O pequeno herói escrita por Jude Melody


Capítulo 2
Ato II




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Linebeck nunca descobriu como ele e seu barco sobreviveram ao ataque da lula. Mas sabia que tinha uma dívida de vida para com o menino. E, como todo bom comerciante, Linebeck sentia-se muito, mas muito desconfortável com dívidas.

Naquele momento, decidiu que levaria o pequeno herói a seu destino como forma de obter a quitação. Não se importava mais com sua parte do tesouro. Importava-se, sim. Não era louco! Mas tentaria não ser tão chato ao exigir seu quinhão.

Foi difícil reencontrar a rota correta depois do ataque da lula. Linebeck assumiu o timão mais uma vez, e o menino se especializou em atingir monstros com bolas de canhão. Quando as bolas acabaram e o barco foi atacado por monstros voadores, o menino usou uma medíocre espada de madeira.

Milagrosamente, sobreviveram outra vez.

A situação ficou terrivelmente feia quando as sereias surgiram. Linebeck quase pulou do barco para se juntar a elas, enamorado como estava por causa das músicas sedutoras que elas cantavam.

O menino salvou-o de novo, amarrando-o com força no mastro. Talvez por ser muito pequeno e desconhecer os prazeres do amor, talvez justamente por ser pequeno e só conhecer o amor puro e sincero que sentia pela princesa, ele não foi afetado pela canção.

Atravessava o mar de sereias sem maiores problemas, mas logo elas decidiram criar problemas e começaram a saltar para fora da água, exibindo dentes afiados e olhos vermelhos. O menino atropelava-as com o barco sem compaixão, lutando contra a chuva intensa que agora caía dos céus.

Uma das sereias pulou para dentro do barco gritando ameaças e, pelos reis de Hyrule, como era feia! O menino chutou-a com força de volta para a água e quase deu um pulo ao ouvir um grito ainda mais assustador que o da criatura mitológica.

Era Linebeck, que, assustado com tamanha feiura, livra-se das cordas e correra para a cabine para mais uma noite covarde tremendo no interior do barril de cerveja. Ora, onde estava a força do comerciante quando o menino mais precisava dela?

.

Após cinco dias de viagem, eles finalmente alcançaram a ilha. Linebeck desistira de contar suas dívidas de vida por volta do terceiro dia. Com um suspiro, ancorou o barco e ajudou o menino a descer. A areia quase parecia irreal depois de tanto tempo no mar.

O menino pegou o mapa ensopado e o viu se despedaçar em suas mãos. Sem ele, estava por conta própria agora. Achava que Linebeck ficaria para trás, mas o comerciante logo se livrou do verde do enjoo e o acompanhou pelos caminhos tortuosos da ilha.

A floresta era densa, mas não oferecia muitos perigos. Havia aranhas enormes que assustavam Linebeck e o faziam gritar como uma criancinha medrosa. Mas o menino conseguia se livrar delas com sua fiel e indestrutível espada de madeira.

Os dois amigos caminharam por três horas e, depois de cinquenta calos nos pés, encontraram a caverna do tesouro. Linebeck correu para mergulhar nas pilhas de ouro, rindo alto e sem pudor. Ouro! Ouro! Ouro! Ele ria e ria enquanto jogava as moedas para o alto e as esfregava em sua pele maltratada pelo sol.

As próximas vítimas foram as pedras preciosas e as taças e medalhões de prata. Linebeck parecia a ponto de sofrer um colapso nervoso. Estava no paraíso! Era rico! Rico! Adeus à loja de penhores! Seu futuro era uma mansão com taças e talheres feitos de prata e ouro!

E quanto ao menino? Não estava feliz também? Não queria pegar sua parte do tesouro? Linebeck rapidamente juntou algumas moedas e joias em uma tigela de prata e correu até seu companheiro para entregar-lhe seu quinhão. Mas o menino não o olhava. Seus olhos azuis estavam fixos em uma abertura nos fundos da caverna.

Linebeck observou de longe enquanto o menino atravessava a abertura e movia um arbusto. Com alguma dificuldade, abriu um alçapão e puxou a caixa dourada que ali estava escondida. A tigela de prata caiu no chão, e em apenas dois segundos o comerciante empurrava o menino para se apoderar da caixa dourada.

Minha! Minha! Uma caixa dourada deste tamanho só pode conter o maior tesouro de todos! Então, ela pertencia ao comerciante, e não ao menino, pois sem o barco do comerciante não haveria aventura, não haveria tesouro e...

Linebeck encarou o menino com raiva, mas sua expressão se suavizou ao ver o pequeno herói atordoado com o golpe. Que vergonha... Roubando o tesouro de uma criança... Uma criança que o salvara... Cinco, seis? Sete vezes?

Com as maçãs do rosto quase tão vermelhas quanto seu nariz eternamente embriagado, Linebeck pousou a caixa dourada na frente do menino. O gesto era claro. O tesouro é seu. Você escolhe seu quinhão.

O menino olhou-o, surpreso, abrindo a boca em um inaudível ah. Estava claro que se perguntava se a ordem do mundo estava mesmo... em ordem. Linebeck suspirou e empurrou a caixa para mais perto do menino. Sua, era o que queria dizer.

O pequeno herói assentiu e abriu a caixa cuidadosamente. Um brilho mágico escapou dela e iluminou seu rosto, dando-lhe o mesmo aspecto celestial que vira na princesa por tantas vezes. Foi a vez de Linebeck soltar um inaudível ah.

De dentro da caixa, o menino retirou um enorme cogumelo vermelho, o maior anticlímax que um romancista medíocre poderia imaginar. Linebeck quase teve o segundo colapso nervoso do dia.

Um cogumelo?! Eles haviam se sacrificado tanto por causa de um cogumelo estúpido? O que ele fazia, afinal? Tinha poderes mágicos? Talvez tornasse quem o comesse imortal ou invencível. Talvez fosse a fonte eterna da juventude. Talvez...

Linebeck queria bater a cabeça contra a árvore mais próxima. O menino podia ter tudo, absolutamente tudo! Se pegasse o tesouro que havia ali, seria mais rico que o próprio rei de Hyrule! Agora, porém, até mesmo o comerciante tinha dúvidas quanto à divindade do tesouro. Talvez fosse amaldiçoado. Talvez tornasse sua vida infeliz pela eternidade. Mas... E quanto ao cogumelo?

Arrasado com o desfecho da viagem, Linebeck ergueu os olhos cansados para encarar o menino.

Mas o menino não estava mais ali.

E Linebeck, assombrado, compreendeu.

.

A volta para Hyrule foi tranquila. Nenhum monstro sequer ousou atacá-los. O estômago de Linebeck agradeceu. O barril de cerveja da cabine, também.

Apesar de se sentir grato por estar vivo, Linebeck ainda pensava no tesouro. No final das contas, não tivera coragem de levar nada, nem uma moedinha sequer. Não depois do que aconteceu com o menino. Linebeck simplesmente não teve coragem.

O desembarque no porto da cidade foi acompanhado por lágrimas de um homem adulto. Nada que valesse a pena ser visto. As outras pessoas, é claro, estranharam ao ver o dono da loja de penhores ajoelhado no chão, beijando as lajotas de pedra.

É que elas não sabiam. Mas Linebeck sabia. E seria eternamente grato ao menino, a quem, afinal, devia mais vidas do que seria capaz de viver.

.

A princesa continuava bela e delicada como sempre, mas havia certa dureza em sua postura que espantava até mesmo os pássaros. Sua voz, apesar de angelical e educada, soava um pouco ríspida, e os olhos azuis como o mar pareciam revoltos.

Onde estava o menino?

Ele não aparecia há dias. Teriam os soldados do castelo feito alguma maldade com ele? Não, não era possível. A princesa dera-lhes ordens claras de não machucar qualquer criança que saltasse o muro. Na tarde anterior, abandonara a aula de canto para percorrer as masmorras em busca de seu pequeno amigo.

Detinha-se sempre que via um borrão verde, mas logo se decepcionava e voltava a caminhar. O menino não estava na masmorra, afinal. Onde estava, então? Estaria doente?

A princesa não sabia, e isso a preocupava.

Ela estava tão perdida em pensamentos que não o percebeu se aproximar. Se o pequeno galho não o tivesse traído, se ele não o tivesse pisado sem querer, a princesa continuaria imersa em suas indagações até que a proximidade se tornasse óbvia.

Virou-se de súbito, preparada para enfrentar o intruso... E quase arfou de surpresa quando o intruso saiu da penumbra das árvores e foi banhado pela luz do sol.

O jovem à sua frente tinha cabelos que pareciam ser feitos de ouro e olhos claros e límpidos como o céu acima deles. Suas vestes eram imaculadas e tinham um tom de verde profundo que parecia ser feito da própria vida. As mãos firmes eram cobertas por luvas de couro, mas não eram tão brutas quanto pareciam. Eram delicadas o suficiente para segurar uma humilde flor lilás.

A princesa levou as mãos ao peito em sinal de surpresa e examinou o jovem com cuidado. A postura era diferente. A aparência era totalmente distinta. Mas o olhar bondoso era o mesmo e despertava nela uma sensação estranha e confortável. A sensação do reconhecimento.

O jovem se aproximou com cautela e estendeu o braço para entregar a flor. Desta vez, ela fora adquirida nobremente. Linebeck fizera questão de comprá-la em sinal de agradecimento. Na verdade, ele queria comprar todas as flores da senhora gorda, mas o menino, agora homem, ergueu o indicador. A ordem era clara. Apenas uma flor.

Mesmo a contragosto, Linebeck comprou uma única flor lilás, depositando nas mãos da senhora uma simples moedinha. O herói pegou o presente com um sorriso no rosto, fez uma reverência e partiu.

Linebeck cruzou os braços, observando-o sumir ao longe. Olhou de soslaio para a mulher a seu lado e percebeu que ela estava paralisada de surpresa, talvez atônita porque o menino daquela manhã crescera tanto em tão pouco tempo, talvez confusa por se deparar com um homem tão bonito e misterioso que, certamente, jamais vira em sua vida. Com um sorriso de canto de lábio, Linebeck deu um tapinha em seu ombro e se afastou.

A princesa pegou a flor sem hesitar e abriu um sorriso suave. Não sabia que segredo seu herói ocultava, que magia ele encontrara para extirpar os dez anos que os separavam, mas não queria perguntar. Podia viver com esse segredo.

O jovem esperou pacientemente enquanto ela admirava a flor e se surpreendeu quando a princesa envolveu uma de suas mãos com a dela. Era um dia fresco de outono. Um dia ótimo para uma caminhada.

Sem dizer qualquer palavra, os dois seguiram juntos pelo jardim do castelo, de mãos dadas. O menino, agora homem, sentia-se realizado por finalmente tornar seu sonho realidade. E a princesa sentia-se plena por saber que nunca mais se sentiria solitária.

Eles pararam sob um velho carvalho e trocaram olhares azuis. O céu e o mar. O branco puro da neve das vestes dela e o verde vivo das roupas dele. E o dourado dos cabelos que os tornavam angelicais.

A princesa sorriu, inebriada pela expectativa de um futuro surpreendente. Porque agora, ao encarar aqueles olhos que julgava conhecer tão bem, ela via apenas um mistério profundo.

E esse era um mistério que merecia ser desvendado.


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Notas finais do capítulo

Quem aí pegou a referência a Mário? *risos*