Corações Perdidos escrita por Syrah


Capítulo 2
02. Desperta


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura a todos! :D



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ACORDEI ÀS QUATRO da madrugada ao som do mais terrível instrumento de tortura inventado pelo homem: o despertador.

Minha cabeça doía como se tivesse sido pisoteada por um bando de cavalos de corrida, meu cabelo parecia um ninho de pássaros e, para completar, estava com uma cara péssima.

Levantei-me preguiçosamente e fui ao banheiro concluir minhas necessidades e dar um trato no rosto antes de me dirigir à cozinha. Liguei o pequeno rádio que ficava sobre o balcão de pedra e comecei a cantar distraidamente, enquanto preparava um sanduíche de atum.

Terminei de preparar meu lanche e me sentei na mesa de jantar. Comi em silêncio; um silêncio desagradável que eu simplesmente odiava. Enquanto isso, uma horda de lembranças lutava para se libertar em minha mente, ansiando invadir meus pensamentos.

Me permiti acessá-las por um certo tempo.

***

Eu tinha sete anos.

Estava em casa, na sala, assistindo televisão e brincando com Floco, o cãozinho da família. Dei a ele esse nome quando o ganhei de presente de aniversário do meu pai, parecia o nome certo na época, por conta do pelo branco e macio, como um floco de neve.

Minha mãe estava na cozinha, preparando o almoço; meu pai estava na garagem, cuidando do carro. O que era para ser mais um dia simples e normal em nossas vidas acabou sendo o ponto de início da minha jornada de horrores.

O tilintar de metal contra metal invadia meus tímpanos ruidosamente, um aroma delicioso emanava da cozinha e pude ouvir meu estômago roncar em protesto. Floco ergueu a cabeça e ficou encarando fixamente a porta da cozinha, as orelhas erguidas em sinal de alerta e os olhinhos caramelo totalmente vidrados. Não sei se cachorros podem ficar tensos, mas se sim, o meu com certeza estava.

De repente, ele disparou cozinha afora, latindo feito um louco; gritei para que voltasse, mas ele não me deu ouvidos — eu não esperava que o fizesse, de qualquer modo. Durante alguns segundos, os latidos de Floco encheram a casa e estranhei que minha mãe ainda não o tivesse repreendido, afinal, ela não gostava quando ele fazia aquela algazarra toda. Mas então os latidos pararam abruptamente e tudo o que restou foi o silêncio e o tilintar contínuo de metal raspando em metal.

— Floco? — chamei, mas não obtive resultado. Nenhuma bola de pelos correu até mim, ninguém veio lamber meu rosto ou conferir se eu tinha biscoitos.

Achando que toda aquela cena era muito esquisita, me levantei e caminhei até a cozinha na ponta dos pés, me esgueirando pela porta para ver o que acontecia no cômodo. O que eu vi, foi algo que carregarei comigo pela vida toda.

Minha mãe, com as mãos e sua blusa fina de algodão, em tons de azul-claro, encharcadas com um líquido espesso e vermelho. Havia uma faca ao seu lado, manchada com algo da mesma cor. Ela pegava o utensílio do chão e o investia de maneira violenta em Floco, repetidamente. O animal jazia caído e de olhos fechados. Seu pelo agora já não era branco como antes, era vermelho escuro. Lágrimas se formaram em meus olhos rapidamente.

— Floco! — soltei um gritinho esganiçado, sem querer acreditar no que meus olhos viam.

Cobri rapidamente a boca com as mãos, mas era tarde demais: a mulher que um dia fora minha mãe se virou na minha direção, seu sorriso sádico penetrando em mim como uma espada afiada e fria, tão fria que queimava. Mas o que mais me assustou foram seus olhos: eles estavam negros, completamente negros.

Soltei um berro de pavor. O que houvera com os gentis olhos azuis que ela possuía?!

A Coisa sorriu de lado e se jogou na minha direção, uma sensação de pânico me invadiu e meus instintos me obrigaram a correr. Tropecei em uma cadeira e caí de costas, o que foi um erro, pois a Coisa de olhos pretos me agarrou. Ela me ergueu no ar, como minha mãe costumava fazer quando eu era mais nova — só que o toque dela era suave e confortável, essa aberração tinha um aperto que machucava.

Tentei em vão me desvencilhar, enquanto gritava desesperadamente pelo nome do meu pai. Mas e se essa coisa de olhos pretos o pegou também, como fez com a minha mãe? Permaneci impotente e aterrorizada, enquanto seus olhos, que eram verdadeiras fendas de escuridão, me examinavam.

O monstro ergueu a faca para mim e por um milésimo de segundo senti que aquele era meu fim.

— Mamãe! — ouvi minha própria voz, mas era como se eu estivesse a quilômetros dali.

Por um breve momento, o branco voltou aos seus olhos e os mesmos estavam repletos de horror, como se ela tivesse retomado o controle por um breve segundo, apenas para ver a pior cena de toda a sua vida. Minha mãe me largou com brutalidade e bati com força os joelhos no chão, soltando um gemido de dor.

— Emma, foge! — sua voz era repleta de dor, observei-a se engasgar com as próprias palavras.

— Mamãe...?

— Eu te amo, Emma — ela disse com os olhos marejados.

Naquele momento eu a reconheci, pude reparar bem no brilho azul de seus olhos gentis e astutos, antes que estes ficassem inteiramente pretos novamente, dando lugar à escuridão. De volta ao corpo de minha mãe, a Coisa sorriu e senti como se mil farpas congeladas penetrassem minha pele.

— Ela foi corajosa, não imaginei que fosse tão forte — disse. — Uma pena que agora sua coragem já não existe mais, assim como ela mesma. — A Coisa fez uma pausa, me encarando mais uma vez com aquelas esferas negras e sem vida, então acrescentou: — Assim como você não existirá em poucos segundos, doce Emma.

Quase que por um milagre, naquele momento meu pai surgiu ofegante na porta. Seu uniforme estava manchado de graxa e algo negro e bulboso que eu não gostaria de descobrir o que era. Quando seu olhar se desviou para o que um dia fora sua esposa, foi como se ele tivesse levado um soco, mas sua ação ainda assim foi rápida: imediatamente pegou um frasco de dentro do bolso do casaco e espirrou o líquido que havia dentro em mim e na minha mãe.

Água.

Não senti nada além das gotas geladas que começavam a me cobrir, mas o Monstro de Olhos Pretos se contorcia e sua pele parecia fumegar sob o efeito do líquido.

Meu pai começou a recitar algo, enquanto jogava mais água — dessa vez, mirando apenas sua esposa. Ela se contorcia ao som das palavras que ele proferia e, de algum modo, consegui captar pedaços do que parecia ser uma oração de repreensão ou algo do tipo. Meu pai dizia coisas como “exorcisamus”, “potestas” e “incursio”.

A cada palavra eu ouvia mais lamúrias da minha mãe, mas não conseguia acreditar que fosse ela, não conseguia acreditar nem por um segundo que fosse ela. Mesmo que o corpo fosse, de fato, o dela. Tentei não olhar, não queria ver aquilo, não queria ver minha mãe se contorcendo de dor no chão da nossa sala. Mas meu corpo estava paralisado, eu não poderia me mover nem se quisesse.

Quando meu pai ditou a última palavra, a Coisa soltou um último grito e, com isso, uma fumaça preta escapou de sua boca. Assisti a tudo horrorizada e observei enquanto minha mãe caía totalmente imóvel no chão. Não havia explicação, ninguém disse nada, mas eu sabia que ela se fora.

Meu pai correu até mim no exato momento em que senti meus joelhos cederem. Ele me aninhou em seu colo e apoiou minha cabeça em seu peito.

— Está bem, querida? — seu olhar era de pura preocupação, mas eu sabia que por detrás do mesmo, havia dor e sofrimento diante do que acabara de acontecer.

Não respondi, apenas olhei de relance para a cozinha. Conseguia ver sangue espalhado no chão, a lâmina que há poucos segundos fora usada em Floco e que quase me matara estava caída a poucos centímetros de mim.

Virei minha cabeça, ignorando o latejar que surgia e encarei aquilo que um dia fora minha mãe. Encarei a mulher que me dava biscoitos com chá em dias tempestuosos e que dizia para eu não temer os trovões, pois eles me avisariam quando um raio estaria para chegar. Ela estava estirada no tapete. Seus olhos estavam abertos e novamente azuis, encarando nada além do vazio. Um filete de sangue escorria por sua boca.

Fechei os olhos com força, esperando que tudo aquilo se dissolvesse em névoa, que aquela visão horrível se apagasse da minha mente, mas nada aconteceu. Apertei os braços ao redor do meu pai e o ouvi sussurrar ao meu ouvido, suas palavras se sobrepondo ao desespero iminente, suplicantes e gentis:

— Vai ficar tudo bem, querida — dizia ele e eu tentava com todo o afinco possível me apegar a isso antes de me desmanchar em lágrimas.

***

Fui tragada de volta à realidade pelo toque do celular, me assustando. Olhei o visor, não era um dos meus contatos, atendi mesmo assim.

— Alô?

Emma? — a voz doce do outro lado da linha era inconfundível.

— Castiel? — meu tom deixou escapar certa incredulidade.

Está surpresa? — perguntou Castiel parecendo confuso. — Você parece surpresa.

Sorri, mesmo sabendo que ele não podia me ver.

— Não, só não imaginei que anjos utilizassem aparelhos de comunicação. Você sabe, pensei que preferissem telepatia ou algo assim. O que foi?

Sam pediu que eu informasse a você, caso encontrasse algo sobre seu pai.

Meus batimentos se aceleraram instantaneamente.

— Você achou alguma coisa? — perguntei esperançosa.

Não exatamente. É melhor que você veja por si mesma — ele respondeu. — Venha aqui pessoalmente e irá entender, eu prometo.

— Certo — concordei sem nem parar para pensar. — Onde você está?

Ele ficou mudo por alguns segundos.

— Castiel?

Oi.

— Pare de enrolar e responda, está me deixando nervosa.

Certo, desculpe. Estou em uma floresta, um pouco afastada do centro da cidade. Dean está indo aí para te buscar.

Emudeci diante da última frase.

Emma?

— S-sim? — gaguejei.

Eu disse que...

— Eu sei o que você disse. Estarei esperando — respondi me recuperando do choque.

Tudo bem então, até mais — ele desligou sem esperar pela minha resposta, educação angelical, eu supunha.

Suspirei e joguei o celular sobre a mesa. Olhei novamente as horas, o relógio apontava 7h45; como o tempo havia passado tão depressa sem que eu percebesse?

Me deitei no sofá com o exemplar de Bruxos e Bruxas nas mãos e comecei a folheá-lo aleatoriamente enquanto aguardava a carona chegar. Dean Winchester, pensei. Nada melhor que começar o dia com uma discussão revigorante.

E, bem, seria um longo dia...


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Notas finais do capítulo

E aí o que acharam? Deixem suas opiniões, prometo responder a todos com bastante carinho!

Até o próximo capítulo, amores. ^_^



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