All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 42
Tabula Rasa


Notas iniciais do capítulo

Hei!

Dessa vez não houve atraso algum na entrega do capítulo. Inclusive estou trazendo-o mais cedo dessa vez!

Estava atrasado com alguns compromissos, e ainda estou tentando colocar tudo em dia. E não, o meu notebook ainda não se recuperou de seu estado vegetativo! Estou precisando de um esforço gigantesco para conseguir escrever esses capítulos...

Quero agradecer a minha amiga Menta, que além de aturar os meus atrasos em H.I. (sim, eu sei que mais uma vez demorei em comentar, mas você mais do que ninguém sabe dos motivos), está sempre por aqui, comentando de forma sempre carinhosa, esperta e observadora, me dando toques que vem me ajudando e muito a melhorar ainda mais AOW! Por tanto, dedico esse capítulo a sua pessoa mentolada, que além de foda, conseguiu finalmente entregar sua monografia! Então, meus parabéns! Sabe que lhe desejo todo o sucesso do mundo!

Capítulo grande, mas especialíssimo! Recorde de POVs nessa edição! Começaremos com Isaiah, seguido por Leah Fisher. O terceiro POV é surpresa e acho que realmente irá surpreendê-los (com toda a redundância possível hehe)! Depois teremos Ezekiel, Jesus e Glenn, e por último Lizzy Penn! Viram só? A história andará bastante nesse capítulo, preparem-se...

Beijos, abraços, e boa leitura!



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Isaiah deslocara-se com imensa habilidade, acertando um dos errantes com uma joelhada antes de cravar sua faca na têmpora da criatura. O sangue viscoso e enegrecido espirrara por conta do impacto, manchando o casaco que usava por cima de sua camisa dos Beatles.

Em seguida, aproveitando-se do próprio movimento do corpo, o biólogo traçara uma parábola com sua arma branca, cortando a jugular do morto-vivo que se aproximava por seu lado direito. A sola de sua bota fora utilizada para empurrar o corpo pútrido, fazendo com que caísse ao solo. O crânio apodrecido ficara penso por conta do golpe, fazendo com que a cena ganhasse resquícios de um filme de terror.

Sem se deixar cercar, Matti retirara da cintura outra faca de caça, traçando um ‘X’ de encontro com o pescoço de um errante desgarrado, que tentava com os braços esticados fazê-lo sua próxima refeição. A cabeça da criatura fora decepada de uma única vez, fazendo com que uma boa quantidade de um líquido fétido, parecido com bili, espirrasse novamente na roupa do homem mudo.

Antes que pudesse efetuar um novo golpe, Isaiah sentira uma aproximação por seu lado cego. Um braço magricela, com as peles acima do rádio penduradas, fazendo com que a ulna estivesse totalmente à mostra, agarrara o caçador pela gola de seu casaco, puxando-o com força.

Matti girara nos calcanhares, tentando golpeá-lo com sua faca. Porém, ao mesmo tempo outro errante resolvera se aproveitar da situação. Lançando-se em direção a seu rosto, o biólogo só tivera tempo de posicionar a lâmina que se encontrava em sua mão direita, cravando-a no morto-vivo por intermédio do peso da criatura que se jogara contra si.

Acuado, Isaiah não tivera forças para empurrar o cadáver, indo ao solo e caindo de costas, com o pesado errante exterminado por cima de seu corpo. Sem conseguir se mexer, o caçador notara a aproximação de mais e mais carniceiros, rondando o seu corpo como abutres ao redor de carne morta.

Tudo parecia acabado.

BLAM! BLAM!

Leah Fisher deslocara-se rapidamente, disparando duas vezes contra o carniceiro mais próximo ao rosto de Isaiah, a mandíbula já se direcionando de encontro à pele do biólogo. A pistola Taurus the Judge, escolhida por Tom, parecia lhe cair muito bem. Por ser leve a garota conseguia disparar diversas vezes seguidas sem muitas dificuldades.

A barriga já sobressaltada por conta da gravidez, perceptível em seu corpo esguio, não parecia atrapalhá-la em nenhum de seus movimentos. Os cabelos loiros amarrados em um rabo de cavalo deixavam sua visão totalmente limpa. Os olhos semicerrados, focados em seus alvos, não permitiam que ela errasse um só disparo. Ela não podia errar. Um erro ali significaria a perda de vidas.

Com a ajuda da adolescente, Matti conseguira se reerguer, tomando suas facas novamente em mãos e dando cobertura para a garota enquanto ela recarregava sua arma. Chutara uma das criaturas que tentara lhe agarrar pela roupa, cravando sua faca de caça no crânio da mesma. Em seguida, girara duas vezes, cortando a jugular de um errante, enquanto exterminava o outro por intermédio de um profundo golpe em seu olho direito.

Olhando para o bando que seguia avançando em sua direção, Isaiah sinalizara com a mão direita espalmada, cortando o ar com seu gesto, para que abortassem a missão, retornando aos portões. Fisher meneara a cabeça positivamente, disparando outras três vezes, apenas para conseguir espaço suficiente para que seguissem de volta à comunidade.

A missão era simples. Rick estivera ocupado treinando grupos de atiradores durante os últimos dois meses. Afastando-se ao máximo que podiam da comunidade, Grimes e seus homens enfiavam-se no mato, passando pelo menos duas horas por dia treinando a mira dos mais capazes.

Andrea e Tom o ajudaram com essa tarefa, enquanto Michonne passara a coordenar novos grupos de sentinelas. As rondas se tornaram mais frequentes, mais rígidas e exigindo cada vez mais dos membros do grupo. Matti sentira uma ponta de preocupação ao chegar à óbvia conclusão após analisar todos os indícios.

Grimes estava montando um exército.

O biólogo já havia sentido na pele o que um grupo armado e bem treinado podia fazer, principalmente quando sua liderança deturpava-se em ideais desvirtuados por mentes perturbadas. Não acreditava que aquele fosse o caso de Rick, mas sabia que uma guerra traria grandes consequências a todas as comunidades envolvidas, e talvez não fosse a solução derradeira para todos os problemas.

Tentara então se manter afastado, cuidando dos famintões que passaram a cercar a comunidade, atraídos por toda a barulheira dos treinamentos. Durante as últimas semanas, revezara com o grupo de Magna, deslocando-se pelas vielas mais próximas e exterminando os monstros que tentavam se aproximar dos muros.

Mas o cheiro de que algo muito estranho estava se desenrolando continuava tomando conta das narinas do caçador finlandês. Há dois dias uma equipe liderada pelo mandatário, coincidentemente o mesmo grupo que viera treinando durante todo esse tempo, se deslocara em uma missão de busca de suprimentos, sem muito dizer ao restante dos moradores.

Magna então se tornara a responsável momentânea por Alexandria, tomando as rédeas do lugar até que os demais retornassem. Fora ela quem deslocara os batedores, fazendo com que se revezassem na tarefa de exterminar os mortos vivos.

Apesar de não ser nada simpática com Matti, principalmente por conta de toda a história envolvendo James Goodwin, a mulher de esparsos cabelos castanhos, indicara que o biólogo fosse um dos responsáveis por essa tarefa. Algo que fora aceito sem nenhuma objeção.

Em seu encalço durante todo o tempo, Leah Fisher quebrara todas as regras que tentaram lhe impor, saindo nas rondas e o ajudando de maneira providencial, apesar de sua condição delicada. A condição, que fora revelada como sua gravidez, não podendo mais ser escondida assim que sua barriga começara a crescer, causara um grande choque na maioria dos moradores.

Os olhares enviesados e comentários aos sussurros pareceram fortalecer ainda mais a garota, que se agarrara a isso para se tornar mais útil ao bem comum do que nunca antes fora. Matti jamais a censurara, na verdade, sua visão a respeito dela se modificara totalmente, após sua repentina aproximação.

De uma frágil menina passara a uma jovem mulher decidida, totalmente sabedora do que quer, e disposta a ajudar sua comunidade a derrubar todas as barreiras que a impediam de se desenvolver. Sua companhia era agradável, e ela ainda era a única pessoa que não o olhava com medo ou ojeriza.

E isso só aumentava o seu respeito por ela.

— Acho que deveríamos voltar – Comentara a garota, cumprimentando Edmond que fechara o portão assim que os dois passaram – Não havia muitos... Tipo, apenas quinze ou vinte. Já enfrentamos mais do que isso!

Matti olhara para ela, tentando sorrir, mas sendo impedido por todas as cicatrizes em seu rosto.

— O que foi? – A garota sorrira brevemente, parecendo ler suas expressões – Se eu não estivesse na sua retaguarda, você já estaria morto, senhor finlandês – Troçara – E você deveria me agradecer por estar tão empolgada assim. Vamos precisar de muita força de vontade para acabar com todos esses carniceiros... – Ela agora parecera levemente preocupada – O senhor Grimes não vai querer nenhum famintão por perto quando retornar com os suprimentos!

Matti sabia que o grupo não havia partido em nenhuma missão de busca por suprimentos. Os níveis de Alexandria não estavam bons, e provavelmente uma missão desse tipo precisaria ser impetrada muito em breve, mas, o biólogo sentia que algo não estava certo. Os treinamentos, a ampliação das rondas, a escolha das pessoas. Rick estava escondendo algo, e isso já estava mais do que claro.

— Já que não está disposto a retornar... – Fisher voltara a falar – Acho que vou dar uma olhada em como estão os sentinelas... Ver se precisam de alguma coisa.

Isaiah a fitara, tocando de leve sua saliente barriga. O biólogo meneara a cabeça, tentando mostrar-se preocupado.

— Tá tudo bem, Isaiah... – Respondera de forma educada – Não precisa se preocupar comigo, vou ficar bem.

Apesar de estar se mostrando totalmente solícita, Leah comportava-se como se a todo o momento precisasse provar algo para alguém. É claro que em partes ela era movida pelo sentimento de que queria realmente ajudar Alexandria, mas parecia que havia algo a mais por trás. Havia um olhar perdido e entristecido escondido em toda aquela casca proativa e agitada.

Ela dera mais um de seus tchauzinhos enigmáticos, partindo em seguida, sem dizer mais nada. O homem mudo apenas a observara, e mesmo que pudesse, aquele não seria o melhor momento para dizer alguma coisa. Ele mais do que ninguém sabia o que era carregar um grande peso nas costas. Tudo o que fez ainda o fazia acordar sobressaltado durante as madrugadas, após pesadelos envolvendo todos os seus demônios. Todos ainda vivos em seu interior.

Limpando o sangue das lâminas de suas facas, Matti as guardara na cintura, caminhando solitariamente pelas ruas de Alexandria, rumo a uma das casas vazias. Gostava de adentrar a mesma residência que invadira outrora para assassinar Spencer Monroe. As memórias vivas, como a chama de uma fogueira, o queimava por dentro, causando uma dor maior do qualquer um de seus ferimentos.

Mas ele precisava daquilo. Era melhor do que a indiferença de uma comunidade inteira. E mesmo que a garota Fisher seguisse ao seu lado, acompanhando-o em suas missões e conversando com ele como se fossem melhores amigos, ainda não parecia real.

O biólogo sentia que o personagem em que se transformara era quem chamara a atenção da garota, e não o Isaiah-Matti verdadeiro. Se bem que, talvez esse homem já tivesse sido enterrado há algum tempo. Por mais que tentasse ressuscitá-lo, ele jamais retornaria por completo.

Não fora apenas o seu rosto que se deformara.

 

*****

 

Leah seguira andando, afastando-se de Matti que parecera ficar estacionado no meio da rua. Movida pela adrenalina, a adolescente enchera os pulmões de ar, respirando profundamente enquanto abria um sorriso, sem motivo.

Retirara sua pistola da cintura, verificando a munição. Com destreza ela a guardara, demonstrando a habilidade que desenvolvera em todos os treinamentos. Atravessara a pequena praça da comunidade, caminhando sobre o gramado enquanto observava o movimento corriqueiro do vai e vem matinal dos moradores.

Desde a saída de Tom, que partira com o grupo de Rick na grande missão de coleta, Fisher sentira-se muito mais livre. Price tentara miná-la nos últimos tempos, insistindo para que ela apenas ficasse em casa, cuidando de sua barriga que parecia não querer parar de crescer.

Após ficar claro para todos que a menina estava esperando um filho, Tom assumira a paternidade, em uma tentativa de resguardar a honra da garota, ou algo do tipo. Ele se mostrara bastante cuidadoso com ela, do seu jeito torto e bruto, mas era notável que ele se preocupava com o bem estar de Leah.

Isso não diminuíra em nada os comentários, obviamente, e muito menos o afastamento de algumas pessoas, poucas, mas o bastante para que Fisher conseguisse traçar os perfis de todos que ali viviam. Hipocrisia parecia ser algo compartilhado por muitos em Alexandria.

Ela tentara não se afetar com nada daquilo, prosseguindo com sua vida da forma mais normal que conseguira. Com a ajuda de Isaiah, desenvolvera técnicas básicas de combate corpo a corpo, o que a ajudara a melhorar ainda mais o seu desempenho contra os errantes. Ele inclusive fora quem ficara ao seu lado, guiando-a nas missões de limpeza, dando os toques necessários para que ela aprendesse a se defender sozinha.

O homem mudo, com o rosto tomado por cicatrizes e a língua arrancada à força, não era o monstro que sua aparência demonstrava. Fisher sentia pena dele, sabia – mesmo que ele não pudesse confessar – que ele guardava uma quantidade de culpa absurda dentro de si, e mesmo sem saber o que ele fizera e passara antes de chegar à zona segura, tinha total certeza de que ele era um bom homem.

Era uma pena ele não saber disso.

Hey, senhorita, aonde pensa que vai?

A voz suave de Magna cortara todos os pensamentos que distraiam sua mente. A namorada de Yumiko que se encontrava do outro lado do gramado, deslocara-se em sua direção após chamar sua atenção. Leah interrompera os passos.

— Vou ver se os sentinelas precisam de alguma coisa. – Respondera – Esse é o turno do Eric, só queria ver se...

A mulher de cabelos castanhos não permitira que ela prosseguisse.

— Não. Você vai para casa. Já fez muito por hoje, Leah... – O encontro que parecera casual, ganhara um toque de intencionalidade após a mudança de feição de Magna – O risco que você correu lá fora, enfrentando aqueles carniceiros... Eu nem sei por que permiti isso. – Ela tocara o ombro da adolescente – Descanse um pouco, está tudo sob controle, você precisa cuidar de seu filho agora.

A garota não esperava por aquilo. Estava cansada da indiferença, mas também estafada da superproteção. Sabia de todas as suas capacidades, sabia que não era nenhum peso, portanto, não precisava ser tratada como tal.

— Está tudo bem, Magna. Não precisa se preocupar comigo. – A adolescente se afastara, refutando o toque que recebera – Eu sei me cuidar muito bem, e também sei o que é melhor para o meu filho.

A líder momentânea seguia com o mesmo olhar de reprovação. O que irritava ainda mais a jovem futura mãe.

— Leah, eu estou falando sério. Você não tem que se matar para provar as pessoas que você pode...

Irritadiça, as bochechas tomadas por um tom rubro em sua pele branca, Leah Fisher interrompera o sermão de Magna, gritando em resposta.

— Não me diga o que eu não posso fazer!

Virara as costas, sem nem se dar ao trabalho de atestar a reação da mandatária substituta. Ela provavelmente arregalara os olhos em surpresa, já que sua voz não fora mais detectada pelos ouvidos de Fisher. A passos firmes, quase como trotes, a adolescente seguira para o caminho oposto que primordialmente planejara. Sem querer mais nenhuma aporrinhação, decidira seguir para casa.

Arejar as ideias a faria bem. A breve discussão lhe causara uma rápida tonteira, o que julgara ser natural, talvez o resultado de um misto de sentimentos, agravados pela gravidez, que vinha lhe causando certa confusão hormonal. Apesar de não querer admitir, sabia que um descanso, mesmo que rápido, a faria se sentir melhor.

Ela queria ser forte, e mais do que isso, queria provar a todos que era forte. Não queria ser mimada, bajulada, e tão pouco ignorada. Por isso seguiria insistindo em ser útil, ajudando em tudo o que pudesse, e enfrentando as demais “Magnas” da comunidade, que a julgavam incapaz. Às vezes a garota pensava se tal julgamento se dava por sua gravidez, ou sua natural aparente fragilidade.

De qualquer forma, vivenciar tudo aquilo diariamente era sufocante, aprisionador. Viver a adrenalina de enfrentar os errantes, algo ainda muito novo para ela, era uma fuga bem vinda para qualquer tipo de pensamento. O que a assustava também, era perceber que logo, logo sua criança nasceria, e sua vida iria mudar totalmente para sempre.

Leah não sabia se estava realmente preparada. E isso a assustava mais do que qualquer coisa.

Ao retornar para a residência que dividia com Tom e Matti, notara uma presença sentada à escada, próximo à porta de entrada. A jovem garota de cabelos castanhos, escorridos e longos, esperava por ela com o seu vazio natural nos olhos. Fazia um tempo que as duas não se encontravam.

A última vez que conversara com Enid fora após o ataque dos Salvadores, quando as duas se empenharam, juntamente a Rosita, a cuidar dos feridos na brutal invasão. A outra adolescente se fechara, isolando-se da maioria, talvez ainda em choque por conta de tudo o que presenciara. Uma escolha pessoal que Leah nunca aprovara.

— Leah... – A garota parecia apreensiva – Como você está?

Fisher a olhara por alguns segundos, encarando-a com o cenho cerrado. Pensara em mil coisas para dizer a ela, mas no fim, sabia que uma precisava da outra. Assim como haviam prometido há tempos atrás.

— Muito grávida. – Sua expressão séria fora se tornando amistosa lentamente, um sorriso já brotando em seus lábios.

Enid também tentara sorrir, mas o aparente nervosismo lhe impedira.

— Eu tentei me afastar, – Ela se levantara, ficando de pé a frente de Fisher – achei que seria melhor depois de tudo aquilo... Fiquei com medo. – Ela arrumara uma mecha de cabelo para de trás da orelha – Podemos conversar?

Leah levara uma das mãos à cintura, torturando Enid em uma pausa que durara alguns segundos. Tê-la ali seria bom, conversar com alguém que aparentemente a aceitava de forma integral, desligaria sua cabeça de toda a tensão vivida.

— É claro que sim, garota... Entra aí!

...

As duas sentaram-se a mesa. Constantemente faminta, Leah servira-se com um dos enlatados, enquanto Enid acomodara-se, preferindo não comer nada. A jovem morena ainda parecia bastante fechada, presa em uma bolha invisível. Ela parecia incomodada, desconfortável.

— De vez em quando eu ainda para pensar algo do tipo “estou batendo papo com uma amiga agora. Estamos sentadas, comendo e conversando”. – Com um garfo, Fisher abocanhara uma boa porção das frutas em calda – Ou seja, é quase certo que nada irá acontecer durante uma refeição como essa... Quando estava na estrada, passávamos longe disso.

Enid nada dissera.

— Às vezes eu penso que não devo me sentir totalmente segura. Não quero me esquecer de como o mundo era lá fora... Acho que é por isso que sair portão a fora, matando aqueles famintões tem me feito tão bem... – Ela olhara para a morena – Enid, está me ouvindo?

Os olhos da outra adolescente estavam perdidos. Ela parecia pedir socorro mesmo sem dizer uma só palavra.

— Essa não sou eu...

Ela praticamente sussurrara, voltando o olhar diretamente para a amiga.

— Eu não consigo mais conversar com as pessoas... – Prosseguira. Um desabafo já esperado por Leah – Não sei como me comportar socialmente. Ontem à noite, eu... Fico envergonhada até em falar disso... Eu não era assim Leah, eu costumava ser tagarela, amigável, divertida... Acho que eu nunca vou conseguir voltar a ser o que era.

A jovem abaixara a cabeça, soltando soluços enquanto as primeiras lágrimas começavam a escorrer.

 

*****

 

Ela sentira quando ele se levantara da cama, deixando vazio o espaço ao seu lado. Sorrateiramente ele se sentara no colchão, vestindo-se e calçando as botas, tentando não fazer barulho para não chamar sua atenção. Ela odiava aquilo, odiava a forma como ele a tratava.

Tão distante.

Não que aquele relacionamento pudesse dar em algo, mas o distanciamento excessivo a incomodava demais. Já havia experimentado boas doses disso antes do mundo virar de cabeça para baixo, e definitivamente esse tipo de atitude era algo do qual queria fugir. Pois ela sabia como a história terminaria. Era sempre igual. E ninguém sairia ganhando.

Pensou seriamente em não dizer nada, em fingir que estava dormindo, deixando tudo da mesma forma. Mas nunca fora de guardar sentimentos, aprendera isso com a vida, uma lição adquirida à duras penas, levando tanto dela que era como se o seu interior fosse apenas um buraco negro e vazio. Talvez nem fizesse diferença, mas era melhor enfrentá-lo, resolvendo tudo de uma vez.

O fim não importava mais. Só precisava acabar uma vez.

— Você vai embora assim?

Sua voz suave o tomara de sobressalto. Talvez ele esperasse por aquilo, tinha se mostrado tão esperto, um homem de mil facetas. Só ainda não havia descoberto qual daquelas máscaras continha o seu rosto verdadeiro.

Ele não a olhara, vestira a camisa como se nada demais estivesse acontecendo.

— Você já me conhece... Não deveria ser uma surpresa pra você.

Ela então erguera o tronco, cobrindo os seios desnudos com o cobertor. O dormitório era minúsculo, mal cabendo uma cama de solteiro. Em meio à escuridão, as duas penumbras se entreolharam. Mil pensamentos reverberavam pelas duas mentes.

— Sabe James... – Ela também se levantara, tomando suas roupas e passando a se vestir – Sinceramente eu acredito que ninguém aqui no Reino o conheça de verdade. – A voz austera destoava de sua aparente imagem frágil – Eu tentei me aproximar de você, juro que tentei. Mas a única coisa que ganhei em troca foram fugas no meio da madrugada.

James Goodwin respirara profundamente.

— Nada é tão fácil assim...

A mulher meneara a cabeça.

— É fácil sim... Basta querer. Eu te dou total liberdade, sempre te falei isso. – Ela aproximara o rosto – E não, não estou criando expectativas, não finja que eu venho te pressionando ou algo do tipo... Eu só quero que fale comigo. De verdade, sendo você mesmo. Se você só quer alguém para transar, basta me dizer. Mas seja sincero comigo.

— Você sabe que eu não sou esse tipo de homem. – Defendera-se – E você sabe que nada é resolvido em um estalar de dedos. As coisas precisam de tempo para se acertar. Há muitos preparativos, treinamentos. Os dias serão bastante agitados daqui para frente. Eu também tenho pensado muito sobre ir ao Hill Top...

Ela abrira um sorriso sarcástico.

— Então é isso... É ela. – Um meneio de cabeça representara toda a sua frustração – Desde que Jesus te falou sobre... Você pelo menos ia me falar sobre isso? Ou ia preencher mais uma lacuna com mentiras?

Agora fora James quem parecera indignado.

— Mas de que porra você tá falando?

Os ânimos estavam cada vez mais exaltados.

— Estamos juntos há dois meses e eu mal te conheço! – Exclamara – Eu me abri pra você, falei sobre o meu passado, confiei em você para fazer confissões que eu nunca... Todas as vezes que eu tento descobrir algo, você sempre foge, sempre arranja uma desculpa... E agora que você descobriu que ela está viva, não para de...

— O meu filho está lá! – O homem erguera-se. Seu rosto estava enfurecido, de uma forma que ela nunca havia visto anteriormente – Não fale como se soubesse de alguma coisa, pois você não sabe de porra nenhuma! Não sabe as merdas que eu precisei fazer para protegê-los! Nada é mais importante do que Susie e o meu filho!

A mulher, já vestida, caminhara em direção à porta. Após abri-la, voltara-se novamente para James Goodwin.

— Vá embora, James... E não precisa mais voltar.

O homem que há poucos segundos estivera fora de si, retornara as feições serenas de sempre. Suspirando enquanto a olhava, provavelmente após ter atestado que passara dos limites, caminhara em sua direção, os passos lentos o levando até a saída do pequeno dormitório.

— Julia, é melhor...

Ela virara o rosto, mantendo-se firme.

— Não... Não James. E a partir de agora, para você, será apenas Doutora Alves...

Algumas coisas não mudam. Para Julia Alves, o destino parecia sempre dar voltas. Não houvera como não se lembrar de seu passado, de algo que jamais deixaria de ocupar espaço em sua cabeça.

 

*****

 

Ezekiel havia acabado de colocar Shiva em sua jaula quando Grimes aparecera. O líder de Alexandria apresentava cansaço em seu rosto, possivelmente por conta da longa viagem que fizera para chegar ao Reinado. O plano traçado nos últimos meses fora seguido a risca, e a decisão de adiar um primeiro ataque parecia ter sido acertada.

Dwight estava agindo de forma lenta, coletando informações no Santuário sem correr o risco de entregar sua posição. Os melhores homens de cada comunidade, previamente treinados durante os quase sessenta dias que se passaram desde que a aliança fora firmada, deveriam se encontrar no Reino, para que todos os detalhes fossem entrelaçados, planejando assim os próximos passos a serem dados.

Tudo deveria ser feito com muito cuidado, se algo desse errado, toda uma rede estaria em risco. Centenas de pessoas a mercê de um grupo de sanguinários milicianos. Esse mal precisava ser varrido de uma vez por todas daquelas terras.

— Alguma notícia do Garden? – Questionara Grimes, aproximando-se lentamente enquanto admirava a forma como o Rei tratava sua tigresa.

Ezekiel sorrira ao notar a presença do também líder, voltando-se para ele assim que trancara a porta da jaula.

— Ainda às escuras... – Apesar de sempre expansivo e otimista, o governante do Reino já estava preocupado com a falta de notícias – Eloise não nos dá um sinal há semanas... Não sei o que houve, mas, ela não desistiria se algo realmente grave não tivesse ocorrido. Devemos esperar, o tempo ainda está ao nosso lado.

Rick tombara a cabeça levemente. A sobriedade se mostrava presente em cada músculo de seu rosto.

— E quanto a Jesus? Devemos nos preocupar por sua demora em trazer as pessoas do Hill Top?

Sempre sereno, Ezekiel meneara a cabeça.

— Não. Mas não é nenhuma surpresa atestarmos que as coisas correm bem mais devagar no Alto do Morro do que em sua comunidade. Gregory provavelmente está demandando um bom tempo para criar coragem.

— E Dwight?

Rick parecia querer um relatório completo.

— Tentando se reagrupar sem levantar suspeitas. – Respondera o rei – O conflito que se aproxima dará a ele uma boa oportunidade para arrancar a cabeça desse demônio chamado Salvadores. O que nos garantirá uma rápida finalização desse problema.

O xerife cerrara os olhos brevemente. Algo parecia incomodá-lo.

— E você tem certeza que podemos confiar nele?

Ezekiel abrira os braços.

— Depois de todo esse tempo, senhor Grimes? Sim, é claro que tenho. Se ele estivesse inclinado a nos entregar, já o teria feito. Eu realmente acredito que o nosso amigo com a cicatriz tem mais motivos para estar do nosso lado do que do lado deles. E isso basta para mim.

O xerife tivera de concordar, afinal, os argumentos levantados pelo rei eram mais do que convincentes. Estava claro que ele estava preocupado, assustado por estar realizando algo que talvez fosse grande demais, pesado demais para os seus ombros. Grimes, assim como Ezekiel carregava muitas vidas sob sua responsabilidade, e tudo isso contava bastante a partir de agora. Não era apenas a vitória diante de Negan que estava em jogo, mas sim uma nova vida, a reconstrução de uma sociedade, sem a barreira dos Salvadores para atrapalhá-los.

Comandar o seu destino resguardado apenas por seu próprio esforço. Prosperar as comunidades sem precisar explorá-las. Desenvolver sem corromper, sem precisar se esquecer de como o mundo fora um dia, ou de como as pessoas eram. Fazer melhor. Talvez o apocalipse dos caminhantes não fosse a destruição do mundo, mas sim uma chance de recomeçar. De fazer valer a pena.

Após se despedir do líder de Alexandria, Ezekiel deixara o salão onde Shiva repousava, dirigindo-se solitariamente até um local mais reservado no Reino, onde costumava utilizar o silêncio como mola propulsora de seus pensamentos. Sempre que algo remoia sua mente, era para lá que se deslocava.

Porém, assim que alcançara o referido local, notara que não estaria tão sozinho quanto outrora. Recostada em uma grade, admirando as frutas que cresciam no pomar improvisado, assim como os legumes, praticamente prontos para a colheita, Michonne não parecera notar, ou se importar, com a presença do Rei Ezekiel.

— E eis que você rapidamente encontrou o meu lugar preferido em todo o Reino! – Ele fizera questão de falar alto, queria ser notado pela bela espadachim – Era uma estufa usada em aulas de Botânica. Nós a transformamos em uma plantação. Digna de nosso esplendor!

O local era realmente belo, e aparentemente bastante promissor. As colheitas costumavam serem fartas, e além de servirem como alimento para a própria comunidade, também era uma ótima moeda de troca com o Hill Top.

— Chega desse papo furado de Rei! – A mulher o olhara com desdém – Você é só outro canalha enganando as pessoas para receber tratamento diferenciado!

A relação entre os dois havia começado com o pé esquerdo. Desde que chegara ao Reino, Michonne se mostrara bastante incomodada com a forma como as coisas caminhavam na comunidade. Ezekiel percebera isso logo de cara, notando também todo o esforço que ela parecia fazer para afastar as pessoas, criando uma casca sobre si mesma, como se julgasse que a solidão era o melhor caminho.

Ele sabia que não era. E sabia que no fundo ela não era tão indócil quanto parecia.

— Sei que a principal regra da enrolação é não enrolar um enrolador. – Ezekiel posicionara-se ao lado da portadora da katana, apoiando-se na grade e passando a observar a plantação enquanto seguia falando – Eu vi como segura sua espada. Sem postura e precisão. Você aprendeu como usar, sem dúvidas, mas nunca foi realmente treinada... Você a usa como se estivesse fazendo esgrima.

— Você finge ser samurai da mesma forma que eu finjo ser Rei.

Michonne passara a encará-lo. Sem nada dizer, ela mantivera o olhar cauteloso e intimidador.

— As pessoas querem alguém para guiá-las – O Rei dirigira os olhos para o céu estrelado – Isso faz com que se sintam seguras, e pessoas seguras se tornam mais úteis, menos perigosas e mais produtivas... Então aparece um cara com um tigre e logo os boatos se espalham...

Ele abrira um breve sorriso, estava totalmente desmontado da imagem excêntrica que gostava tanto de exibir.

— Falavam que eu havia encontrado-a e no mato e lutado com ela durante dias até que a transformasse em minha mascote... Quem sou eu para cortar a ilusão deles? O que veio a seguir é o que você já viu. Eles me tratam literalmente como se eu fosse um rei. Eu não poderia tirar isso deles. Eles precisam disso...

Ezekiel fechara os olhos, estava sério. Lembrara-se de um momento marcante e doloroso de sua trajetória.

— Shiva sofreu um acidente. – Retomara – Caiu no buraco que a separava de seus tratadores. Os veterinários estavam a caminho, mas eu a vi com a perna arrebentada lá em baixo... Ela ia sangrar até a morte. – Ele abaixara a cabeça – Quando eu desci, a pobrezinha achou que era eu que estava causando toda aquela dor... Ela arrancou minhas tripas para fora, mas não antes que eu conseguisse amarrar minha camisa em sua perna fraturada.

O rei erguera a camisa, mostrando três enormes cicatrizes em seu abdome. As marcas do rasgo que a pata da tigresa lhe causara, passavam de trinta centímetros.

Michonne parecera espantar-se, abrindo um pouco a guarda enquanto ouvia as histórias de Ezekiel. O mandatário então seguira.

— Eu consegui salvar a vida dela. – Um sorriso se abrira em seu rosto – Eu era o zelador do zoológico. Eu estava lá quando Shiva nasceu, a segurei no colo quando ela ainda era do tamanho de um gatinho.

— Eu sabia de todo os riscos, mas tinha que fazer algo. No final de tudo eu sobrevivi... E depois disso ela nunca mais sequer mostrou os dentes para mim. Era como se ela estivesse agradecida. – Ele balançara a cabeça lateralmente – Eu sei que não é nada prático manter um tigre. Ela come tanto quanto dez homens. E pior, ela pode se soltar daquela corrente facilmente... Ou simplesmente arrancar o meu braço. Mas ela não o faz.

Ele então olhara diretamente para a samurai, que não se mostrava mais tão arredia.

— Eu ando com ela na corrente desde que ela era um filhote... Naquela época isso a detinha, e ela pensa que ainda a detém... De qualquer forma, felinos são imprevisíveis. – O rei sentia-se aliviado, nunca havia encontrado espaço em meio a toda a personalidade que criara, para se abrir daquela forma.

— A questão é que eu perdi muito quando tudo isso começou... E muito rapidamente as pessoas que eu amava se foram. – Ele respirara profundamente – Quando eu consegui chegar ao zoológico, ela era um dos últimos animais restantes. Estava encurralada, morrendo de fome, sozinha... Assim como eu.

Novamente o seu rosto se fechara.

— Na verdade esse bichano é a única coisa que amo que o mundo não me tirou. – Seus orbes retornaram a fitar as estrelas – Ela me protegeu, me ajudou a chegar até aqui... Me ensinou o respeito e o medo necessário para sobreviver nessa nova realidade.

Muito mais aliviado, Ezekiel sentira o seu rosto se iluminar outra vez.

— Eu também atuava em um teatro comunitário. – Admitira, admirando agora os negros olhos da espadachim – Bancar o Rei Ezekiel não é novidade para mim. Mas meu nome é Ezekiel mesmo, essa parte é totalmente verdadeira.

Michonne desviara o olhar por alguns segundos, esboçando abrir um sorriso.

— Eu não deveria estar falando tudo isso a você. – Ezekiel tocara o peito com a palma da mão direita – Mas de alguma forma você me inspira confiança. Deve ter algo a ver com o quão bela você é.

Finalmente fora possível arrancar um sorriso da quase instransponível samurai.

— Bela?

O rei confirmara em um aceno de cabeça.

— Incrivelmente bela!

Ela então apoiara as costas na grande, ficando frente a frente com o ex-zelador. Estava claramente mais confortável.

— E esse é você de verdade falando? – Indagara.

— O mais verdadeiro possível... Mas mantenha isso apenas entre nós, tudo bem? – Respondera.

Com uma piscadela, o Rei finalizara a conversa, sentindo que havia ultrapassado incontáveis barreiras naquela noite. Ele via algo de especial em Michonne, algo que a diferenciava de todas as demais mulheres com as quais já havia se deparado. Ela parecia ser única, e sua força interna lhe trazia um brilho que parecia transcendê-la.

Uma luz que ele percebera estar totalmente disposto a experimentar.

 

*****

 

Os vinte homens prometidos por Jesus começavam a embarcar no velho ônibus que, como combinado, os levaria até o Reino. Treinando sem chamar a atenção dos demais moradores durante os últimos sessenta dias, os soldados agora se organizavam para partir, observados por olhares apreensivos daqueles que ficariam.

O barbudo organizava as entradas no veículo, verificando se todos estavam munindo-se do necessário para a viagem. Kal, o lanceiro havaiano e braço direito de Jesus, ajudava-o nessa tarefa.

— Ei, eu quero ir com vocês!

Eduardo, o também lanceiro e melhor amigo de Kal, correra na direção dos dois com uma mochila nas costas. Abrira os braços, indignado por não ter sido selecionado para a ida ao Reino.

— E quem vai proteger os muros enquanto estivermos fora?

O havaiano olhara para o brasileiro, que seguia insatisfeito.

— Kal, o que é isso, cara? – Ele meneara a cabeça, sem entender os motivos de estar sendo deixado para trás – Eu quero ajudar. Você sabe que eu posso ajudar!

Antevendo uma discussão entre os dois amigos, Jesus intrometera-se, olhando seriamente para Eduardo.

— Kal está sendo gente boa com você. Essa missão não será nada fácil, apenas os mais aptos foram selecionados. E desculpe Eduardo, você não é um deles.

O lanceiro abaixara a cabeça, cobrindo-a com o capuz de seu casaco e dando as costas para o grupo que estava prestes a partir. Sabendo que não podia perder tempo com sentimentalismos, Jesus seguira ordenando o seu pessoal.

— Terminem de carregar! – Ordenara o diplomata – Teremos uma longa viagem pela frente!

Ao largo, Gregory observava a movimentação de todas aquelas pessoas, parado como uma das colunas dos muros, as mãos nos bolsos e a expressão contendo um misto de espanto e alívio. Jesus sabia que precisava falar com ele, não que isso fosse vital para o que viria, principalmente pelo fato do pretenso líder estar se mostrando cada vez mais passivo. Mas havia algumas coisas que precisavam ser ditas.

— Eu ainda não sei o que pensar...

O barbudo aproximara-se do bonachão, que com os olhos arregalados e vazios de vida, mirava todos aqueles moradores seguindo uma outra voz. Uma que os levaria de fato a algum lugar. Uma que enfim podia os libertar do mal que Gregory, por seu medo, fingira nunca existir.

— Bom Gregory... – Dissera Paul – Na situação atual não faz muita diferença o que você acha. Mesmo se tudo der errado, você permanecerá seguro, e idem para o Hill Top. É claro, se você não fizer nenhuma besteira.

O homem arqueara uma sobrancelha, sem entender a quê Jesus se referia.

— Como assim?

— Estou partindo com os vinte homens e mulheres mais bem preparados que possuímos. Não precisa contar nada a ninguém se não quiser. Basta fingir que eu não te comuniquei sobre a real intenção dessa missão. Finja que desertamos, ou qualquer outra besteira que queira contar.

Gregory levara uma das mãos ao queixo, passando de forma estúpida a pensar sobre o que o diplomata acabara de lhe sugerir.

— Certo... Isso é realmente uma boa ideia! – Concluíra – É certamente a forma mais segura de levar isso adiante! Não há a necessidade de pôr ninguém em risco!

Paul Monroe balançara a cabeça em negativa.

— É realmente muito bom saber o quanto você está preocupado com o nosso pessoal! – Ironizara.

— O que você está querendo dizer? – O velho incivil o olhara com indignação.

Jesus não recuara, havia chegado ao seu limite com o covarde mandatário.

— Se você não tivesse se acovardado tantas vezes, provavelmente não estaríamos nessa situação! Já parou para pensar nisso?

— Não confunda minha cautela com covardia! – Exclamara Gregory – Eu não tenho medo de Negan e nem de ninguém! Eu levei uma facada por essas pessoas! – O homem levara as mãos aos botões de sua camisa, sinalizando que a abriria – Você quer ver a minha cicatriz? Onde está a sua, Jesus? Hein? Onde está a sua cicatriz?

Paul bufara.

— Você só pode estar de sacanagem...

— É por minha causa que todos estão vivos até hoje! – Gregory apontara o indicador direito para o rosto de Monroe, exaltadíssimo – Eu mantive Negan na linha! Eu! Não há como você negar isso!

Jesus dera as costas, cansado de todo o teatro narcisista daquele sujeito poltrão.

— Vamos torcer para que isso funcione... – Dissera Jesus enquanto caminhava – Mas ganhando ou perdendo, essas suas bravatas não irão convencer mais ninguém.

...

Glenn observava toda aquela movimentação. Sua parte no trato havia sido cumprida. Encobertara Earl Sutton, o ferreiro, enquanto o mesmo produzia longe da visão de todos, novas lanças, facas e armas escamoteáveis que pudessem ser levadas para os treinamentos. Ajudara também a selecionar os mais preparados e dispostos, aqueles que poderiam efetivamente ajudar a aliança na guerra que batia as suas portas.

Mantivera tudo em segredo, passara valiosas informações para Kal, e não permitira que Gregory atrapalhasse de nenhuma maneira a missão. Também atestara que nenhuma informação saíra dos muros do Hill Top, o que significava que Negan permanecia às escuras quanto às forças que se uniam contra ele.

E não havia melhor notícia que pudesse chegar aos ouvidos de Glenn Rhee. Saber que poderia haver um final feliz compensava qualquer trabalho duro. No momento, todo esforço valia a pena.

Nos últimos dois meses tratara de encurtar a distância criada com sua filha, aproximando-se dela, permitindo que os dois vivenciassem algo que apenas lhes traria paz. O asiático precisava de sua filha, de sua âncora, de sua garotinha sorridente que ali, no Hill Top, parecia finalmente ter encontrado o melhor lugar para crescer e florescer.

E aquele era apenas o começo de uma nova vida. Uma vida com novas referências, boas referências. Mas Glenn também sabia que as nuvens negras ainda não haviam se dissipado, e a plenitude de sua felicidade só ocorreria quando a rede se livrasse dos Salvadores. Talvez seu coração só voltasse a se iluminar totalmente quando Negan estivesse morto.

Abrira um sorriso ao ver Sophia lhe lançar um aceno, enquanto caminhava juntamente a A’ishah, a filha mais velha de Ibrahim. O muçulmano estava ao seu lado, também observando a grande movimentação das pessoas que se dirigiam ao ônibus. O asiático passara a confiar nele, e dessa relação mútua brotara uma sincera amizade.

Os dois viram também Gregory se deslocar em direção a Barrington House, bufando em ódio com o cenho totalmente carrancudo. Os passos pesados do velho homem denotavam que algo havia aborrecido-o.

— O que será que aconteceu? – Comentara Rhee, as mãos nos bolsos.

— Provavelmente se olhou no espelho e se assustou! – Troçara Ibrahim, o sotaque ainda mais carregado – Ele é só um idiota que só pensa em si mesmo. Acho que apenas o toleram por conta de ninguém mais querer comandar essas pessoas.

Glenn concordara.

— Esse cara me assusta. Não consigo confiar nele de forma alguma... Susie me contou que passou outro dia no consultório do Doutor Carson, para uns exames de rotina. Ele apareceu do nada, invadindo o procedimento... Ela disse que ficou obvio que ele só fez aquilo para espiá-la. – Uma breve pausa se dera. Com a mão direita, Rhee arrumara os crescidos cabelos – Eu só não entendo uma coisa... Como o deixam liderar a comunidade, se todos sabem que ele só um idiota?

Ibrahim abrira um sorriso.

— Não seja bobo, Glenn... Ele é só um idiota, não lidera nada!

 

*****

 

Depois de dias trancafiada em sua cabana, Lizzy Penn finalmente decidira que tomaria uma atitude. Imersa em todo o álcool que conseguira reunir, erguera-se com dificuldades do gelado piso de madeira, onde um emaranhando de cacos de vidro e lixo se acumulava ao seu redor.

Estava tonta, a cabeça praticamente explodindo em uma dor que a consumia por inteira. Estava difícil caminhar, estava difícil até mesmo respirar. O cheiro acre do cômodo onde se encontrava entrara em contato com suas narinas, fazendo com que quase vomitasse ali mesmo. Um longo banho então se seguira, expurgando todas as marcas dos últimos acontecimentos. Com exceção, é claro, daquelas que jamais poderiam ser apagadas.

Vestira-se totalmente de negro, relembrando os dias de glória em que subira aos mais vagabundos palcos de Oakland, com sua versão mais suja e sem talento do melhor do punk britânico. Era incrível como sua vida havia mudado.

Retirara de cima de uma mesinha a carta que recebera, o objeto pelo qual ficara responsável, algo que agora a movia em finalmente tirar o traseiro daquele buraco asqueroso em que se enfiara. Não podia se esconder lá a vida inteira, não era mais o que queria para si. Estava mudada, segura, suas raízes eram mais firmes agora.

Colocara poucas provisões em uma mochila, despedindo-se das únicas três pessoas que pareciam realmente se importar com ela. Com autorização de Eloise, assumira a direção da quatro por quatro mais casca grossa do Garden, acelerando assim que os portões foram abertos. O silêncio ainda imperava na comunidade, as cicatrizes ainda estavam longe de sarar.

A estrada solitária fora atravessada sem dificuldades. Tentara ouvir alguma música, catando no porta-luvas algumas das fitas cassete de Flood, mas a música country dos anos sessenta não conseguiria modificar o seu estado de espírito. O silêncio ainda era o seu melhor amigo. Ele juntamente com as vozes que jamais abandonaram sua cabeça.

Haviam dado uma pausa, mas nunca a deixado por completo.

Nem vira o tempo passar. A areia levantada pelos pneus parecia sempre igual, assim como a paisagem sépia observada nos retrovisores. Era como se estivesse diante de uma pintura, observando a mesma imagem incontáveis vezes. Olhara algumas vezes para o envelope amarelado e amassado. Sentira o coração apertar no peito. Seria forte, sabia disso, mas fraquejar também parecia fazer parte do processo.

Chegara então finalmente ao seu destino, sendo recepcionada por uma mulher de cabelos castanhos, que a fuzilara com inúmeras perguntas. Respondera a todas sem pestanejar, e conseguira então a permissão para adentrar ao lugar.

Fora guiada por um homem de meia idade, tagarela, um peão que deveria ajudar a máquina a seguir funcionando. Como em uma colmeia, toda comunidade necessitava de alguns zangões acéfalos. Ela sabia muito bem como as coisas funcionavam. Pedira privacidade e fora atendida, apesar de ter ficado claro que estava sendo observada. Isso era o que menos importava no momento. Trivial.

Cerrando o punho, batera três vezes na porta da grande casa. Uma verdadeira mansão. Algo tão absurdo se comparado a sua realidade, e a da maioria das pessoas naquela droga de apocalipse, que sentira o seu sangue ferver. Não lhe parecia justo.

A porta então fora aberta. E dela saíra justamente quem Penn procurava.

— Olá... – A saudação fora vazia, apenas uma maneira de iniciar a interação – Você é Leah Fisher?

A garota loira parecia um tanto confusa. Já era de se esperar. Penn não imaginava que ela fosse tão jovem assim.

— Sim. – Respondera.

Ela notara a já saliente gravidez da menina, assim como a pistola presa a sua cintura.

— Me chamo Elizabeth... Lizzy. Precisamos conversar... – A ex-vocalista retirara o envelope dobrado de seu bolso – Vim entregar isso a você.

A adolescente recebera a carta em mãos, ainda sem entender o que a visita inesperada daquela mulher desconhecida significava.

— Des... Vincent – Lizzy corrigira-se – me pediu para entregar isso a você. – Ela respirara profundamente – Ele está morto, Leah.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam?

Algo conseguiu chocá-los, ou surpreendê-los?

Quero saber todas as suas opiniões!

A história caminhou bastante nesse episódio, e após esse breve salto temporal, vimos que finalmente os primeiros passos para a guerra estão sendo dados... Já estou empolgado para escrever o próximo capítulo, e de antemão já posso adiantar duas coisas: teremos Vincent Hall, em um emocionante flashback, e mais uma bombástica aparição de Negan!

Aguardem...

Moi moi.



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