O pequeno herói escrita por Jude Melody


Capítulo 1
Ato I




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Escondido atrás dos arbustos do jardim do castelo, o menino observava a beldade caminhar pelo gramado. O vestido puro como a neve cobria a pele de seda, dando-lhe um aspecto quase celestial. Os cabelos dourados caíam como uma cascata sobre as suas costas e brilhavam sob a luz do sol como se fossem mesmo feitos de ouro. E os olhos do menino também brilhavam ao admirá-los.

A princesa ergueu a mão enluvada para o passarinho rubro que voava a seu redor. Ele cantava alegremente, acompanhado por outro passarinho da cor da safira, ambos parecendo enamorados pela jovem que lhes sorria com tanta ternura. E os lábios do menino tremiam como aqueles bicos cantantes, ansiosos por proferir as palavras que a timidez fazia calar.

Os passarinhos pousaram em uma das árvores, ainda cantando em tom primaveril, e a princesa parou para ouvi-los, inclinando a cabeça levemente em sinal de interesse. Suas mãos agora estavam relaxadas, e os dedos se entrelaçavam pelo hábito criado após tantos anos ouvindo os conselheiros reais. E as mãos do menino moviam-se inquietas, os dedos tamborilando a grama em meio à ansiedade.

Ele estava deitado de bruços no jardim real. Quase passava despercebido com suas roupas verdes. Apenas os olhos azuis se destacavam, pois eram tão límpidos quanto o céu que se erguia sobre o castelo.

Se a princesa percebeu sua presença, não demonstrou. Estava ocupada demais apreciando seu pequeno coral particular. O menino queria sair de seu esconderijo, aproximar-se e entregar à beldade a flor que recolhera pela manhã. Fora difícil conseguir aquela flor, e as marcas avermelhadas em suas pernas e braços eram uma prova disso.

Não que o menino fosse pouco nobre, mas é complicado imaginar que determinado conjunto de flores possui um dono quando não há nenhum cercado a envolvê-lo. O pequeno herói estava enamorando aquela flor lilás há dias e, no início daquela manhã, finalmente criara coragem para retirá-la do solo.

Com uma pequena faca, cortou o cabo com bastante cuidado, segurando a flor com o máximo de delicadeza que podia. Ficou de pé logo depois, admirando aquele pequeno milagre da natureza e a forma como se encaixava tão perfeitamente em suas mãos.

Foi nesse momento de sonho e vitória que a primeira paulada o atingiu. O menino caiu no chão de boca aberta e por pouco não engoliu um pouco da terra molhada. Ele se contorceu e virou o corpo a tempo de ver uma senhora gorda segurando um pedaço de pau do tamanho de uma espada. E ela estava furiosa!

Começou a bradar com o menino, acusando-o de roubar suas flores. Ele não conseguiu compreender. Afinal, as flores estavam livres e soltas naquele canto do vilarejo. Não havia nenhum cercadinho ou placa que indicasse que elas tivessem dono. Mas a senhora estava muito brava e desferiu várias outras pauladas no menino enquanto ele tentava se levantar.

Assustado, conseguiu pôr-se de pé com dificuldade e debandou em fuga na direção do castelo enquanto a senhora gritava blasfêmias. Apenas depois de alcançar os altos muros de pedra ele se permitiu descansar, recostando-se na estrutura fria e imponente.

Agora vinha a parte complicada: entrar escondido no jardim do castelo e entregar a flor à princesa. Felizmente, havia muitas árvores em que ele poderia subir facilmente, e os soldados eram previsíveis demais para representar qualquer desafio. O menino correu até um ponto que sabia ser vulnerável, colocou o cabo da flor na boca para segurá-la com os lábios e escalou a árvore.

Exatamente como imaginara, o soldado daquele ponto do muro estava dormindo. Roncava até. Foi fácil passar por ele e correr até o chafariz em que a princesa costumava passar suas tardes.

Agora ele estava ali, mas não tinha coragem de revelar sua presença e entregar o presente à mulher mais linda que já vira em seus medíocres anos de vida. Suspirou. Tanto trabalho para nada! Afinal, ele não queria ser um guerreiro? Como poderia ser um guerreiro se não conseguia entregar uma simples flor para uma mulher um pouquinho mais velha?

Certo, certo. Ela não era apenas um pouquinho mais velha. Dez anos de diferença os separavam. Além disso, ela era uma princesa, e ele, um plebeu. Um reles aprendiz de espadeiro que vivia em um vilarejo próximo.

Ainda assim, ele tinha esperanças de algum dia fazer parte da guarda real e poder defender pessoalmente a princesa. Ele só queria que esse dia chegasse logo, e que o sacrifício em nome de sua amada beldade fosse mais do que um simples sonho. Ele queria esse objetivo nobre se tornasse realidade.

Talvez, assim, ele a princesa pudessem ser felizes. Juntos.

Os devaneios do pequeno herói foram interrompidos de súbito. Com um grito, o soldado que se aproximara sorrateiramente puxou o menino pela gola da camisa e o jogou com força no chão. O gorrinho verde voou para longe de sua cabeça dourada.

Atordoado, o menino olhou em volta e encontrou a carranca enfurecida de seu malfeitor. A adrenalina logo tomou conta de seu corpo, e ele se preparou para fugir. O soldado estava erguendo a espada! Se ficasse, ele iria morrer! Mas a princesa o surpreendeu. Com um toque suave, ela fez o soldado abaixar a arma.

Foi a vez de o guarda real se assustar. A princesa se aproximara tão levemente que ele não percebera. E agora sustentava seu olhar com uma expressão severa e olhos azuis que brilhavam em desaprovação.

A ordem era clara. Deixe-o ir. O soldado tentou argumentar. Tentou dizer que era para a própria segurança da princesa, mas ela o calou erguendo a mão enluvada. Desapontado, o guarda voltou sua atenção para o menino. Mas o menino não estava mais ali.

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Linebeck era um comerciante orgulhoso. Vivia se gabando dos tesouros que guardava em seu cofre e das roupas finas que vestia ao caminhar pelas ruas movimentadas da principal cidade do reino. Os boatos diziam que ele era o único além da própria realeza que bebia vinho em taças de ouro. Linebeck, é claro, jamais desmentia qualquer desses boatos. Na verdade, ele estava muito mais ligado ao próprio processo de invenção deles.

De todos os bens que possuía, o mais estimado era o seu fiel barco de madeira. Quantos naquela cidade podiam dizer que tinham um barco só para si? Linebeck podia e se orgulhava muito disso. Não havia uma única tarde em que não admirasse sua preciosidade no pequeno porto, acompanhando com os olhos enquanto ela subia e descia sobre o mar.

Por conta disso, ninguém esperava que Linebeck desse atenção ao menino de roupas surradas que adentrou sua loja de penhores no final daquela tarde. O comerciante mal lhe dirigiu um olhar. Tão logo constatou que o cliente tinha metade da altura da porta, voltou sua atenção para o colar de pérolas que uma senhora viúva tentava lhe empurrar.

O menino, alheio à sua própria pobreza, caminhou pelo piso de madeira polida e se empoleirou no balcão da loja. Como era baixinho, seus pés balançavam a quase dez centímetros do chão, envoltos pelas botinhas gastas.

A senhora fez uma careta ao olhar uma criança tão suja e deu um passo para o lado, como se a pobreza fosse contagiosa. O menino, porém, não percebeu. Continuou agarrado ao balcão como se sua vida dependesse disso.

A insistência irritou Linebeck, que devolveu o colar à viúva com uma palavra de desdém. Falsas. Fez um gesto, dispensando a senhora e o colar de pérolas fajuto, e voltou sua atenção à criaturinha imunda que o encarava com grandes olhos azuis. Cruzou os braços em um sinal claro de comerciante ocupado. O que você quer? Não tenho muito tempo.

O menino deixou-se cair de pé no chão e vasculhou a bolsa que trazia a tiracolo em busca de algum objeto importante. Encontrou-o depois de alguns segundos e, com um salto, largou-o sobre a mesa. Um pergaminho velho.

Com um suspiro, Linebeck desenrolou-o e examinou seu conteúdo. Alisou o bigode ao estudar as linhas cuidadosamente desenhadas. Certamente, tratava-se de um mapa do tesouro. Porém, não havia qualquer prova de sua legitimidade. Devolveu-o sem hesitação. Aquele pergaminho maltratado não lhe valia nada.

Estava a ponto de virar-lhe as costas quando o pequeno herói empurrou o mapa de volta. Irritado, Linebeck pôs as mãos no quadril e ergueu a sobrancelha. O menino limitou-se a apontar pela janela. O comerciante olhou na direção apontada e viu seu precioso barco flutuando suavemente no mar.

Aaaaaaaaah. O menino não queria vender o mapa. Queria que Linebeck lhe emprestasse o barco para que pudesse chegar à ilha do tesouro. O comerciante começou a rir. Que ideia ridícula! Entregar o barco? A um estranho? Por causa de um tesouro que talvez não fosse real?

O menino observou enquanto ele ria, inabalável. Linebeck secou uma lágrima e respirou fundo para se acalmar. Sustentou o olhar do visitante até não poder mais e suspirou uma vez. Afinal de contas, ele ainda tinha um fraco por tesouros. Se o mapa fosse real, talvez convencesse o menino a lhe dar parte dos bens preciosos.

Analisou o mapa mais uma vez. É, parecia legítimo. Mas, mesmo assim, não entregaria o barco ao menino. Iria com ele até a ilha. E se apoderaria de metade do tesouro. Estavam de acordo? O menino fez que sim.

Linebeck coçou o queixo. Tinha ainda uma última condição. Ele nunca fazia negócios sem ter uma garantia. E se a jornada fracassasse? E se não houvesse ilha ou tesouro? Ele precisaria de um reembolso pelo tempo perdido.

No mesmo instante, o menino subiu em uma caixa de madeira vazia que não vira antes por causa da senhora viúva e despejou o conteúdo de sua bolsa sobre o balcão. Ali estavam suas economias de anos, todo o dinheiro que juntara trabalhando para o espadeiro.

O comerciante olhou as moedas, apenas levemente interessado. Era muito pouco. Não cobria nem metade das despesas da viagem. Mas Linebeck era sempre muito esperto para ganhar dinheiro (e tesouros) e viu ali uma oportunidade perfeita. Aceitaria a missão, ficaria com as moedas e, caso percebesse que o negócio não seria lucrativo, largaria o menino em uma ilha qualquer e o deixaria a ver navios. Ou, melhor dizendo, um barco.

Estendendo o braço sobre o balcão, apertou a mãozinha de seu mais novo parceiro. O acordo estava de pé.

.

Depois de dispensar o soldado, a princesa decidiu recolher-se a seus aposentos para estudar um pouco de música. Deu dois passos e depois recuou, certa de que deixara escapar algum detalhe. Voltou a olhar o ponto em que o menino loiro estivera deitado. Sorriu.

Havia ali uma pequena flor lilás. Era linda, mais linda do que todas as flores que já vira no castelo. Agachou-se com graça e pegou nas mãos enluvadas aquele pequeno milagre da natureza. Levou a flor ao peito, admirando suas pétalas.

Que presente agradável o menino lhe dera! Onde será que estava seu pequeno admirador agora? Estaria seguro em sua casa na cidade ou no vilarejo? Pelas roupas que vestia, era provável que morasse em um dos vilarejos ao redor do castelo. Será que voltaria no dia seguinte?

Sim, a princesa sabia que o menino gostava de visitá-la. Ela já o vira várias vezes, mas sempre fingia não perceber. Até gostava da presença do menino. Sentia-se menos solitária quando ele a observava de longe. E, mesmo sem conhecê-lo, tinha um carinho especial por ele.

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Linebeck grunhia enquanto manobrava o timão de seu barco. Apesar de gostar do mar, sentia falta de sua loja de penhores. E detestava aquela peste verde que corria de um lado para o outro no convés, rindo dos peixes e das gaivotas. Ainda resmungando, o comerciante bebeu um longo gole da garrafa que trazia a tiracolo e secou o bigode com a manga do casaco.

Já estavam navegando há mais de cinco horas, o que significava que metade da garantia ofertada pelo menino fora coberta. Se não encontrassem a ilha até o final da noite, teria de voltar atrás para evitar prejuízos.

O menino, alheio a isso tudo, continuava correndo pelo convés, irritando Linebeck ainda mais. O comerciante ralhou com o pequeno herói e mandou que fizesse algo de útil. No mesmo instante, ele se sentou no chão e pegou o mapa para conferir a rota. Se estivesse calculando certo, chegariam à ilha em menos de dois dias.

A noite chegou, e o barco foi envolvido por uma misteriosa neblina. Linebeck não sabia como reagir. Nunca fora àqueles cantos do mar aberto. Na verdade, Linebeck pouco navegava, limitando-se a fazer sempre as mesmas rotas. Em meio àquelas rochas estranhas e àquela névoa profunda, sentia-se amedrontado.

Os monstros não tardaram a aparecer. Passaram perto do barco, rosnando e soltando gritos dignos de um pesadelo. Felizmente, o barco tinha um canhão. Infelizmente, nem o menino, nem Linebeck sabiam usá-lo direito.

O comerciante se escondeu em um barril de cerveja vazio no interior da cabine e tremeu a noite inteira. O pequeno herói assumiu o timão e navegou pelo caminho tortuoso, evitando as rochas e os monstros. Quando a lula gigante apareceu, não teve escolha senão arriscar usar a única arma que tinham.

Os tiros do canhão não foram o bastante para abafar os gritos de Linebeck. O barco era jogado de um lado para o outro pelas ondas gigantescas que a lula criava. O menino ficou ensopado e assustado. Largou tudo, pegou o estilingue que trouxera preso à cintura e atirou pequenas pedras nos olhos da lula.

Furiosa, ela moveu um de seus tentáculos e atingiu a água com força, errando o barco por muito pouco. O menino bateu com a cabeça e perdeu a consciência.


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