A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 11
Volta ao passado




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A chaleira apitou na cozinha, interrompendo a conversa. A condição da menina era clara: daria sua contribuição para Kurama se este primeiro explicasse tudo que a vinha deixando intrigada desde aquela primeira noite. Ele concordou, ainda que desconfortável com a situação. Tentou fugir de alguns pormenores, sem sucesso. A cada informação nova, Kiki queria saber mais. Foi assim que ela soube da ligação de Yusuke e Kuwabara, seus colegas de escola, com o caso, e a origem dos poderes de Kurama. Tentou parecer o menos impressionada possível, apesar de por dentro sua cabeça estar girando com as novidades. Algo naquilo tudo exercia um fascínio enorme sobre ela, e ela começou a se sentir confortável na presença dele.

Levantou com o pretexto de trazer o chá que deixou preparando na cozinha. A história seria longa, ele tinha alertado, e ela estava precisando de cafeína. Derramou água quente em duas xícaras aleatórias que encontrou no armário — as únicas que estavam limpas — e mergulhou os sachês de chá verde pensativa. Enquanto isso, Kurama aproveitou seu instante de solidão na sala para avaliar até onde seria seguro revelar para a garota. Ela havia escutado tudo com mais atenção do que ele esperava, e suas observações ocasionais eram perspicazes. Ele só esperava que o que ela tinha em troca para lhe dar fosse realmente valioso. 

Ela voltou, trazendo cada xícara em uma mão e as apoiando na mesinha.

— Então você acha que estão levando as crianças para o Mundo dos Demônios? — ela perguntou, sentando no sofá.

— É o que parece.

— E o tal Ishida... seria um demônio também?

— Sua energia com toda certeza era maligna — ele respondeu — você não notou que sua aura era diferente? Achei que você também seria capaz de detectar esse tipo de coisa...

— Eu? — ela indagou, com estranheza — Por que eu seria capaz disso?

— Você também tem poderes espirituais. Não é todo mundo que consegue manipular objetos só com a força da mente.

Kiki o olhou surpresa. Ele era a primeira pessoa que falava sobre os poderes dela com naturalidade. Não que ela falasse sobre isso com muita gente. Teve poucas, mas desagradáveis experiências no passado, e passou simplesmente a esconder o fato.

— Agora que tal me contar de onde você conhece esse grupo?

Kiki suspirou e bebeu um gole do chá. Tinha prometido que contaria o que sabia, se ele primeiro explicasse toda aquela história para ela. Não tinha como negar de que ele cumpriu sua parte do acordo, inclusive respondendo sem rodeios todas as perguntas que ela fez. Nada mais justo do que fazer o mesmo, ainda que as lembranças fossem dolorosas.

— Vamos lá....

(...)

Paciência... como Koenma podia pedir isso num caso como aquele, onde sabe-se lá quantas crianças poderiam estar em perigo? Yusuke tentava, mas não conseguia colocar os pensamentos em ordem. Koenma garantiu que tentaria descobrir algo por debaixo dos panos no Mundo Espiritual, mas ele não confiava na capacidade do baixinho. Sabia que tinha certas coisas que só seriam resolvidas na porrada — e essa era uma dessas.

Porém, sem pistas novas, como proceder? Distraidamente, ele se viu caminhando na direção do apartamento abandonado onde havia descoberto o portal. Koenma pediu pra ele ficar longe de lá, mas era a única coisa concreta que ele tinha e contava com a sorte de esbarrar com o mesmo sujeito novamente. Alguns socos e com certeza ele abriria o bico. Era só questão de saber o que fazer...

Ele só não esperava ser ele próprio objeto de observação de um vulto que acompanhava de longe seus passos na rua.

(...)

— Eu tinha sei lá, uns cinco anos, por aí. Minha mãe me levava toda semana num parquinho perto de casa. Eu sempre via o mesmo cara lá, rindo com as outras crianças, dando chocolates, essas coisas — ela começou narrando — Eu tinha medo de chegar perto, mas um dia, que minha mãe estava distraída, acabei me aproximando. Ela era bonito, sorridente, me ofereceu bala... não parecia perigoso nem nada do tipo. Passei toda a semana a ir pro parquinho já esperando encontrá-lo.

Kiki fez uma pausa. Mesmo tendo anos, as lembranças permaneciam na cabeça dela de maneira vívida. Era como nunca houvesse passado um dia sequer de todos aqueles acontecimentos.

— Claro que minha mãe um dia percebeu e me proibiu de falar com ele. E claro que eu nem liguei. Sempre dava um jeito de acenar de longe, e, às vezes, ainda conseguia um pedaço de chocolate, que eu comia escondida — ela contou, com um sorriso triste — Um dia ele disse que tinha acabado os doces, mas que poderia buscar mais em casa. Perguntou se eu não queria ir com ele ajudar a escolher, disse que morava perto.

Ela baixou os olhos, sentindo novamente a culpa. Quantas vezes ela já não tinha se recriminado por aquele momento, aquele segundo que mudou toda a vida dela? Respirou fundo e continuou:

— Ele me levou para uma casa ali perto. Eu só lembro o quanto eu estava animada por ter conseguido driblar a minha mãe, que, na minha cabeça, estava sendo apenas implicante. Ele me deixou esperando na sala, disse que buscaria as balas no quarto e que não demoraria... — ela fez mais uma pausa — Foi aí que minha mãe apareceu. Abriu a porta sei lá como, entrou desesperada, eu não entendi nada. Ela começou a gritar, disse que chamaria a polícia, me pegou pelo braço pra me tirar dali. Eu fiquei assustada, mas não queria sair. Eu gostava daquele homem, que era sempre tão bonzinho comigo e não entendia por que minha mãe ficou tão brava... ele voltou pra sala, claro, com aquela gritaria, o rosto vermelho. Eu fiquei com raiva da minha mãe, tentei soltar da mão dela...

Kiki parou, fechando os olhos. Como odiava reviver tudo aquilo! A cena reprisava na cabeça dela em um loop infinito, por mais que ela tentasse parar. Duvidava seriamente se um dia seria possível esquecer tudo aquilo. Era como se ela estivesse de novo naquela casa, vendo tudo acontecendo na sua frente, em câmera lenta. A voz de Kurama, no entanto, a trouxe de volta para a sala de estar.

— Você está dizendo que esse homem fazia parte desse mesmo grupo?

Ela acenou com a cabeça.

— Como você sabe?

Ela saiu da sala, em silêncio. Ainda devia ter aquilo em algum lugar. Tentou jogar fora mil vezes, mas tinha uma séria compulsão por guardar absolutamente tudo. Suas gavetas acumulavam tralhas de anos.

Kiki voltou para a sala e entregou um cartão amarelado para Kurama. Assim como o anterior, continha o mesmo símbolo no topo, com o nome Ken Fujimoto na parte inferior.

— Eu peguei isso na casa dele, enquanto esperava... estava caído no chão, em algum lugar da sala — ela justificou — Nunca mais o vi depois daquele dia.

Kurama olhou para os dois cartões. Eram idênticos, apenas nomes diferentes.

— Você lembra onde era essa casa?

— Não sei, Kurama, eu era pequena...

— Alguma chance de sua mãe lembrar?

Ela arregalou os olhos, ante a pergunta inesperada.

— Kurama... minha mãe está morta.

Ele ficou em silêncio, mas seu semblante não conseguiu esconder a surpresa ao ouvir a resposta dela. 

— Ele atirou nela — respondeu, o olhar baixo evitando encará-lo — eu comecei a gritar e umas pessoas apareceram atraídas pelo barulho. Quando a polícia chegou, ele já tinha sumido e minha mãe... ela já estava morta.

Ela conseguia ver o corpo da sua mãe caído na sua frente, o sangue manchando o chão, o olhar de terror no seu rosto sem vida. Se ela tivesse obedecido, se ela tivesse parado de falar com ele, se não tivesse ido na casa dele....

— Eu sinto muito, Kiki... — Kurama falou, constrangido. Imaginava a dor de perder uma mãe, ainda mais em situações tão traumáticas — mas a polícia nunca o encontrou? Por que você não entregou o cartão com o nome dele?

— Minha vida virou um inferno depois disso, e eu nem lembrava que tinha pego esse cartão. Achei umas semanas depois no bolso da calça e sei lá, guardei. Foi horrível ter que ficar contando para os policiais mil vezes a mesma história e eu não queria ter que fazer tudo de novo. Sabia que se mostrasse o cartão para alguém, todo o ciclo de perguntas ia recomeçar e eu não aguentava mais, só queria esquecer! — ela esbravejou, tentando justificar mais para si mesma do que para ele — Eu só tinha cinco anos, droga...

Parou por um segundo com as faces coradas, tentando recuperar o fôlego.

— Mas se vocês estão indo atrás dessa gente, eu também vou.

Ele tomou um susto. 

— Impossível — respondeu de imediato — eu sei como você se sente, sei que quer ajudar, mas não posso permitir isso. 

Kiki não recebeu bem aquela escolha de palavras, e a reação se traduziu na testa franzida e nos olhos apertados com e agora o encarava.

— Em primeiro lugar — ela começou — eu não preciso de permissão nenhuma. E em segundo, você mesmo disse que tenho poderes espirituais. Posso muito bem usar isso em meu favor...

— Um poder que você mal sabe utilizar? Vamos ser honestos: você nunca levou sua energia espiritual a sério. Fica brincando de dados quando podia fazer muito mais.

Ela ficou lívida. Sempre achou sua habilidade extraordinária. Era a primeira vez que alguém falava dela assim, fazendo tão pouco caso.

— Olha aqui, o poder é meu e eu uso como eu quiser! — ela gritou, levantando do sofá. Andou até a janela e se virou para ele — E você está esquecendo que eu tenho mais informações do que vocês. Ainda tenho alguns contatos. Se isso aqui caiu nas minhas mãos, acho que é um sinal para eu finalmente começar a me mexer — disse, puxando o cartão que repousava sobre a mesa e apertando com força na altura do rosto.

— E arriscar sua vida? Isso não vai trazer sua mãe de volta.

Ela deu de ombros.

— Bom, acho que já encerramos esse assunto, não é? Segue seu caminho que eu sigo o meu. 

Kurama não estava acreditando. Sabia que não devia ter partilhado informações com aquela menina. Ele levantou do sofá, mas permaneceu parado, pensando no que fazer. Poderia ir embora, poderia esquecer a garota e se focar no que realmente era importante. Só havia um problema: se achava responsável por aquilo. Se ela fosse mesmo atrás daquele grupo e se machucasse, ainda que de leve, o remorso não iria deixá-lo em paz. E do jeito que ela era petulante, corria mais risco sozinha do que se ficasse perto deles.

— Muito bem — disse, por fim — eu te proponho um trato. 

Ela cruzou os braços, sorrindo com desdém.

— Você acompanha nossa investigação. Te coloco a par das novidades e você nos ajuda a encontrar esse grupo. Ainda posso te treinar para que consiga utilizar todo o potencial da sua energia — ele enumerou — em troca, você me passa todas as informações que diz ter, se compromete a levar o treinamento a sério e promete não agir por conta própria. Temos um acordo?

— Não sei, acho que gostei da ideia de trabalhar sozinha... — falou provocativa, apoiando o corpo na janela.

Kurama continuava tranquilo, olhando para ela serenamente.

— Como quiser — ele se virou, indo em direção à porta — Sabe, meu amigo Hiei ficará mais do que feliz em usar o Jagan para ler a sua mente — comentou, despreocupado — Vamos poder pegar as informações que você alega ter, te fazer esquecer de tudo isso que conversamos e aí sim, cada um segue seu caminho.

— Você acha que eu vou cair nesse truque?

— Foi um prazer te conhecer, Kiki — disse, sorridente. Acenou de leve e esticou a mão para abrir a maçaneta.

Ela continuou olhando para ele, mas o sorriso começava a sumir do seu rosto. Inconscientemente, começou a bater a ponta do pé no chão de maneira ritmada.

— Pensando bem, foi uma besteira achar que você estaria interessada em treinar alguma coisa. Você já deixou claro que não liga pra isso. Dificilmente iria progredir — ele continuou, o olhar distraído — E manter você por perto seria um desastre, nunca daria certo. Só iria nos atrapalhar.

— Ei, também não exagera — reagiu, ofendida — Eu posso ser muito útil quando eu quero. E eu nunca disse que não me importava...

— Bom, mas agora tanto faz, não é? Vou deixar você sozinha.

A mão dele girou a maçaneta da porta, abrindo-a vagarosamente. Ela apertou os lábios com força, observando a cena.

— Está bem, que droga! Eu conto o resto que eu sei, já que insiste — exclamou, fazendo Kurama interromper seu gesto no meio — e posso pensar no seu caso quanto a essa história de treino. Só vamos sair daqui, estou morrendo de fome e em casa não tem nada de bom pra comer — disse, passando na frente dele e abrindo o restante da porta. Seu pai chegaria a qualquer minuto e ela não estava com disposição para encontrá-lo ou deixar que ele a visse com o rapaz dentro de casa. Iria começar a fazer perguntas e ela simplesmente não estava com cabeça.

Enquanto isso, atrás dela, Kurama sorriu. Psicologia reversa nunca falhava.


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