensaria duas vezes antes de tentar alguma coisa por aqui.

Bozukan encarou o ruivo por alguns instante, reconhecendo finalmente a frieza dos seus olhos verdes.

— Kurama? "O" Kurama? Você mudou, meu caro. O que faz aqui ao lado desses humanos?

— Os protegendo de tipos feito você.

— Que irônico, não é mesmo? — ele sorriu — Parece até que já esqueceu que um dia você foi igual a mim, Kurama.

— Nós nunca fomos iguais, Bozukan.

O demônio riu mais uma vez.

— Tudo bem, Kurama, vou poupar seus amigos por ora, se ficarem fora do meu caminho. Ainda tenho muito o que fazer para recuperar meu tempo perdido aqui no Mundo dos Humanos.

E, dizendo isso, Bozukan ergueu-se alguns centímetros no ar, flutuando. Preparava-se para se afastar, mas virou-se ao ouvir as vozes que ainda vinham do grupo.

— Onde pensa que vai? — disse Kuwabara.

— Você fala demais — Hiei falou, trazendo a espada para sua frente — Podemos acabar com isso agora mesmo.

Hiei avançou com sua habitual agilidade, mas no segundo seguinte era arremessado pelo ar, caindo de costas no chão. Bozukan olhou para os outros que estavam de pé e, antes que qualquer um pudesse reagir, ergueu a mão fazendo um gesto curvo da direita para a esquerda. O choque atingiu os quatro, que caíram, impotentes.

Quando conseguiram levantar a cabeça, o youkai já não estava mais ali.


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