All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 43
Mabalo Lokela (Deus Ex Machina)


Notas iniciais do capítulo

Hei!

Na última terça feira à noite, minha avó infelizmente veio a falecer. Isso justifica inclusive boa parte da demora em atualizar a fic. Peço desculpas aqueles que aguardavam pelos novos capítulos, tentarei voltar à normalidade de postagens a partir da edição 45...

Dedico esses dois capítulo integralmente a memória de Eulice de Almeida Sant’Anna, minha avó querida que acabou partindo, deixando um imenso vazio nessa família... Descanse em paz, minha vózinha!

A ideia primordial era que fosse apenas um capítulo, mas ele acabou ficando gigantesco (em torno de doze mil palavras), então precisei dividi-lo em duas partes... Ele basicamente conta todos os passos que levaram Vincent Hall a seu destino já revelado da edição anterior...

Teremos POVs do médico, mesclado a flashbacks, além de partes muito importantes envolvendo outros personagens. Sério, não esperem apenas Hall nesses capítulos, e não, eles não serão envoltos por calmaria... Espero surpreendê-los!

Boa leitura!



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[ANTES]

Suas costas doíam. Era o terceiro só naquele dia.

Vincent Hall carregara o cadáver do pequeno Miles Davis por quase duzentos metros. Escolhera um local afastado o bastante de sua cabana, para que não pudesse atrapalhar o seu trabalho. Estava sentindo-se cansado, não só fisicamente, mas mentalmente. Os seus pensamentos pareciam triturados, esmagados dentro de sua cabeça.

A garganta estava seca, uma secura e ardume que água nenhuma poderia curar. Estava mais do que claro o que iria ocorrer.

Com o tronco do garoto apoiado em seu ombro direito, Hall fizera uma breve pausa, tentando encontrar melhor posicionamento para o corpo inerte da criança de nove anos. Ele sangrara até a morte. E Vincent não pôde fazer nada para evitar. Assim como não conseguira salvar Rose e Bernard, e assim como também não conseguiria com Annie e Lawrence.

A fumaça ainda se propagava das chamas a que os corpos dos últimos dois foram submetidos. Um emaranhado de cinzas se fazia visível, resumindo duas vidas, dois seres humanos que passaram por esse planeta e que sobreviveram ao maior cataclismo de sua espécie, a um bolo negro e fétido de restos mortais.

Hall então jogara o corpo do garoto sobre as chamas, respirando profundamente, evitando olhar para o destino cruel que os alcançara. Olhara para um dos braços, manchado pelo sangue de Miles que escorrera por seu suor, por seus olhos, ouvidos, nariz, boca... A imagem dos últimos suspiros do garoto jamais deixaria sua mente, e ao relembrá-los mais uma vez, Vincent deixara escorrer uma lágrima, voltando o olhar para o cadáver em chamas.

Se havia uma coisa que poderia acalentar a sua alma, depois de tantos tropeços, de tanto se deixar ser movido pelo medo, estava ali, naquela imagem. Hall tinha uma última missão, e entendera exatamente qual o seu teor.

Seria importante. Faria algo. Salvaria vidas.

Uma última vez.

...

— E então, está nervoso?

O jovem Vincent Hall estava sorrindo. Provava um dos ternos da loja indicada por seu melhor amigo, o residente em neurocirurgia Gilbert Ferrer. Empolgado, talvez mais do que ele próprio, que emanava nervosismo encarando sua própria imagem no espelho, Ferrer dera dois tapas no ombro esquerdo de Hall, gargalhando amplamente ao notar a falta de jeito do promissor cirurgião geral em dar um nó em sua gravata.

— Gilby, meu camarada – Hall retirara a gravata, derrotado por sua inabilidade – Acho que prefiro ficar treze horas enfurnado em um centro cirúrgico retirando um carcinoma da apófise mastoideia...

O amigo dera mais dois tapas de leve em suas costas.

— Mas lembre-se que essa escolha foi sua. – Ferrer aproximara-se, observando a imagem dos dois sendo refletida no espelho de corpo inteiro – Eu bem que te avisei que seguir os meus passos deixaria sua vida bem mais movimentada. Mas você quis seguir para o lado oposto...

— Apesar de sua oferta ser tentadora – O rosto de Vincent brilhava em serenidade –, eu já me decidi. Chegou a hora, meu amigo. Annette é a mulher da minha vida... Eu sinto isso.

Gilby coçara a barba. Apesar de todas as piadas, sabia que a estudante de veterinária fazia seu parceiro muito feliz. E por tabela a felicidade de Hall também o alegrava.

— Bom, já que você resolveu mesmo se acorrentar... – O homem falava alto, não parecia dar a mínima para o fato de estarem em uma requintada loja de ternos – Pode deixar que a despedida de solteiro será por minha conta! – Gilbert batera no próprio peito – Primeiro nós iremos ver um jogo dos Oriols, depois paramos em um bar para encher a cara e falar mal dos Oriols. E depois... Strip club!

O neurocirurgião começara a dançar, troçando com o acanhado amigo que apenas que ria enquanto meneava a cabeça negativamente.

— Vamos lá, Vince! Despedida de solteiro sem pulada de cerca não pode nem contar como despedida! E nem pense em querer cortar o meu barato, já acertei tudo com o Michael, o Ron e o Dex.

Ferrer seguira dançando de forma cômica, passando as mãos nas costas de Vincent, que o empurrara de leve, rindo do besteirol constante de seu camarada.

— Por favor Gilby, se um dia eu for pai, me lembre de nunca convidá-lo para padrinho! – Respondera Hall em tom de brincadeira.

 

[...]

 

— Você tem ideia de que isso que fizemos é uma loucura total, não é mesmo?

J.J. caminhava na retaguarda de Vincent, acompanhando os passos do médico que agachava-se, colhendo algumas das ervas indicadas por Olga. O sol já havia alcançado o topo do céu, e pelas feições do garoto de gorro, o rosto ainda cansado por conta de uma madrugada inteira de muitas movimentações, as atitudes tomadas ainda o preocupavam bastante.

— Sim, eu tenho. – Respondera secamente.

Com a boca e o nariz recobertos por um lenço, e as mãos protegidas por luvas, Hall não aparentava estar tão afoito quanto o seu parceiro. Seu olhar denotava uma calmaria que há muito não lhe tomava conta, uma sensação plena de que finalmente as coisas estavam tomando o rumo certo. Ele sentia-se bem, e isso era o mais importante no momento.

— Ok. Você tem. – O jovem seguia irrequieto – E você não espera que nenhuma merda aconteça por conta do que fizemos?

O médico o olhara outra vez.

— Sim, eu espero.

Agitado, Cheever voltara-se para os céus antes de retornar sua atenção a Vincent, retirando o gorro da cabeça e passando a mão sobre os cabelos de forma nervosa.

Beleza... Então eu vou tentar não levar em consideração o fato de que você provavelmente deva estar completamente maluco... Temos algum plano? Ou simplesmente vamos esperar que venham até aqui e nos matem? Porque você sabe que é isso que vai acontecer.

O médico erguera-se do chão, com um pouco mais de dificuldades do que o habitual. J.J. em um impulso tentara ajudá-lo, mas seu toque fora prontamente refutado por Hall.

— Você nunca ouviu a frase “só se vive uma vez”?

Com os olhos arregalados, Cheever encarava pasmo o meio sorriso que seguia fixo na face do amigo médico.

— Nesse mundo. Definitivamente não! – O garoto coçara a cabeça outra vez – Você provavelmente deve estar doidão por conta de alguma dessas ervas. – Ele apontara para as plantas que agora Vincent guardava em sua mochila – Por um acaso você comeu aquela folha que a Ucraniana falou para não comer?

Vincent seguira sorrindo. O médico dera dois passos para trás, precavendo-se, em seguida retirara o lenço que lhe cobria metade do rosto. Suas feições estavam pálidas, os lábios perdendo coloração enquanto os olhos pareciam mais fundos e enegrecidos. Ainda assim, uma atípica tranquilidade parecia tomar-lhe conta.

— Eu sei que provavelmente eu estou pedindo muito de todos vocês... Mas basta que entendam que se não resolvermos isso da forma correta, não vai haver amanhã para nenhum de nós. – Hall respirara profundamente – Eloise nos dará cobertura por um tempo, sei que ela vai conseguir contornar as coisas... Mas por enquanto, preciso que sigam a risca todas as minhas instruções. Vidas dependem do que faremos a seguir.

J.J. parecera aliviar-se um pouco mais, relaxando os ombros após as últimas palavras do cirurgião.

Beleza, brother... Manda. O que faremos a seguir?

O médico recolocara o lenço. Havia muito que ser feito.

...

— Obrigado pelas doces palavras, Gilbert. – Uma jovem mulher assumira o microfone que estivera por quase dez minutos nas mãos de Gilbert Ferrer, enquanto o mesmo relembrara diversas histórias de faculdade envolvendo o seu amigo Hall, e exaltando o caráter do também médico. Com sua desenvoltura, arrancara boas risadas da plateia, formada pelos familiares do casal de namorados, que comemoravam agora o noivado tão esperado.

De pele negra e cabelos cacheados, amarrados para trás em um belíssimo penteado, Annette Hoult enchera os pulmões de ar, olhando para o amado, sentado alguns metros a sua frente. Ele lhe dera uma piscadela, seguido por um meio sorriso que ela já conhecia muito bem.

— Eu passei a noite inteira pensando sobre o que falar nesse momento. Achei que seria mais fácil se eu escrevesse algo, mas... Cheguei à conclusão que essas coisas precisam fluir naturalmente. – A noiva fizera uma breve pausa – Quando eu conheci Vincent, percebi que havia algo diferente nele, e não, não estou falando da barba ruiva. – Risadas ecoaram – Eu notei que havia uma luz dentro dele, uma beleza muito mais profunda do que a física... Eu me apaixonei pelo ser humano maravilhoso que ele é, pela pessoa bondosa, prestativa...

Uma nova pausa precisara ser feito. Annette prometera a si mesma que não choraria, mas naquele instante diversos sentimentos brotavam em seu peito. Ela nunca havia se sentido tão feliz assim.

— Você nasceu para ser um herói, Vince – O casal trocara olhares apaixonados – Você será um médico brilhante e um marido brilhante. Eu te amo muito, e sentirei muito orgulho em me tornar a senhora Hall.

Aplausos se sucederam. Com um sorriso bobo no rosto, Vincent Hall erguera-se, caminhando em direção a sua noiva e a beijando apaixonadamente. Naquele enlaço havia apenas uma única certeza. Os dois jamais se separariam.

 

*****

 

Bill ainda não conseguia acreditar. Passara a manhã inteira procurando por Patricia, mas não conseguira encontrá-la em lugar algum. Infelizmente ela não havia sido a única que desaparecera. Dez moradores da comunidade não haviam mais sido vistos desde a última madrugada. E coincidentemente tudo ocorrera justamente após o discurso de Eloise, há uma tarde atrás.

Ela dissera que os doentes haviam sido levados por Desmond Wales, referindo-se ao local de destino apenas como um lugar seguro. Dissera que ele estava fazendo de tudo para salvá-los e que no momento aquela era a decisão mais acertada. Se eles permanecessem por ali, segundo ela, havia grandes riscos de que as coisas ficassem ainda piores.

Mas será que isso realmente seria possível? A Imperatriz estava demonstrando cada vez mais despreparo para comandar o Garden, tomando decisões que só prejudicavam a comunidade. Fora ela quem aceitara a presença de um total estranho, deixando que o mesmo assumisse a enfermaria no lugar de Patricia Peck.

Fora ela que bolara o plano de invasão a Alexandria, e deixara nas mãos de Desmond, um mentiroso profissional, a tarefa de cuidar dos trâmites mais importantes. No fim das contas, o grupo acabara enfileirado, sendo encurralado por Rick Grimes e seu grupo, tudo graças à traição de Wales. Bill quase morrera naquela noite.

Agora, como a cereja do bolo, dez pessoas desaparecem de forma misteriosa, enquanto a mandatária segue agindo como se nada tivesse acontecido. Fora dessa forma que ela deixara sua irmã se envenenar pela cobra travestida de John Kenny. Talvez agora fosse ela quem estivesse sendo envenenada, deixando-se ser manipulada pelo homem da perna de pau. Definitivamente, ela não era a governante que Flood gostaria de ter comandando o local em que vive.

O Garden precisava se reerguer. Não podia seguir os mesmo passos de dois mil e cinco.

Caminhando a passos largos pela floresta, tomado pelo ódio que só crescia dentro de si, Bill Flood seguira a trilha deixada por Eloise, que se afastara do bosque principal após verificar os pomares. Ele já havia falado com Ted, pai de Peter, com Malcolm, com o caolho Ferdinand e Sasha, e ambos haviam concordado com o fato de que a Imperatriz não representava mais o ideal que todos imaginavam para a comunidade.

Só era preciso um pequeno empurrão, e então todo o restante do Garden estaria com ele. E aí sim as coisas voltariam para o seu rumo certo. Ele precisava fazer aquilo.

— Perdido, Flood?

A Imperatriz o surpreendera, surgindo as suas costas. Provavelmente notara que estava sendo seguida e deixara para trás rastros falsos. Vestia-se de negro, utilizando sua prótese com lâmina, algo raro de se ver, posto apenas em momentos que exigiam dela combate corpo a corpo.

Talvez ela tivesse percebido os planos de Bill. Parecia cautelosa demais.

— Não mais... – Respondera Flood de forma evasiva.

A mulher o encarava firmemente. O último encontro entre os dois não havia terminado nada bem, e Bill ainda podia sentir a força dos ganchos lhe envolvendo a garganta. Aquela humilhação pública fizera com que todo o seu sentimento de aversão à liderança de McIntyre se ampliasse ainda mais.

— Estava me procurando, senhor Flood? – Ela mantivera a mesma postura altiva – Aqui estou eu. Porque então não deixamos de embromações e vamos logo ao ponto principal? Os posicionamentos aqui já estão mais do que claros.

O caipira abrira um meio sorriso.

— Você não consegue perceber, não é? Está tão cega que não consegue nem mais enxergar algo que está a sua frente, esbarrando nos seus olhos! – Bradara. Bill estava chegando ao seu limite, em outros tempos jamais se imaginara dirigindo-se a Imperatriz com tamanha petulância – O Garden precisa de alguém que saiba diferenciar o que é bom e o que é ruim para nossa comunidade!

A mulher arqueara uma das sobrancelhas, movendo levemente o braço esquerdo com a prótese. Flood estava atento a tudo, não poderia descuidar-se.

— Essa é a segunda vez que você desafia a minha autoridade...

Ele não permitira que ela concluísse.

— Você só pode estar maluca! – Vociferara o homem de chapéu de boiadeiro – Está levando todos nós para o buraco! Está tão louca quanto sua irmã ficou quando se apaixonou por aquele psicopata! – Eloise arregalara os olhos, fora pega de surpresa – Demoramos tanto tempo para superar aquelas perdas, e você simplesmente nos trás uma nova versão do Kenny! Como você não consegue enxergar isso?

A mulher erguera sua prótese, posicionando sua lâmina em frente ao torso. Não parecia inflamada o bastante para atacar, mas talvez acreditasse que a conversa pudesse não terminar bem.

— Você está emocionalmente envolvido, Flood. – Ela tentara manter o tom diplomático, mas seus músculos faciais ribombavam, enquanto suas maçãs avermelhavam-se – Todas as decisões que já tomei sempre foram visando o bem do Garden! Quando tudo isso acabar você verá o quanto está sendo estúpido! Você não é burro, Bill, não aja como um.

— Sua instabilidade está inflamando as pessoas, eu já percebi isso. Não se esqueça de que sou onipresente dentro dessa comunidade. Eu sou a Imperatriz do Garden! – Sua voz se ampliara – Atitudes como essa só irão fomentar o barbarismo, aquilo pelo qual tanto lutamos contra. Ou você não se lembra de como as coisas eram antes? Antes de chegarmos aqui, de termos as leis. É para aquilo que você quer que retornemos? – O homem nada dissera – Me entregue sua arma, Bill. Quando tudo se resolver, devolverei a você. No momento não posso deixá-lo andando armado por aí, você representa um perigo.

Bill baixara a cabeça, pensativo. Esperava que ela pudesse lhe atacar outra vez, demonstrando mais ainda o quanto estava perdendo o controle. Ele queria mostrar a todos o quanto ela estava alienada, influenciada por aquele que mentira sobre o próprio nome.

Lentamente retirara o rifle das costas, estendendo as mãos e direcionando-o a Imperatriz. Ela tomara a arma em sua posse, meneando a cabeça de forma positiva.

Mas aquilo não era certo. Bill tinha o dever de fazer algo.

No mesmo movimento, tão rápido quanto sempre fora em suas caçadas, o caipira retirara o seu facão da cintura, golpeando o abdome de Eloise, em uma certeira e profunda estocada. A mulher arregalara os olhos e abrira a boca, gemendo em dor. Com a lâmina de sua prótese, golpeara o ar, tentando acertar Flood, mas apenas conseguira fazer um pequeno corte em seu peito.

De braços abertos a Imperatriz caíra de costas, tocando o solo com violência. Uma grande quantidade de sangue escorria pelo lado direito de sua barriga, que ela tentara estancar realizando pressão com sua mão, mas parecia fraca demais para obter qualquer resultado positivo.

Bill caminhara até ela, tomando novamente o rifle em sua mão. Olhara para a mulher, que tentava se manter consciente, sem forças até mesmo para dizer algo. Flood sabia que tomara uma via de mão única. Depois que desse aquele passo, não havia mais volta. Girara então a arma, reposicionando-a.

— Você é que representa um perigo! – Exclamara, encarando os orbes de Eloise, que se encontravam fixos nos seus.

Ele então descera com toda a força, golpeando-a em uma potente coronhada. A Imperatriz desmaiara, morreria em pouco tempo.

Estava feito. O princípio de tudo.

 

*****

 

— Doutor...

Vincent deslocara-se em direção a Lawrence, que erguia o tronco, tentando levantar-se da maca. Tocando levemente em seu peito, o médico balançara a cabeça negativamente, pedindo que ele retornasse a posição original.

Peck atendera, deitando-se novamente. Visivelmente mais magro, o marido de Patricia estava pálido, os olhos fundos envoltos por manchas negras, e um suor que lhe tomava conta do rosto de forma intermitente, sem nunca cessar. Assim como a febre, sempre alta e lhe tirando o pouco de energia que ainda conseguia armazenar.

O homem reclamava de dor o tempo inteiro. Nas costas, no tórax, nos membros, e principalmente na cabeça. Chegara a dizer inclusive que se sentia como se o seu crânio fosse explodir. Os vômitos eram constantes, e a hemorragia que apresentara assim que fora trazido ao consultório de Vincent Hall, começava a se espalhar por todo o corpo. Já era possível encontrar sangramentos no nariz e na genitália, e além da tosse, havia resquícios de sangue em sua urina e fezes.

Ele reclamara muito durante toda a viagem, pedindo inclusive que fosse deixado para trás, pois não estava mais conseguindo aguentar. Desde que assumira esses casos, Hall fizera de tudo para primordialmente compreender o que estava afetando-os, para em seguida tentar encontrar uma solução. Arriscara tudo nessa tentativa, sem pensar nas possíveis consequências.

Lembrara-se do juramento de Hipócrates, e do quanto às palavras proferidas como recém-formado, parecia só agora adquirir um pleno sentido em sua cabeça. Uma pessoa muito especial lhe dissera uma vez que ele havia nascido para ser um herói. Vincent nunca conseguira acreditar nisso, mas naquele momento, olhando para tudo o que já acontecera em sua vida... Talvez Annette tivesse razão.

Se o Vincent Hall de uma vida inteira não conseguira cumprir nenhuma de suas promessas. Talvez Desmond Wales, sua nova versão que brotara dentro do Garden, conseguisse finalmente passar uma borracha em seu passado.

Renascendo. Redimindo-se.

...

Dez profissionais faziam parte do time que realizava a parodidectomia no centro cirúrgico do Kindred Hospital naquela madrugada. O procedimento de emergência, porém corriqueiro, já realizado dezenas de vezes pelo médico titular naquele plantão, seguira normalmente durante as duas primeiras horas.

O paciente, uma mulher de sessenta e sete anos, com um tumor fincado no nervo profundo de sua parótida, tinha agora o lado direito da face aberto enquanto uma exerese de forma a facilitar o acesso ao carcinoma era realizada. O tumor, do tamanho de uma bola de gude estava fincado nos nervos faciais da idosa.

Com as mãos visivelmente trêmulas, O Doutor Vincent Hall tentava obter uma abordagem mais ampla do lobo profundo através da secção da apófise estiloide. Nada que fosse muito complexo para ele, mas quando se passa a noite inteira abraçado a uma garrafa de vodka, qualquer procedimento que exija o mínimo de coordenação motora, acaba se tornando um grande desafio.

Julia havia terminado o relacionamento com o cirurgião há apenas uma semana, e as cicatrizes do rompimento ainda doíam muito no interior de Hall. Ela havia sido muito injusta, não lhe dera a chance de se explicar, não respondera aos recados que deixara em sua caixa postal, não quisera mais recebê-lo no trabalho.

Vincent não conseguia compreender. A médica brasileira entrara em sua vida e o cativara de forma tão profunda e inesperada, que ele embarcara de cabeça, tentando encontrar uma forma de ser feliz, de compensar os demônios do passado, de toda a sua covardia. Mas ela simplesmente o abandonara, como um furacão que devasta uma cidade, deixando para trás apenas escombros.

Ele sentia que jamais voltaria a ser o homem que um dia fora.

Sua visão estava turva. Por detrás dos óculos piscava os olhos, tentando enxergar com maior precisão. Começara então a dissecção romba da gordura do espaço parafaríngeo, solicitando que o excesso de sangue fosse drenado.

Encarara então o lobo profundo, posicionando o bisturi para o início da dispersão do tecido tumoral. Passara a lâmina de leve, e percebera que havia cometido um erro. Uma grande quantidade de sangue começara a jorrar, e os sinais vitais da paciente pouco a pouco começavam a cair.

Tentara limpar o sangue, mas percebera que havia rompido a artéria carótida externa. Rapidamente tentara laqueá-la, mas notou que a artéria temporal superfacial e as veias retromandibulares também haviam sido danificadas no processo.

O líquido viscoso e rubro não parava de jorrar, enquanto que a pressão arterial subia e os batimentos cardíacos caíam. Os demais profissionais da equipe multidisciplinar aguardavam por uma atitude do cirurgião titular, que tinha por obrigação fazer algo. Hall dera um passo para trás, levando uma das mãos a cabeça. Estava tonto, trêmulo, tão bêbado que mal conseguia manter-se pé. Ouvira então um bipe constante vindo de um dos monitores.

Estava acabado.

O médico então retirara sua máscara de procedimento, sacando em seguida as luvas. Apoiara-se na maca, deixando cair a delicada lâmina que segurava entre os dedos.

— Hora da morte... – Declarara.

Cambaleante, deixara a sala de cirurgia sob olhares espantados de seus companheiros de trabalho. Ali estava decretado o fim de uma carreira que tinha tudo para ser brilhante. Novamente Vincent Hall fora derrotado por si mesmo.

...

Não mais.

Desmond levara uma caneca contendo um chá que havia acabado de preparar. O composto feito a base de raiz de Guiné, mais uma das ervas cultivadas por Olga, poderia ser utilizado para minimizar os danos da rinorreia e faringite, que se apresentavam com muita violência nos doentes, principalmente após dez dias de infecção.

Dera um pouco para Annie, que tossira bastante por conta da amargura do remédio caseiro. Ela seguia reclamando de dores por todo o corpo, e os sangramentos constantes haviam se ampliado. Wales enxugara um pouco do sangramento que escorria de forma espontânea pelas narinas da mulher. Ali, em contato direto com eles, o médico não mais se preocupava em utilizar os básicos equipamentos de proteção individual. Não fazia mais diferença.

Dirigira-se então novamente a Lawrence. O corpulento homem aparentava estar tão abatido, que nem mais lembrava o tratador de animais da comunidade, sempre sorridente e com palavras amistosas. Seus lábios haviam perdido boa parte da coloração, e o seus olhos eram envoltos por grandes manchas negras.

Ele também tomara um pouco da bebida, vomitando-a parcialmente em seguida, junto a uma grande quantidade de sangue, que espirrara em partes em seu travesseiro. Com gaze, Wales levantara sua cabeça, ajudando-o a retornar a posição original, enquanto enxugava o excesso que escorria por seus lábios.

Ainda tossindo, o homem segurara Desmond pela camisa, fazendo com que olhasse diretamente para ele.

— Eu... – Sua voz estava fraca, a inflamação na garganta lhe arranhava as cordas vocais a cada vez que tentava se expressar – Eu vou morrer, não é Doutor?

O médico respirara profundamente. Precisava ser franco. Devia isso a ele.

— Sim.

Peck tossira mais algumas vezes, chegando a perder o ar. Após recuperar-se do novo acesso, retomara a fala.

— E como vai ser? Vai ser logo? Vai ser rápido?

Wales novamente fizera uma pausa.

— Não tenho como precisar, Lawrence... Talvez dois dias, talvez algumas horas... Mas está perto. – Ele voltara-se brevemente para o teto da cabana, organizando os pensamentos – Você já alcançou a fase hemorrágica da doença. Todas essas suas secreções são sinais de que seu corpo logo entrará em colapso. Sua pressão arterial começará a diminuir, e então você entrará em estado de coagulopatia. Depois disso...

O homem batera duas vezes em seu braço, desviando o olhar. Compreendera que sua vida logo iria se esvair.

— Preciso que traga ela aqui... – Dissera Peck. Desmond meneara a cabeça negativamente, mas Lawrence não permitira que ele se manifestasse – Eu estou te pedindo, Doutor, por favor... Eu tenho que falar uma última vez com ela antes de partir.

Wales compreendera, concordando com ele em um gesto. Pensara momentaneamente em Leah, e sentira seu coração se comprimir. Infelizmente ele não poderia se despedir da jovem. Não poderia direcionar suas últimas palavras a ela.

Des!

Um grito oriundo da parte externa da cabana fizera com que Desmond Wales se erguesse rapidamente, deslocando-se até a saída. Retirara a lona plástica que utilizara para isolar os leitos improvisados, e após calçar rapidamente um par de luvas e recobrir o rosto com um lenço, manqueteara até o lado de fora.

Deparara-se com J.J.

— Temos um problema, cara. – O garoto de gorro arregalara os olhos apontando para o galpão abandonado há dez metros de distância de onde estavam. – Eles acordaram.

Desmond pedira calma ao amigo, caminhando em direção ao galpão. Fora Eloise quem indicara o lugar, dizendo que estariam seguros ali. Era afastado o bastante da comunidade, e apenas ela e Hanso conheciam o caminho. Havia também um pequeno riacho nas redondezas, o que ajudava e muito o médico. Não se sabia ao certo o que as duas rústicas construções de madeira, feitas no interior selvagem do bosque, estavam fazendo ali. Mas no momento, isso era o que menos importava.

A frente da entrada da grande cabana, Olga, conhecida pela maioria dos moradores apenas por sua nacionalidade – chamada comumente de Ucraniana – cuidava da segurança, guardando a grande porta com uma pistola carregada na cintura. A mulher de curtos cabelos era uma das poucas em todo o Garden a ter o mínimo de treinamento em combate, já que havia servido por dois anos às forças armadas de seu país.

Os dois se cumprimentaram.

— Onde está Marsha? – Indagara o médico.

— Foi buscar água, como você pediu. – Respondera Olga, com um sotaque bem carregado.

Ele então pedira para entrar, e fora prontamente atendido pela ucraniana.

A grade porta de madeira se abrira em um ranger, e assim Wales entrara, batendo com sua prótese de madeira no solo de forma ritmada, acompanhando cada um de seus passos. Com um gesto, pedira que o local fosse trancado por sua guardiã. Assim que os raios de luz que penetravam a abertura das duas únicas janelas iluminaram a silhueta de Desmond, gritos alvoroçados começaram a ecoar.

“Eu sabia que era você!”, “O que vai fazer conosco?”, “Bill estava certo!”, “Não nos mate!”, “Onde está a Imperatriz? O que fez com ela?”. Essas eram as frases mais proferidas pelas dez pessoas sequestradas pelo médico e seu grupo na última madrugada. Justamente o grupo de risco que ele e Eloise haviam tentado sem sucesso – por intermédio do diálogo – convencer a deixar o lugar, permanecendo em quarentena.

O plano havia sido totalmente estúpido, decidido em um impulso por Desmond, sem nem mesmo consultar a Imperatriz. Estava disposto a proteger o lugar, custasse o que fosse, e sabia que aquelas pessoas, em contato direto com o restante da população, poderia trazer um mal irreversível ao lugar.

Se eles não haviam entendido por conta própria, então, infelizmente, Desmond Wales precisaria forçá-los a entender.

— Por favor, se acalmem! – Pedira – Ninguém irá fazer nenhum mal a vocês. – Gritos de protestos se sobrepuseram a sua voz. – O Garden foi tomado por um vírus, uma mazela oriunda dos porcos que estávamos criando. – Ele ampliara o tom de voz, ganhando finalmente a atenção de todos – Ela é muito semelhante ao Marburg e ao Ebola Zaire... Inclusive nos métodos de transmissão.

— Em 1976 o Ebola matou 280 pessoas em 310 casos confirmados. Em 1995, essa mesma doença matou 254 pessoas em 315 casos confirmados... Isso quer dizer que há uma taxa de mortalidade de noventa por cento nos dois grandes surtos! Noventa por cento! – Enfatizara – Estamos enfrentando uma doença que tem o potencial de matar toda a nossa comunidade em menos de dois meses! Eu não vou deixar que isso ocorra, gostem ou não.

Amarrados pelas mãos e pés, os sequestrados não podiam fazer nada além de protestar, visivelmente espantados pelas palavras do médico. Wales sabia que não os havia convencido, e que provavelmente suas palavras seriam desacreditadas, mas não mais diria o que eles precisavam ouvir. Ele diria o que deveria ser dito.

— Vocês estão de quarenta, até que eu decida o contrário... – Ele então sorrira, parecera lembrar-se de algo tragicômico – Bom, não serei o médico de vocês por muito tempo, mas passarei as instruções para o meu substituto.

Ele deixara o lugar, tendo a certeza de que o dia ainda seria cheio. As decisões que tomara não ficariam impunes.

 

*****

 

Estava difícil carregá-la, mas Lizzy precisava fazê-lo. Parara duas vezes, por poucos segundos, apenas para conseguir reposicioná-la em seus braços. Suas roupas estavam manchadas de sangue, e o líquido rubro não parecia querer parar de jorrar. Ela tentava correr, mas sem sucesso, apenas acelerava os passos o máximo que podia.

Precisava chegar logo ao seu destino. Notara que a vegetação pouco a pouco tornava-se mais rasteira, até finalmente conseguir encontrar a clareira onde o restante do seu grupo se encontrava. Antes mesmo de alcança-la, começara a gritar.

— Ajuda! – Estava perdendo o fôlego – Eu preciso de ajuda! Alguém...

Hanso fora o primeiro a ir a sua direção. Sem nada dizer, o austríaco tomara Eloise McIntyre em seus braços, sendo seguido por J.J. e Marsha Cheever, que observavam a tudo extremamente espantados. Tocando o rosto da amiga, atestara que ela estava inconsciente, e pelo sangue seco na região, provavelmente havia recebido um golpe muito forte, talvez até fraturado o nariz.

— Doutor! Doutor! – Gritara o homem.

Lizzy apoiara-se nos próprios joelhos, tentando recuperar-se do cansaço. Inspirara profundamente, ainda se encontrava ofegante.

— Como isso aconteceu? – Rapidamente Hanso repousara o corpo inerte da Imperatriz sobre o solo.

Penn erguera o tronco.

— Eu estava vindo para cá quando a encontrei assim, caída no meio da floresta. Acho que ela foi esfaqueada... Por Deus, eu nem sei se ela ainda está viva! – Exclamara em meio ao atordoo. – Quem poderia fazer algo assim? – Complementara.

Uma voz respondera firmemente a indagação levantada.

...

— Bill Flood! – Vociferara Desmond.

O médico caminhara em direção à mandatária, que ainda se encontrava desacordada. Apoiando-se em um cajado de madeira, que passara a utilizar após o pequeno mal súbito que sentira logo depois de conversar com o grupo em quarentena, o doutor Wales aparentava estar cada vez mais abatido. Estafado, e com dores no corpo que ampliavam de intensidade a cada hora, Desmond sentia que suas forças estavam abandonando-o.

Mas ainda não havia chegado sua hora.

Agachara-se ao lado da Imperatriz, erguendo sua blusa e encarando com preocupação a perfuração que a lâmina do facão de Flood fizera em Eloise. O ferimento estava bem feio, as bordas regulares da incisão indicavam que o golpe fora dado com força o bastante para penetrar com profundidade.

Com gaze, Wales limpara as bordas da perfuração, pressionando o ferimento na tentativa de estancar o sangramento.

— Preciso que me ajudem a levá-la para dentro do galpão... Com muito cuidado! – Solicitara, encarando seus amigos que permaneciam atônitos. – Ela perdeu muito sangue, eu... Preciso costurá-la, avaliar se nenhuma víscera foi afetada... – Desmond passara uma das mãos no rosto – Preciso ver também os ferimentos no rosto, e se... – O médico fazia uma pausa a cada frase, definitivamente não estava se sentindo nada bem – Ela não pode morrer. Eu não vou deixar que ela morra.

Com a ajuda de Marsha, J.J. começara a transportar Eloise, seguindo exatamente as ordens de Desmond. Enquanto isso Hanso o encarava com as feições ríspidas, mais até do que comumente apresentava. Segurava sua metralhadora carregada nas duas mãos, apertando o cabo com tanta força que seu sangue já começava a coagular nos dedos.

— E quanto ao Bill? – Questionara, aguardando uma única resposta.

Wales estendera a mão espalmada, pedindo calma. Medidas desesperadas só iriam piorar ainda mais as coisas.

— Ele virá até nós. Uma hora outra ele acabará nos achando, e provavelmente não virá sozinho. – Ele olhara para o austríaco – Você fica aqui, me ajudará a cuidar da Imperatriz e irá segurar as pontas se as coisas saírem do controle – Voltara-se agora para o restante de seu grupo – Quanto a vocês, Olga poderá levá-los em segurança de volta a comunidade, ou caso isso não seja possível, vocês partirão para Alexandria. Rick faz parte da aliança, irá recebê-los sem problemas por lá...

— Isso tudo é culpa minha – O médico prosseguira –, ninguém mais precisa morrer por minha causa. Eu fiz a estupidez de sequestrar aquelas dez pessoas, e por conta disso, Eloise levou uma facada! – Confessara – Não vou deixar que mais ninguém se machuque por conta dos meus atos! Eu não tenho nada a perder, então ficarei aqui.

A primeira negativa viera de quem ele já esperava.

— Bobagem! – Exclamara Lizzy – Somos todos responsáveis por nossas vidas. Eu estou aqui porque quero te ajudar, e não vou deixá-lo agora. E nem adianta tentar me convencer!

Não havia argumentos para rebatê-la.

— É cara, nós somos um time... E nem estou falando da droga do Garden Redskins! – Troçara J.J. – Eu vivo, eu morro, e eu vivo de novo... Não dá para fugir disso! Vamos todos ficar. E se aquele caipira maluco vier mesmo, estaremos prontos para ele!

Os demais concordaram. Desmond então tivera de lavar as mãos.


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Notas finais do capítulo

Cliquem nesse botãozinho aqui embaixo para ler a continuação. Essa é apenas a primeira parte!

E então, o que acharam?

Gostaram das decisões tomadas por Hall? E os flashbacks? Contem-me tudo nos comentários, os aguardo por lá...

Abraços! Nos vemos no próximo...



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