All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 9
White Rabbit


Notas iniciais do capítulo

Anteriormente

Após o incidente que ocasionara a morte de cinco membros de Alexandria, Rick percebe o potencial de prosperidade que a comunidade possui caso as pessoas se empenhem para tal. Após ouvir algumas sugestões, o xerife decide por em prática uma espécie de recomeço.



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A noite corria fria como de costume naquela época do ano. A região adjacente a Washington poderia não ser uma das mais frias da América, mas sabia muito bem lembrar os seus vizinhos quando o inverno apertava de verdade. De fato as temperaturas pareciam já estar subindo, provavelmente ocasionado por algum efeito climático que não mais se teria notícias. Antes de tudo virar do avesso, as informações estavam à disposição de qualquer um, tão fáceis quanto respirar, mas depois que o barbarismo voltou a imperar sobre a terra, todas essas regalias acabaram se esvaindo.

Para garantir uma melhor segurança aos portões e muros de Alexandria, principalmente após todo o corrido, Rick determinara que as rondas se tornassem rotinas, além de criar um sistema mais complexo de revezamento na vigília da torre do campanário. Todos os moradores foram autorizados a portar suas armas em tempo integral, e Eugene finalmente começara a por em prática as trincheiras que havia projetado.

A ampliação dos muros fora interrompida por tempo indeterminado, e nesse período, aqueles que com isso trabalhavam, passaram a também se empenhar na segurança, além de ajudarem Heath e Glenn na busca por suprimentos. Abraham começou um treinamento intensivo de tiro com todos aqueles que passaram a usar as armas pelas ruas da comunidade, no intuito de minimizar qualquer acidente que pudesse vir a ocorrer.

Sem Cloyd para ajudar, Vincent passou a estabelecer-se em tempo integral no consultório, sem levar suas coisas em definitivo, em sinal de respeito a Heath. Com um estoque baixo de medicamentos, ele precisava se virar para conseguir suprir as necessidades de seus dois pacientes ainda em estado de observação. Passaram-se quase três semanas desde o incidente em Alexandria, e ainda assim, Carl seguia em coma.

O garoto havia demonstrado alguns sinais positivos, virara a cabeça duas vezes e até tossira, porém, nada disso podia demonstrar com certeza que aquilo significava uma melhora. Sem poder realizar exames de imagens, Hall encontrava-se de mãos atadas, sabia que a cirurgia havia se sucedido com sucesso, porém, era quase impossível atestar se ele acordaria ou demonstraria sequelas. Limpava o buraco no rosto de Carl duas vezes por dia, sempre pedindo para que Rick, que passava horas sentado no banquinho observando o filho no leito, se retirasse, evitando que o pai visse algo tão horrendo. O inchaço intracraniano diminuíra drasticamente, o que lhe dava um pouco de esperança, talvez houvesse chances de o garoto sair daquela situação.

O segundo paciente, Tom Price, já dava sinais de que logo poderia sair da “internação”. Depois de passar a primeira semana a base de antibióticos, analgésicos e sedativos, o ex-soldador, começara a ficar mais tempo consciente, desde que as doses passaram a ser diminuídas. A esperada infecção não apareceu, o que acabou sendo a melhor notícia para Hall. Ainda não havia forças suficientes no corpo do homem para levantar-se da cama em definitivo, mas todos os sinais apontavam que isso ocorreria em breve. O desafio seria, obviamente, a adaptação ao braço amputado, uma coisa que Vincent havia vivido na pele e sabia o quanto era problemático.

Jogado no sofá, próximo a porta de entrada, Vincent Hall esticava uma das pernas por sobre a mesinha de centro, enquanto deleitava-se na leitura de Hunter’s Instinct, uma distinta obra literária irlandesa que havia encontrado na pequena estante empoeirada localizada em um dos quartos da casa. O livro, que mesclava uma história de amor juntamente a metáforas sobre o comportamento humano em situações extremas, encaixava-se perfeitamente no momento em que o médico passava, já que ele insistia em tentar entender a si próprio, como se a sua própria existência fizesse parte de algo fantasioso.

Rosita saíra fazia algumas horas, ela que o ajudara a cuidar dos doentes durante quase todo o dia, dirigira-se a sua residência, provavelmente para deitar-se junto a Abraham, o que para o médico, não fazia sentido algum. Completamente à vontade, ele retirara inclusive a prótese de madeira de sua perna esquerda amputada, exibindo o coto cuidadosamente tratado por ele próprio há tempos atrás.

Leves batidas na porta o fizeram erguer o pescoço, modificando o foco da leitura para a direção do som emitido. O doutor vestia uma camisa longa por sobre um calção azul, possivelmente por não esperar visitas àquela altura da noite, Rick inclusive recomendara que apenas os vigilantes vagassem pela comunidade durante a madrugada. Levantando-se rapidamente, deitando o livro em uma almofada e encaixando novamente sua prótese, Vincent dirigiu-se até a porta, conjecturando naqueles poucos segundos sobre quem poderia ser.

Manqueteando e marcando cada passo com o som seco da batida de sua perna de pau, o cirurgião girou a maçaneta da porta, certo de que seria Rick Grimes o seu solicitante. Ao abri-la, surpreendentemente notou que estava errado, não era o xerife quem batia e sim Leah, estacionada a sua frente, trajando um casaco com capuz e carregando uma garrafa de whisky em uma das mãos.

Hall espantou-se ao se deparar com a garota ali, em plena madrugada. Não houve muito tempo para uma conversa entre eles desde o funeral de Amanda, do qual nenhum dos dois participara. Os cabelos loiros, brotando por entre as sombras produzidas pelo efeito do capuz cobrindo quase todo o seu rosto, pareciam brilhar sob a meia luz dos poucos postes que ainda permaneciam acesos. Erguendo o rosto brevemente e sem nada dizer, Leah apenas solta um breve sorriso, erguendo levemente a garrafa como em oferenda ao cirurgião. Vincent retribui com um aceno de cabeça e em seguida convida a menina para entrar.

— Eu... – Hall passa uma das mãos na nuca – Eu realmente não esperava que viesse... – Ele retira o livro de sobre o sofá, colocando-o em cima da mesinha de centro – Senta aí...

A garota retira o casaco, revelando o corpo juvenil em pleno desenvolvimento, definitivamente Leah está crescendo exponencialmente, e Vincent já pode notar isso. Ela senta-se e entrega a garrafa nas mãos do doutor.

— Onde conseguiu isso? – Indaga Vincent, observando o rótulo da bebida.

— Temos uma péssima segurança na despensa... Olivia estava dormindo.

Hall sorri brevemente, abre a garrafa e em seguida dá um longo gole, tentando sentir todas as nuanças daquele líquido.

— Péssima escolha para uma primeira bebedeira! – Responde ele ainda mantendo o sorriso – Esse aqui é o quê? Texano? – Brincou.

Um breve silêncio impera momentaneamente naquela sala, o sorriso de Vincent se esvai, e ele parece auferir o motivo da visita de Leah. Após entregar a garrafa na mão da garota, que também experimenta o álcool, o cirurgião senta-se a seu lado, levando uma das mãos aos cabelos da menina.

— Desculpe Leah... – Ele a olha seriamente – Eu teria um milhão de desculpas para te dar sobre a minha ausência... Imagino o quanto deve ter sido difícil pra você, já que viu tudo... Diante dos seus olhos! – Ele respira fundo – A verdade é que eu não sabia o que fazer, o que dizer... Tinha que cuidar do Tom e do Carl, mas... Me desculpa, eu não sabia o que fazer...

— Eu... – Leah dá um novo gole na bebida, dessa vez mais longo, produzindo uma careta logo depois – Você não tem que me provar nada Vincent... Eu consigo esquecer tudo, tudo o que eu quero, eu simplesmente esqueço... Mas eu sinto sim sua falta! – Ela faz uma breve pausa – Queria que você estivesse do meu lado quando aconteceu... Me sinto segura aqui!

Os olhos claros da garota dirigiam-se com ternura às íris do cirurgião, a imagem parecia um colírio, uma pintura produzida por um grande artista clássico. A noite estava propícia para algo, algo que Vincent relutava para que não ocorresse.

— Isso tudo ainda é muito confuso pra mim... – O médico recostou-se confortavelmente sobre o sofá, ainda revezando a garrafa de whisky – Nunca fui o tipo de cara que passasse segurança a alguém... Que porra, eu nunca passei segurança nem para mim mesmo! Esse merda toda me ensinou muita coisa Leah... A maioria delas nada boas! Eu olhei nos olhos do pior do ser humano, e ele piscou pra mim...

Leah sorri brevemente, toma a garrafa de Vincent e passa a ler o rótulo.

— Essa bebida deve ser horrível mesmo... Você já está bêbado com poucos goles!

Hall gargalha, direcionando o olhar para ela.

— Te falei que era uma péssima escolha para uma primeira vez...

— Eu costumo escolher bem quanto a minha primeira vez... – Leah aproximou o corpo a Vincent, exibindo no rosto um olhar insinuante.

As feições do médico se modificaram rapidamente, um misto de sentimentos passou a rondar dentro dele, além de milhares de pensamentos, que tentava a todo custo esconder na região mais escusa de seu cérebro.

— É melhor você parar de beber... Eu nem deveria ter deixado você beber pra começar...

Leah o interrompe abruptamente.

— Eu não tenho ninguém Vincent... Ninguém! – Ela achega o rosto ainda próximo ao do cirurgião – Eu perdi tudo, o mundo me tirou tudo! – Sua voz embarga brevemente – Só me restou você... Eu sempre estive junta ao grupo, mas no fundo... Sempre foi você!

— Você não sabe do que está falando...

— Eu sei muito bem o que digo! – Interpõe-se a garota novamente – Eu quero parar de viver só de lembranças... Isso não é vida, eu preciso de um apoio!

— Você sabe que eu não posso ser esse cajado... – Hall toca o rosto da garota – O que aconteceu...

— Você foi o meu primeiro, Vincent... E foi maravilhoso! – Exclama a garota com um brilho no olhar, o médico abaixa a cabeça – Eu quero sentir aquilo de novo... Quero parar de me sentir sozinha, de me sentir culpada... Quero tirar o olhar da Amanda da minha mente, me ajuda, por favor!

Hall fecha os olhos e encosta sua testa na de Leah, em seguida inspira profundamente.

— Você não tem referencial Leah... Não sabe se foi realmente bom! Eu nunca deveria ter deixado aquilo acontecer... Não há um só dia em que eu não me condene por deixado aquilo ocorrer!

— Eu quis! Não tem porque você se sentir culpado!

Porra Leah, você é só uma menina! – Vocifera o médico afastando-se brevemente.

— Não... – Responde ela com lágrimas nos olhos – Estou cansada de ficar de luto... Perdi os meus pais, perdemos Mike e Goodwin... Amanda... Eu vi tudo Vincent! – Ela balança a cabeça negativamente – Você aceitando ou não... Eu não sou mais uma menina!

O médico observa a postura decisiva de Leah, estática ante ele, esperando pelo próximo movimento, como se tudo se tratasse de um jogo de xadrez. Vincent nunca fora bom em jogos e estava na cara que esse era mais um em que ele sairia derrotado. Os valores morais ainda martelavam em sua cabeça e, por mais que desejasse com fervor aquela garota, algo dentro dele gritava para que não cedesse, que não seria correto avançar aquele sinal novamente.

Era difícil nomear o que ele sentia, a sensação de querer tê-la por perto poderia significar muitas coisas, entre elas, o simples ato de proteção. De fato ele queria protegê-la, se dependesse apenas dele, nada de ruim jamais ocorreria a Leah, porém, não havia como mentir, algo maior, que transcendia qualquer protecionismo barato, fervilhava em seu peito. Vincent se sentia o mais vil dos homens, corroído por dentro, como se fosse mais uma das criaturas podres e fétidas que vagavam no lado de fora dos muros.

— Não faz isso comigo... – Balbuciou Hall hesitante.

Leah achegou-se lentamente até o médico, transpassando os joelhos por suas coxas e avizinhando o rosto a Vincent, sentindo sua respiração bem próxima.

— Você foi o meu primeiro, e eu quero que seja o único... Não tem mais volta doutor!

Os lábios de Leah se encontram aos de Vincent em um sôfrego beijo. Apesar de tentar com todas as suas forças evitar aquilo, o médico sabia que não podia lutar contra os seus desejos mais primitivos, que naquele instante se sobrepunham a qualquer sentido de moralidade que ainda lhe restava. Não era certo querer Leah, desejar uma garota que tinha idade para ser sua filha, mas depois de tanta coisa, mortes, mutilações, sofrimento... O que poderia ser certo ou errado? O melhor era deixar aquilo de lado, esquecer o resto do mundo e focar-se apenas no prazer momentâneo, pois assim que ele se esgotasse, era muito provável que a culpa voltasse a tomar conta de si.

Montada sobre o médico, com a língua disputando espaço dentro da boca de Hall, as mãos frias e trêmulas deslizando sobre o peitoral do homem que pulsava por ela, Leah sentia-se bem. A garota que buscava uma morfina, um sedativo para todo o sofrimento recente que vivera, o que acabara se tornando rotina em sua vida, não seguia uma linhagem tão racional quanto o cirurgião. Desligou-se de qualquer princípio moral há muito, e vivendo sobre a incerteza do quanto sua respiração poderá ser prolongada, decidiu levar a sua própria existência ao limite.

Leah sabe que não poderá ultrapassar todas as barreiras de sua vida, evoluir como as garotas de sua idade assim faziam, antes do mundo se modificar. Ela quer experimentar tudo, sem culpa, sem preocupações, pois caso sua vida seja encerrada no dia vindouro, de certo modo terá valido a pena a curta existência. Além de tudo isso, Vincent lhe proporciona segurança, no mais amplo sentido da palavra. Ela nunca achou que poderia entregar-se a alguém dessa maneira, ainda sendo tão jovem, mas a certeza da morte e o carinho por Hall, a fizeram amadurecer assustadoramente. Ela sabe o que quer, e não se arrepende nem um pouco por isso.

*****

O fogo dança ao ritmo do vento, ondulando-se sobre um pequeno emaranhado de gravetos, acima do chão de grama queimada e folhas verdes. O trepidar das chamas, com seu barulho estalado, confunde-se a outros também muito bem delineados naquele fim de noite. O gorjear dos pássaros, revoando da copa das árvores, acompanhado ao cricrilar dos grilos, parecem formar uma orquestra sinfônica natural, regendo o metabolismo daquele grande ecossistema.

Recostado a uma árvore de tronco grosso e amarronzado, com quatro metros de altura e folhas amareladas na ponta dos galhos secos, um homem de aparência cansada estripa um pequeno animal, retirando o seu estômago e limpando suas vísceras, ao mesmo tempo em que acomoda parte de sua carne em um rústico espeto sobre o fogo.

Com um ferimento ainda recente na testa, passando pela lateral do rosto e chegando até a base da orelha, o homem que aparenta já ter seus quarenta e poucos anos, prossegue finalizando os cortes, sem se importar em sujar as mãos e o rosto com o sangue do animal. Usando um casaco bugaboo azul e uma calça rasgada na vertical desde o joelho até a bota direita, sinalizando que provavelmente também há um ferimento na região, o “açougueiro” ergue o rosto rapidamente, mudando o foco de sua atenção.

Os olhos azuis pequenos e levemente puxados tentam encontrar algo no meio da mata ao redor de sua localização, procurando por uma possível presença hostil. As rugas que já despontam em sua testa encontram-se cobertas pelo cabelo grisalho, ondulado e volumoso, crescendo desordenadamente para os lados e para cima. A barba também é grisalha, rala e já começa a tomar conta de seu rosto. O nariz árabe, destacado em sua face, identifica que a carne que se encontrava assando acabara de passar do ponto, o que faz com que o homem retire o espeto do fogo no mesmo instante.

A pequena clareira no meio da floresta é cercada de mato e árvores por todos os lados, portanto ainda mais do que a visão, a audição acabara se tornando um sentido de importância vital. E é ela quem percebe novamente uma movimentação nos arredores da pequena fogueira. O som de passos em meio ao mato, aproximando-se do acampamento solitário, faz com que o homem erga o corpo de forma precária e leve a mão direita à cintura, onde uma pistola encontra-se localizada.

Surgindo como um fantasma, pelas costas daquele que tentava se preparar para um eminente ataque, outro homem, um pouco mais baixo e de corpo esguio, para imediatamente assim que ascende à clareira. Vestindo uma camisa de algodão escura, com longas mangas que escondem todo o seu braço e praticamente cobrem suas mãos, e portando nos ombros o cadáver de um porco selvagem, aquele que chegara não parece intimidar-se com o portador da pistola, que vira-se rapidamente de fronte a ele assim que percebe sua presença.

Isaiah... – O homem que segurava a pistola, recolhe imediatamente ao atestar a identidade daquele que chegara – Você me assustou! – Ele respira fundo – Fiquei preocupado, um dia inteiro na caçada? Esse porco deve ter dado trabalho, hein?

Isaiah assente com a cabeça, retirando o animal dos ombros e colocando-o no solo. Sua aparência é nitidamente estranha, porém, parece ser natural para o seu parceiro de sobrevivência. Os cabelos são loiros em uma tonalidade quase branca, longos e lisos, alcançando a metade de suas costas, a pele é muito branca, avermelhada por conta da incidência de sol sem proteção, além de possuir algumas manchas. Os olhos também são azuis, as pálpebras e sobrancelhas claras, quase não são perceptíveis. Sua face é envolta por algumas cicatrizes, principalmente perto dos olhos e na maçã do rosto, provavelmente oriundas de cortes mal tratados.

De sua camisa de algodão surge um capuz, que protege o topo de sua cabeça da neve, que começara a cair há alguns dias. No rosto, uma velha bandana vermelha, cobre do nariz até a ponta do queixo, escondendo completamente essa região. É possível ver que uma das cicatrizes, a mais profunda, parte do meio da bochecha, sendo coberta pelo pano, provavelmente escondendo a maior parte do ferimento. O “véu” é muito bem preso e aparentemente fora preparado por ele para essa finalidade.

— E eu disse que você não iria conseguir... – O homem sorri, ainda falando com Isaiah – Você não sabe o quanto eu fico feliz ao ver esse porco... Isso significa comida pra dias, meu caro! – Ele passa a mexer na pequena fogueira, apagando-a – Espero que a fumaça não chame a atenção, se bem que já verificamos e não vimos nenhum mordedor por perto...

Isaiah senta-se, cruzando as pernas quase que em uma posição de lótus. Ele que carregava uma pequena bolsa de pano ao lado corpo, retira-a do ombro e a coloca sobre o colo, abrindo-a e passando a procurar algo.

— O coelho não iria durar muito... – O grisalho segue falando – E como eu ainda não posso caçar, os próximos dias prometiam ser bem duros... – Isaiah parece ignorá-lo, direcionando sua atenção totalmente para a bolsa – Precisamos encontrar um lugar pra ficar... Se cair uma nevasca não teremos chances no meio desse mato!

Aquele que cobre parte do rosto parecia ter finalmente encontrado o que procurava. Retirando de um dos bolsos um talo esverdeado, ele estende a mão, entregando o vegetal ao grisalho, que recebe o regalo com dúvida no olhar.

— Isso é?

Isaiah sinaliza com as mãos que o talo deve ser quebrado ao meio, e em seguida, aponta para a perna direita de seu questionador.

— Eu devo passar isso no corte? – Questiona o “estripador”, como resposta apenas recebe um aceno positivo com a cabeça.

O homem grisalho recosta o corpo novamente ao troco, puxando a perna direita com certa dificuldade. As mãos se direcionam a barra da calça cortada, que com muito cuidado passam a ser elevadas, exibindo um profundo ferimento. Exatamente entre a fíbula e a tíbia, encontra-se um profundo corte que vai da base do joelho até o tornozelo, com uma abertura de praticamente dois centímetros. O sangue seco ao redor, de cor escura, indica que uma infecção na região já começa a despontar. Ao tocar com a ponta dos dedos no local, o homem grisalho retrai o corpo imediatamente, em uma careta que denota a dor sentida no momento. É perceptível que sua perna está levemente inchada, e mesmo sem conhecimentos médicos mais profundos, ele tem certeza de que isso não pode ser um bom presságio.

Isaiah repete o mesmo sinal com as mãos, como se estivesse quebrando algo ao meio. Interpretando da maneira correta os gestos emitidos pelo loiro, o homem ferido parte o talo esverdeado, e nota que dele jorra uma gosma transparente, na consistência de um álcool em gel. Tomando o líquido na ponta dos dedos, o grisalho leva o “medicamento” até o local referido, esfregando lentamente a gosma sobre toda a extremidade afetada. O líquido é gelado, e causa um pequeno ardor ao entrar em contado com a pele.

— Eu espero... – Ele faz uma careta enquanto esfrega a gosma – Eu espero que essa porra funcione! Não posso desistir agora... – Ele respira fundo e olha para Isaiah em seguida – Você disse que me ajudaria... Você ainda está comigo, não é?

O loiro que utilizava uma faca de caça de cabo avermelhado para retirar a pele do filhote de porco selvagem, ergue os olhos na direção de seu indagador. Com a mão esquerda suja de sangue, ele apenas reproduz o famoso gesto do senhor Spock, “vida longa e próspera”, dando uma singela piscada em seguida.

— Espero que isso signifique um “sim”! – Exclama o grisalho após dar um breve sorriso – Mesmo após essas semanas... – Ele segue passando a pomada improvisada – Ainda não consigo acreditar que consegui escapar... Na verdade eu não consigo acreditar que você tenha me ajudado!

Isaiah interrompe sua tarefa brevemente, passando a olhar para o homem que se pronunciava.

— Falo sério... – Volta a dizer o homem ferido – Não sei se faria a mesma coisa se estivesse no seu lugar... E é por isso que eu sou ainda mais agradecido! Você me deu esperanças, eu quase...

Com a mão espalmada, Isaiah sinaliza para que o homem interrompa o seu discurso. Largando rapidamente o porco no solo e tomando a faca nas mãos em posição de ataque, o loiro aponta para a direção do matagal próximo, como se acabasse de detectar a presença de algo. O grisalho retira sua pistola da cintura no mesmo instante, deixando-a pronta para qualquer eventualidade.

Arregalando os olhos e mudando rapidamente o campo de visão, o homem de rosto coberto parecia fazer uma leitura completa de toda a região, atentando-se a todos os detalhes. Com os dedos ele sinaliza o número dois, e em seguida balança o indicador e médio, como se quisesse representar algo em movimento. O grisalho balança a cabeça positivamente e começa a se erguer, mesmo que precariamente por conta do ferimento.

O barulho de passos sobre o matagal seco pôde ser ouvido com clareza, e no mesmo instante, com a faca em punho e uma decisão no olhar, Isaiah partiu em disparada, lançando-se no escuro, na direção exata onde o som fora detectado. O grisalho empunhou sua pistola, mas não havia muito que fazer, ele não tinha a visão clara e qualquer disparo poderia acidentalmente acertar o amigo. Apenas permaneceu em guarda, escutando o barulho da luta que se seguia em meio à brenha.

Não demorou mais do que um minuto para que o combate se esgotasse, e sem surpreender-se com o resultado, o homem grisalho alegrou-se ao ver Isaiah levantando-se, trazendo junto a si em uma gravata outro homem, que com as mãos tentava livrar-se da pegada do loiro. Os cabelos castanhos ondulados e caídos sobre as orelhas, além das roupas aparentemente novas e limpas, passavam a impressão que o visitante recém-capturado estava vivendo em outro mundo, já que em nada lembrava o estado precário dos sobreviventes da época.

Dirigindo-se até ele, e retirando do coldre a pistola do invasor, o grisalho sinaliza para que Isaiah o largue, deixando-o apenas sobre a sua mira. Analisando-o com o olhar, o homem manco tenta entender o porquê dos trajes limpos e do cabelo arrumado. Já vira muita coisa em sua caminhada e sabe que os homens fazem de tudo para conseguir algum benefício, já era assim antes e o fim do mundo não mudaria esse estado. Sempre foi e sempre será a lei do mais forte.

— Já sabemos que tem mais um! – Exclama o grisalho – Perderam o tempo de vocês, não temos nada pra roubarem! E mesmo se tivéssemos, teriam que nos matar para conseguir!

— Não é nada disso... – O homem que fora jogado ao solo tosse, tentando recuperar a respiração por completo – Não estou aqui para roubar vocês... – Ele faz uma careta ao engolir a própria saliva – Vocês são bons! – Ele aponta para os dois enquanto sorri ainda com a mão na garganta – Sempre tento ser o mais silencioso possível...

O grisalho engatilha a arma.

— Calma! – Exclama o homem, o rosto agora é tomado pela seriedade – Me chamo Aaron, vim de uma comunidade próxima... O meu trabalho é recrutar novas pessoas que possam trazer benefícios a nossa sociedade em expansão... – Ele passa a mão no rosto – Eu e meu parceiro estávamos observando vocês, e vimos que mesmo acampando a céu aberto nesse frio e com todos os machucados – Seu olhar se dirige a perna do grisalho – Não encontram dificuldades em sobreviver... É justamente o que procuramos! Seria o fim do “dormir no meio da floresta”... Temos casas, água encanada, um sistema ecológico de esgoto, e é claro, muros! Sei que tudo parece surreal, mas...

O grisalho o interrompe.

— Mesmo que tudo isso fosse real... – Ele segue apontando a arma para Aaron – Tenho algo mais importante pra fazer, e esse é o motivo de estarmos no meio da floresta... Estou rastreando uma pessoa... E não vou a lugar algum antes de encontrá-la! Além do mais, como você mesmo disse... – A fala do homem parece serena – Tudo é muito surreal para ser verdade!

— Espera, espera... – Aaron gesticula com as mãos – Não precisamos levar isso ao extremo, eu não sou uma ameaça a vocês, nem armado estou... Só estou pedindo que me escutem, eu tenho como provar a verdade de minhas palavras! – Ele olha para o homem grisalho – Qual o seu nome?

Sem tirar Aaron de sua mira, ele responde.

— Me chamo Goodwin...

*****

Os olhos se abriram em movimentos ininterruptos, e apesar da falta de luminosidade, ainda era difícil acostumar-se a visão após tanto tempo inconsciente. Não era possível enxergar muita coisa naquele quarto, a baixa luminosidade acusava que a noite ainda se fazia presente. A mão direita é levada até a face, empurrando os olhos, como se aquilo fosse acelerar a volta em definitivo da visão.

A audição, por outro lado, parecia perfeita, e assustadoramente nada era ouvido. Ainda trêmulo, e tentando pouco a pouco despertar por completo, Tom Price tentara com algum esforço erguer o corpo do leito onde se encontrava. Não havia muitas lembranças em sua mente, e tal momento se mostrava por demais confuso. Ao tentar apoiar o corpo, elevando-o, um susto de congelar a espinha toma conta do corpulento homem, e como em um choque, Price passa a lembrar de exatamente tudo o que ocorrera.

Ao olhar para o lado esquerdo do corpo e perceber que o braço fora amputado, o ex-soldador voltou a sentir tudo o que ele quase esquecera. Era como se a espada de Michonne o estivesse golpeando novamente, como se a dor latente voltasse, como se o sangue descomunal ainda estivesse escorrendo. Recordou-se de como teve a certeza de que morreria, e de como teve medo de partir em meio a tanto sofrimento. Tom está feliz por estar vivo, mas tal felicidade ainda não pode ser nomeada como um sentimento bom, já que a sobrevivência por si só não se mostra suficiente quando o que vem depois não passa de uma incerteza.

Ele respira fundo, ainda juntando forças para se levantar, tentando ignorar uma angústia que começa a brotar quando mensurava em como pode vir a ser a sua vida após trauma tão grande. A última coisa de que se recorda é a invasão, e por estar medicado e em um leito, conjectura que provavelmente o problema fora contornado, e isso acaba aliviando-o. Tom depende da sobrevivência de Alexandria e de certa forma a recíproca também é verdadeira.

Ele pensa em Susie e Jacob, Leah, Amanda, o homem que nunca ligara muito para religião, clama agora para qualquer ser superior, esperando veementemente que a vida deles tenha sido poupada. Tom sempre gostou de passar a imagem de arredio, principalmente após assumir diante de todos o posto de líder do seu pequeno grupo enquanto ainda vagavam pelas estradas. A verdade é que a casca que o cercava, servia mais como uma autoproteção, uma maneira inútil de não sofrer caso alguém viesse a morrer.

O problema é que nunca as coisas saíram como ele planejara. O grupo formado por acaso se aproximara muito, como uma família, e provavelmente todos ali morreriam uns pelos outros. A barra que enfrentaram nos últimos dois anos acabou ligando-os profundamente, e por isso Tom tenta a todo custo erguer-se daquela cama, já que a ansiedade em saber sobre o estado de seus amigos o aflige por completo.

Retirando o acesso que levava medicamentos e nutrientes até sua veia, o homem ainda cambaleante, conseguiu descer da cama, tombando para o lado e tendo que se segurar de qualquer maneira com o braço direito. Price sentia que todo o seu senso de equilíbrio havia ido embora, e que o simples ato de caminhar sem um membro seria muito dificultoso a partir de agora. Apoiando-se firmemente na beirada da cama, Tom tenta deixar o corpo ereto em um único impulso, praticamente jogando-se para trás. Ainda tonto e confuso, o ex-soldador cai de costas no solo, totalmente desorientado.

Após decidir se acalmar, Price fecha os olhos e tenta controlar a respiração, preparando-se para uma nova investida em sua empreitada de tentar ficar de pé. Usando o próprio solo como base, e dessa vez de forma lenta e cuidadosa, o corpulento homem consegue, apesar da dificuldade, erguer-se e manter-se ereto. Caminhando lentamente, ainda com a cabeça girando por conta dos dias a fio sob o efeito de sedativos, Tom se dirige até a porta, tateando-a em meio à semiescuridão, até encontrar a maçaneta.

Assim como o quarto, o corredor, que logo Tom notou ser o da casa da doutora Cloyd, também se encontrava às escuras. O silêncio que imperava até pouco tempo no cômodo onde estava anteriormente, não se mostrava presente no restante da casa. Gemidos abafados, pequenas risadas e suspiros pareciam ser emitidos da sala, e após interromper sua caminhada para tentar identificar o que seria aquilo, Price logo percebeu do que se tratava.

Imaginou que seria Heath e Cloyd, aproveitando a madrugada e a aparente tranquilidade exterior de Alexandria para uma seção de prazer mútuo. Um breve sorriso brotou em seu rosto, afinal, aquilo era mais do que um sinal de que as coisas iam bem. Utilizando a parede como apoio, Tom virou as costas e começou a caminhar de volta ao quarto, sem querer interromper o momento dos dois amantes. Porém, antes que pudesse dar o primeiro passo, o homem atinou por alguns segundos em um detalhe muito importante.

Heath e Denise possuem um quarto, no segundo andar, e provavelmente o mais confortável de todos, então porque diabos estariam na sala de estar, como dois adolescentes se pegando às escondidas? Por alguns instantes Tom hesitou, pensou em retornar ao seu leito, já que provavelmente estava gastando energia à toa, mas algo dentro dele o impulsionou a dirigir-se até o local para verificar.

Tentando não fazer barulho para não chamar atenção, Price caminhou lentamente pelo corredor, até chegar ao referido cômodo, a origem de todas as dúvidas em sua mente. O que viu o fez ficar boquiaberto, imóvel e sem conseguir raciocinar ou agir. Para sua surpresa e espanto, o casal que transava em pleno sofá da sala era Leah e Vincent, engalfinhados, quase como um único ser. O médico estava sobre a garota, delirando enquanto Leah respondia a seus impulsos com suspiros profundos e intermitentes.

Leah puxava com força os cabelos do cirurgião, que parecia aproximar-se do nirvana enquanto habilmente a mudava de posição, buscando proporcionar essa mesma sensação a garota. O suor fazia a pele dos dois reluzir, e os gemidos, agora mais altos, denotavam o que viria a seguir, enquanto os movimentos tornavam-se cada vez mais acelerados.

Tom não quis ver o final do ato, completamente transtornado e confuso, quase catatônico, passou a caminhar de volta a seu leito, sem saber nem o que pensar. Ele vira muita coisa durante o seu trajeto pela sobrevivência, mas jamais esperava deparar-se com aquilo. Seria uma longa noite, e provavelmente Price não conseguiria dormir.


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Notas finais do capítulo

Hei!

Esse capítulo não foi tão movimentado, mas eu gosto de tratar um pouco mais detalhadamente sobre os dramas, como houve uma invasão muito grande nos capítulos anteriores, a poeira ainda está baixando...

Só para constar, Isaiah é um personagem criado por mim...

Obrigado a todas, e mais uma vez dedico o capítulo a Menta! Agradeço o seu apoio Imperatriz!

Até o próximo...



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