All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 27
Through the Looking Glass


Notas iniciais do capítulo

Não, eu não estava morto...

E não, eu também não havia abandonado a fic... Apenas digamos que problemas apareceram, se estabeleceram, mas logo em seguida foram superados...

Queria agradecer a minha grande amiga Menta, que ainda insiste em permanecer por aqui... Muito obrigado por todo o apoio e paciência, pois eu sei o quanto sou difícil de lidar...

Capítulo focado no personagem Tom, que após um período um tanto apagado, voltará a sua essência primordial... O capítulo em si é cheio de revelações, e particularmente diz muito a meu respeito, pois está repleto de símbolos que representam muito o que estou passando...

Vamos lá então, sem mais delongas...

Boa leitura para aquele que ainda resistiram!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/602031/chapter/27

Tom erguera-se da cama. Era mais fácil abotoar a calça jeans dessa maneira.

O homem que perdera o braço esquerdo pra a lâmina de Michonne, precisara se acostumar a realizar os atos mais simples do dia-a-dia com apenas um dos membros superiores, e aparentemente, ele estava se saindo bem.

Price sempre fora um sujeito forte, e não apenas fisicamente. Sua mente acabara acostumando-se com o horror mais rapidamente do que a de muitos sobreviventes, talvez até por isso tenha logo despontado para o posto de liderança quando guiava seu antigo comboio, ainda nos primórdios do novo mundo.

Adaptação sempre fora uma palavra presente em seu dicionário, e nas atuais circunstâncias não seria diferente. Essa era a única lei vigente no mundo cão em que aqueles pobres diabos residiam.

Quem não se adaptar, morre.

O quarto estava fechado, praticamente às escuras. Não fossem os singelos raios solares que atravessavam a cortina, o breu provavelmente tomaria conta por completo do cômodo. A casa que já recebera Amanda, Doc Hall, Susie, Jacob, Goodwin, Isaiah... Agora contentava-se com apenas dois residentes.

Amanda acabara falecendo na primeira grande invasão impetrada a Alexandria, quando centenas de mortos vivos avançaram muro a dentro, tentando transformar a todos que ali se encontravam, em seu próximo banquete.

Vincent desaparecera, e provavelmente nunca mais voltaria a ser visto. Seguindo sem recursos e com todas as suas dificuldades de locomoção, era provável que já tivesse virado jantar de errantes na mesma madrugada em que resolvera fugir.

Goodwin fora banido, expulso de Alexandria após enlouquecer e tentar um motim contra a liderança de Rick Grimes, além, é claro, de assassinar Specer, Nicholas e ferir gravemente Magna. Mais um que provavelmente nunca mais cruzaria os caminhos de Tom Price.

Susie e Jacob, desiludidos após a descoberta de todos os atos horríveis praticados por James Goodwin, decidiram partir para um novo recomeço, dessa vez seguindo os passos de Maggie e Glenn, que acreditavam que o Hill Top poderia representar-lhes um futuro pleno e seguro. Pelo pouco que sabia a respeito da nova comunidade, era bem provável que também nunca mais se encontrasse com a jovem mãe que por tanto tempo sobrevivera a seu lado.

Isaiah, o estranho homem que até pouco tempo era o braço direito de Goodwin, escolhera trair o amigo em prol de sua própria segurança. Perdoado por Rick Grimes, o homem mudo permanecera na comunidade, mudando-se de residência, esgueirando-se entre os muros e passando praticamente despercebido ante o olhar da maioria dos moradores.

Ao lado de Tom restara Leah, a meiga menina de personalidade difusa, que se aproximara do ex-soldador após os desentendimentos que tivera com o antigo médico de Alexandria. Sentindo-se desamparada, acabou encontrando afago nos braços do solitário turrão, que sentia-se ainda mais só após a morte de Amanda, uma das melhores pessoas que já tivera o prazer de conhecer.

Apesar de não ter o dom de demonstrar os sentimentos, e de até certo modo gostar de passar a imagem de “macho alfa impávido”, Price passara por um reboliço emocional após acordar do coma, algumas semanas depois de escapar por pouco da morte, quando o seu braço esquerdo fora mordido por um errante.

Vivera o luto de Amanda de forma tardia, mal conseguindo mensurar o que havia acontecido, e pior, sentindo-se culpado por sua impotência em não poder fazer nada para salvá-la. Se havia alguém ali que merecia prosseguir com vida, que merecia vencer o cruel mundo mais uma vez, esse alguém era sua inseparável companheira.

O baque fora grande, porém, como fora preciso fazer diversas vezes nos últimos oitocentos dias, Tom girara a chave, mudando o foco e tentando encontrar em sua fodida realidade, alguma nova motivação para prosseguir.

Não era possível afirmar ao certo se o que havia encontrado poderia ser nomeado como uma nova motivação, mas Tom precisava admitir que a companhia de Leah Fisher lhe fazia bem a cada dia. Não era como se ele realmente sentisse algo pela garota, na verdade, apesar de não admitir, ela não passava de um cajado, um apoio para que a miserável realidade não fosse tão miserável assim.

Principalmente após as últimas noites.

Principalmente após a fuga de Doc Hall.

Já fazia um bom tempo desde que Price sentira um corpo feminino envolvendo o seu pela última vez. Isso ocorrera a mais meses do que se podia contar nos dedos, uma época em que os mortos não erguiam-se das suas tumbas, e a vida aparentemente seguia um rumo fixo e até certo ponto previsível.

Ele não se culpava, não tinha tempo para isso. Uma sensação boa era apenas uma sensação boa em sua mente. Price não precisava remoer sentimentos, muito menos tentar entendê-los. Ele apenas precisava, necessitava, senti-los, utilizando-se de toda a bonança até que ela se esvaísse.

Era exatamente o que estava ocorrendo em sua relação com a adolescente Fisher. E ele sabia que apesar de jovem, Leah também aprendera a pensar de forma semelhante.

Era assim que as coisas seriam. Era assim que Price pretendia prosseguir.

Uma realidade sem perguntas é uma realidade sem dúvidas. Talvez fosse melhor assim.

— Foi bom, sabia?

Uma voz feminina meiga atraíra a atenção de Tom, que afivelava o cinto enquanto preparava-se para vestir a camisa. Ao olhar para trás, deparara-se com a imagem de Leah, jogada sobre a cama, totalmente esticada. O corpo desnudo era recoberto pelos lençóis, mas a garota não parecia ter pudores na frente do corpulento sujeito.

Price apenas grunhira em resposta, não parecendo se importar muito com a explanação da menina, que esticara os braços, espreguiçando-se longamente.

— Quero dizer... – Prosseguiu ela, deitando-se de bruços, balançando as pernas como uma criança imperativa, enquanto seguia encarando o metalúrgico – Foi mais intenso do que as minhas outras vezes... Um pouco mais dolorido...

— Eu machuquei você? – Tom virara o rosto rapidamente, encarando a menina por breves segundos.

Ela meneou a cabeça em desdém, prosseguindo em seguida.

— Não é esse o ponto... O que eu quis dizer é que com Vincent era mais suave, mais carinhoso... Com você foi mais rude, mais enérgico... Fora tudo aquilo que você fez com a língua!

Sem olha para Fisher, Tom exprimira um vitorioso sorriso, enquanto esforçava-se para sozinho, abotoar a camisa azul marinho.

— Sem falar que não teve todo aquele sentimento de culpa quando terminamos... – Leah arqueara uma das sobrancelhas, parecia se transportar momentaneamente para outra realidade – Vincent se sentia culpado, e isso acabava me fazendo mal também... Era como se no fim das contas, ele não quisesse estar ali...

Price erguera-se da cama, ainda de costas para a garota. Após arrumar a gola de sua camisa, dera dois passos para a frente, retirando de cima do criado mudo, sua pistola automática. Após destravá-la, o homem habilmente verificara o pente antes de repousá-la no coldre em sua cintura. Todos os movimentos precisos realizados apenas com uma das mãos.

— Ele queria sim... – A potente voz de Tom ecoava com serenidade – Só não tinha colhões o bastante para admitir!

A adolescente nada dissera, provavelmente não querendo estimular qualquer sentimento odioso que Price pudesse estar nutrindo por Hall. Os dois eram parceiros antes de Alexandria, falavam a mesma língua. Tom era a força e Vincent o cérebro. Suas contribuições foram determinantes para que o grupo pudesse avançar até onde chegou.

Mas quando Tom despertou naquela fatídica madrugada, caminhando cambaleante até a sala da enfermaria, após mais de um mês em um profundo coma, não esperava se deparar com o que vira. Uma imagem que mexeu completamente com sua cabeça.

Price passara a ver os dois de formas diferentes, e de médico, Hall ganhara o atributo de monstro.

Tom não conseguira conceber a princípio como Hall poderia ter se envolvido tão profundamente com uma menina de quatorze anos, afinal de contas, aquilo era não só errado como algo inescrupuloso, sujo. O rompimento por completo da amizade se dera quando Vincent, tomado por um ciúme sem sentido, insinuara que o metalúrgico pudesse estar com segundas intenções em sua repentina aproximação com a jovem Fisher.

Porém, não tardara para que o ex-soldador conseguisse compreender na prática o que tanto atraíra o cirurgião de Alexandria, o que fizera o recatado médico largar o seu senso de moral para se aventurar em algo tão perigoso e proibido.

Leah era ardilosa, e apesar de extremamente jovem, a garota possuía um estoque de artimanhas sem fim. Não era como se ela fosse uma vadia qualquer louca por sexo, ela apenas havia desenvolvido uma nova forma de enxergar o mundo, de encarar a nova realidade. Tom não a julgaria por querer viver, por querer experimentar, por também ansiar novas motivações para seguir vivendo. Afinal de contas, dadas as devidas proporções, era justamente o que Price também buscava.

Pouco a pouco as barreiras foram sendo rompidas, e após a fuga de Hall, não houvera mais forças no corpulento homem que o impedissem de também cometer um ato inescrupuloso e sujo, na mesma medida que um dia condenara.

— Eu... – Após alguns segundos de silêncio, Leah asseverara novamente – Eu estou grávida, Tom.

Apesar da notícia já ter chegado anteriormente aos seus ouvidos, um arrepio involuntário subira pela coluna de Price ao ouvir tal frase diretamente da fonte. Ele estava aguardando o momento certo para explanar sobre o assunto, pois sabia que havia muito o que ser dito. De qualquer forma, apesar de inesperado, o momento não parecia ser aquele.

— Susie me contou antes de sair... – Tom tentara manter-se impávido, como se nada do que fora dito tivesse afetado-o – Você já confirmou, já tem certeza?

A garota respirou fundo. O ar jocoso já havia abandonado o recinto. Sentando na cama e estendendo as pernas, Fisher voltara a falar.

— Não, mas... Maggie disse que é o mais provável... Ela me perguntou se eu ainda era virgem e, bom, eu tive que contar tudo a ela... Foi ela que me examinou quando eu passei mal, e ela entende dessas coisas, o pai era médico... – Com a mão esquerda, Fisher jogara os bagunçados cabelos para trás, deixando o rosto totalmente a mostra – Ela me disse para ir ver a Rosita, já que agora é ela quem cuida da enfermaria, mas eu falei que...

Tom virara-se de súbito, o rosto carregava uma expressão fechada.

— Você vai! – Sua voz altiva parecera agressiva a primeira vista – Maggie não está mais aqui, nem Susie... Precisamos encarar as coisas, sejam elas quais forem! Você verá Rosita amanhã, sem reclamações!

Fisher engolira a seco, aparentando estar um pouco assustada. Tom já havia perdido o filtro há algum tempo, portanto, era difícil para ele identificar certos limiares. Não tinha mais paciência para reticência, para medir as ações. Quando precisava dizer algo, as palavras simplesmente deslizavam por seus lábios.

Price então dera às costas, caminhando em direção à porta do quarto, pronto para mais uma de suas rondas matinais. Matti já deveria estar esperando-o, e apesar do clima no cômodo ter ficado pesado, o sentinela sabia que tinha trabalho a fazer. Tom gostava de otimizar o seu tempo, e sentia que aquele não era o momento ideal para discutir sobre questões tão delicadas.

Podia parecer que ele estava empurrando para baixo do tapete, mas era apenas a sua forma de enxergar as coisas. E assim ele seguiria... Como sempre fizera.

— Tom... – Antes que ele pudesse passar pela porta, Leah chamara sua atenção.

O homem estacionara, sem encará-la, aguardando que a mesma se pronunciasse.

— Eu ainda o amo... Eu ainda amo o Vincent...

Price permanecera estático.

— Não se preocupe loirinha... Eu sei muito bem separar as coisas.

O homem então fechou a porta, deixando o recinto e descendo as escadas da casa, rumo aos portões de Alexandria.

Não havia como saber se a frase da garota fora pronunciada com o intuito de atingi-lo de alguma maneira, provocando sua rixa com o falido médico. Se essa fora a sua intenção, bom, digamos que em partes talvez ela tenha conseguido o que queria.

Tom não amava Leah, não nutria o mesmo carinho que parecia existir entre a menina e Doc Hall, mas obviamente se importava com ela, e de certo modo, sabia o quanto ela era importante para que ele mesmo se sentisse vivo.

Por isso a citação à Hall o incomodara em partes, afinal, ele não achara de todo ruim o desaparecimento de Vincent, pois talvez assim, Fisher pudesse finalmente caminhar com as próprias pernas, deixando para trás o fardo que era sua difícil e tempestuosa relação com Hall. Dizer em alto e bom tom que ela ainda o amava, era o mesmo que dizer que o cirurgião ainda estava presente, de pé no quarto, rindo da hipocrisia de Tom Price.

Há fantasmas dos quais não conseguimos nos livrar, por mais que tentemos. Talvez esse fosse o de Tom.

Seguindo pelas ruas da comunidade, Price mantinha o olhar perdido, ainda pensando em tudo o que se sucedera, e em tudo o que ainda viria a ocorrer. O futuro, obviamente, era incerto, mas algumas conjecturas tornaram-se impossíveis de não serem levantadas.

A loirinha estava grávida, isso era um fato, um imensurável problema que se desenvolvia a cada dia no útero da garota. A menina possuía apenas quatorze anos, e mesmo que já tivesse passado por experiências o bastante para duas vidas completas, não havia como se descartar que seu organismo poderia estar despreparado para uma gestação. E no caso de uma gravidez de risco, não haveria muito o que se fazer para tentar diminuir os danos.

Vincent não estava mais ali, o miserável havia fugido com o rabo entre as pernas, como se já tivesse previsto o que ocorreria à menina que deflorara por diversas vezes. Ele não só era o pai da criança, que deveria estar ali de prontidão para apoiar a jovem, como também era um treinado médico para as mais diversas situações. Sua experiência em obstetrícia seria essencial para que duas vidas tão importantes não fossem perdidas.

Você condenou as duas, Doc... Você as matou, seu desgraçado!

Como ele lidaria com isso? Como Alexandria encararia isso?

Tom não conseguia encontrar uma solução, não importava o quanto espremesse o próprio cérebro, nada parecia bom o bastante para contornar algo tão complexo.

Além de todas as dúvidas que praticamente o enlouqueciam, outras começam a surgir. A segurança da comunidade estava comprometida, pois além da visita de Grimes ao Hill Top estar demorando mais que o habitual, Heath e Abraham não foram mais vistos desde que foram enviados pelo mandatário a uma missão ainda não explicada.

O desaparecimento de dois dos mais importantes membros ativos de Alexandria, causara um medo inominável aos demais moradores, medo esse que passara a crescer ainda mais quando os boatos sobre os Salvadores passaram a correr pelas vielas, tão logo o xerife revelara a todos sobre o incidente na estrada, pouco antes do julgamento de Goodwin.

A utópica comunidade definitivamente não estava preparada para qualquer tipo de ameaça, vide o quanto as pessoas passaram a temer as próprias sombras apenas com a ideia de que um grupo de mercenários estaria subjulgando outros grupos de sobreviventes. Para a maioria deles, principalmente os opositores ao regime de Rick, era apenas questão de tempo para que Alexandria se tornasse o espelho do Alto do Morro.

As palavras do policial não pareciam ter conquistado a todos, e o seu discurso de que algumas vidas deveriam ser postas em risco não fora lá muito inteligente. Tom de fato se importava com menos da metade daqueles que vivam ali, mas era inteligente o bastante para saber que a lei de “sobrevivência em números” era a mais eficaz em tempos tão difíceis como aqueles.

As nuvens negras que cada vez mais se ampliavam ao redor de Alexandria, eram não só o sinal de que tempestades estariam por vir, mas também de que uma época obscura se aproximava. Um arrepio subia pela espinha de Price, que sentia que não haveria mais comemorações, eventos nas praças, ou motivos para sorrir pelos próximos meses.

Os sinais estavam na mesa, bastava saber interpretá-los.

Edmond, um homem de meia idade que vivia sozinho em Alexandria desde que perdera a mulher, fora enviado por Michonne para substituir Tom na tarefa de cuidar dos portões, para que o próprio metalúrgico pudesse seguir em sua ronda. A espadachim já havia iniciado o trabalho de realocação das funções, e mesmo com a falta de homens, tudo parecia estar sob controle.

Com um sorriso no rosto, o homem caucasiano, portanto uma velha pistola na cintura, destrancou o portão, puxando-o com força. Após um breve aceno de cabeça, Price saíra, caminhando alguns poucos metros antes de ouvir o ranger do metal, enquanto o portal era cerrado.

Fora inevitável não se recordar de quando estivera frente a frente com a morte, com Amanda a seu lado, encarando uma verdadeira horda de mortos vivos. Price estava pronto para morrer, na verdade, ele tinha certeza que não viveria para ver o novo dia nascer.

Inacreditavelmente, parafraseando Vincent Hall – o que lhe causara um grande incômodo interno – “o universo parece ter um incompreensível senso de humor”, pois preferira poupar sua vida, retirando a de sua amiga da forma mais estúpida possível, como se toda a caminhada da forte mulher, não tivesse valido de absolutamente nada.

Onde eu fui parar... Olha quanta merda aconteceu...

Seguindo os próprios passos, dirigiu-se até a mesma curva que fizera ao lado de Abraham, quando o bigodudo, juntamente a seu grupo, o ajudara a enfrentar todos os carniceiros que tentavam adentrar a comunidade.

Definitivamente, toda a nostalgia pela qual estava passando, não estava lhe fazendo bem. Pois mesmo sabendo que tinha por obrigação superar todas as tragédias para que o mundo não o engolisse, assim como fizera com tantos outros, tocar em regiões ainda tão machucadas, só fazia com que a hemorragia se ampliasse. E isso sim, poderia representar o fim de seu trajeto.

Após mais alguns poucos metros em que tentara acima de tudo esvaziar sua mente, Price dirigira-se ao local pré-combinado com o seu parceiro de ronda. Sentado sobre o solo, recostado em uma das enormes placas de metal que formavam os muros da comunidade, Isaiah-Matti olhava atentamente para um pequeno tubérculo sobre a palma de sua mão direita.

Com as roupas sujas de terra, um olhar cansado, além das cicatrizes, que com o misto de poeira e suor, aparentavam ser ainda mais horríveis, Matti parecia ter envelhecido dez anos nos últimos dez dias. Nitidamente mais magro, o homem que, apesar de aceito após romper sua aliança com o traidor Goodwin, parecia cada vez mais isolado de Alexandria, como se a comunidade fosse apenas um ponto de descanso.

Ele estava ali, mas não era dali. Um estrangeiro em uma terra estranha.

Andrea, que assumira o controle após mais uma demorada saída de Rick Grimes, que inacreditavelmente pareciam se tornar cada vez mais comuns, solicitara um reforço na segurança, principalmente após a partida de Heath e Abraham.

Tom é claro, se candidatara de imediato, sem pensar duas vezes.

Ele já estava cansado de brincar de porteiro, e apesar do risco eminente de morte que sua nova função lhe reservava, a adrenalina de sair da comunidade, caminhando em campo aberto, destruindo cabeças e limpando os arredores, fazia com que o seu coração batesse forte novamente. Fazia com que ele se sentisse minimamente vivo.

— Levanta aí, Coringa! Temos muito trabalho a fazer hoje!

Isaiah ergueu-se do chão, ignorando os já habituais apelidos estipulados por Price, que dificilmente chamava alguém pelo verdadeiro nome. Guardando a pequena raiz que por diversos minutos analisara minuciosamente, o biólogo a recolhera em sua bolsa de pano, acompanhando o sentinela líder.

Os dois passaram a caminhar rente ao muro, com facões em punho, prontos para exterminar qualquer errante que se aproximasse.

Após os dez primeiros metros, a dupla estacionou em frente a primeira trincheira. Com pouco mais de um metro e meio de profundidade, a vala cavada para auxiliar no trabalho de segurança, parecia cumprir piamente com o seu dever.

Três desgarrados carniceiros esticavam os braços em meio a famintos e desesperados grunhidos, como se esperassem que sua fome pudesse ser saciada por intermédio de suas sôfregas súplicas.

Com os rostos pútridos e em avançado estado de decomposição, as três criaturas, que aparentemente representavam o que um dia fora dois homens de meia idade e uma jovem mulher, batiam as mandíbulas contra as maxilas, mordiscando o ar, na tentativa de saborear as doces carnes dos sentinelas.

Parados diante da horrenda cena, Isaiah e Tom pareceram refletir por breves segundos, captando cada frame daquela imagem, e filosofando internamente o quanto o ser humano perdera o seu valor. Rebaixados a meros esqueletos sem vida, os três errantes eram o símbolo mais próximo da representação da queda da raça humana.

Vambora Coringa... – Tom retirara da cintura o seu facão – Não temos tempo a perder, há pelo menos mais dez covas dessas para verificar!

Atendendo a solicitação do chefe de missão, Matti empunhara sua pequena, porém precisa, faca de caça, agachando-se ao solo e fazendo com que um dos monstros se aproximasse de seu rosto. Com a criatura bem próxima de si, Isaiah desferira um único golpe, tão rápido quanto sempre fora, a criatura nem tivera tempo para esboçar qualquer reação que fosse. Em poucos segundos, a lâmina já estava cravada em sua têmpora, finalizando com a sua medíocre existência.

Repetindo os movimentos de seu parceiro, Price também atraíra o segundo errante do sexo masculino para perto de si, golpeando assim que julgara necessário, com toda a força contida em seu braço direito. A lâmina de seu facão adentrara alguns bons centímetros entre os parietais do carniceiro, fazendo com que um jato de sangue negro fosse expelido para o alto. Após retirar sua arma, Tom apenas observara o cadáver decomposto deitar-se sobre o solo arenoso, totalmente sem vida.

Seguindo a ordem pré-determinada, Isaiah direcionara sua faca à última criatura. Porém, de forma inesperada, Tom tocara o seu ombro, em um singelo sinal para ele interrompesse sua ação.

— Deixa essa comigo...

A pele pálida com inúmeras veias aparentes, o corpo magérrimo ao nível ósseo, além dos loiros cabelos totalmente ressecados e maltratados pelos efeitos da exposição ao sol e da própria decomposição, formavam a seca casca do que um dia fora uma bela mulher de vinte e poucos anos. Os olhos leitosos, as inúmeras pústulas protuberantes em seu rosto, os dentes amarelados e as camadas de tecido epiteliais dependuradas, anunciavam o sofrimento pelo qual a mulher passara antes de se tornar apenas um cadáver ambulante.

O vestido florido aos trapos, possivelmente presente de alguém amado, ou apenas obra de fúteis compras para a primavera realizadas em um final de semana ensolarado. O único pé de uma confortável sandália, unida a uma singela gargantilha, todos os elementos que traziam intrinsecamente uma inacreditável doçura ao bizarro cenário.

Tom travara, observando a mulher morta esticar os braços de forma desesperada em sua direção, tentando a todo custo saborear sua carne. Ele não sabia como explicar o que estava ocorrendo, mas estranhamente a mulher que ali pairava parecia remetê-lo a lembranças que há muito haviam se perdido.

Que porra é essa, Tom? O que você tá fazendo? Price gritava internamente tentando fazer com que o corpo obedecesse às ordens vindas do cérebro. Contudo, ele seguia estático, com o facão empunho, observando o cadáver sem mover um único músculo.

O velho Price tentara empurrar sua humanidade para baixo do tapete, ignorando todas as coisas horríveis que o mundo lhe jogara na cara. É melhor não pensar, era o que ele sempre dizia. Se você pensar muito, principalmente nesse mundo de merda, vai acabar enlouquecendo.

Apesar de incomodado com tudo que o cercava, Tom resolvera seguir o protocolo, fazendo o que era correto para o bem estar da comunidade, ignorando os sentimentos que pareciam fervilhar em seu peito, e que estranhamente, o mandavam recuar.

Atraindo a mulher morta para próximo de seu facão, o ex-soldador girara o corpo em um único e certeiro movimento, ganhando impulso nos calcanhares e juntando força o bastante para decepar a cabeça da errante de seus ombros. O corpo inerte e já livre daquela bizarra forma de vida tombara para trás, jazendo agora para sempre na trincheira cavada pelos sobreviventes de Alexandria.

Tá amolecendo, Tom? Que porra foi aquela?

Assim que retesara o corpo novamente, Price viu-se diante de um olhar nada amigável, disparado por Matti em sua direção. O homem mudo parecia lê-lo, julgá-lo, condenando suas atitudes em relação à última criatura morta.

Encarando-o por alguns segundos, Price sentira uma enorme ira tomar conta do seu peito, um mix de sentimentos que se juntavam a toda a decepção e frustração acumulada. Ninguém ali tinha o direito de julgá-lo, principalmente um traidor como Matti.

— O que foi? – A voz firme do sentinela saíra ainda mais altiva que o normal – O gato comeu sua língua?

Isaiah descera a mão lentamente até sua faca de caça, muito bem guardada em seu cinto. Com os olhos atentos, Price acompanhara a ação do biólogo, que parecia resguardar-se a qualquer movimentação hostil que pudesse vir de Tom.

— Tem alguma coisa pra me dizer, Joker?

A tensão persistiu em continuar por poucos instantes, apenas interrompida por Price, que de forma inesperada, resolvera adotar uma nova estratégia.

Gargalhando de forma de expansiva, Tom erguera as mãos, repetindo o tradicional movimento de rendição.

— Qual é, cara? – Exclamou Price, ainda rindo alto – Você é rápido com essa faca, mas eu também sou duro na queda... Vamos fazer o quê? Esfaquear uns aos outros até a morte, por conta de uma troca de olhares atravessada?

Isaiah prosseguira na mesma posição.

— Aquela mulher... – Price apontara em direção ao cadáver da mulher loira – Ela se parece muito com alguém do meu passado... Uma pessoa que já foi muito importante na minha vida...

O sorriso abandonara o seu rosto.

— Eu não estou louco, tudo bem? Eu apenas hesitei... Não vai acontecer de novo!

Matti enfim recuara, relaxando os ombros e retirando a mão do cabo da faca.

— Só uma coisa... – Tom erguera o indicador – Tem uma coisa muito importante me esperando lá dentro... E principalmente depois dos acontecimentos nos últimos dias, sei que ela vai precisar ainda mais e mim... – O robusto homem respirara fundo – Eu não sei de que buraco você saiu, e muito menos o quer aqui em Alexandria... Mas da próxima vez que me olhar daquela maneira, ou pelo menos sonhar em me...

O discurso de Tom fora interrompido de forma imediata por um som rasante que cortara o ar. Tudo ocorrera de forma muito rápida, Price mal conseguira interpretar os acontecimentos, apenas conseguindo mensurar o que estava ocorrendo quando Matti já estava no solo. O homem mudo caíra para trás tão logo fora atingido no peito por um objeto que o metalúrgico não conseguira identificar de imediato.

O disparo silencioso fora seguido por passos e vozes, que se movimentavam rapidamente em meio à floresta próxima as tricheiras que protegiam os muros. Price não pensara duas vezes. Antes que pudesse ser detectado por algum hostil, o corpulento homem jogara-se no interior do buraco, utilizando os três cadáveres de errantes para esconder o próprio corpo.

Pensa Tom, pensa...

O disparo fora seco, praticamente silencioso, o que demonstrava que provavelmente não fora efetuado por uma arma de fogo. Tom não podia dizer exatamente se o golpe que o companheiro sofrera fora mortal, apenas o que sabia é que havia sido certeiro.

Retirando o revólver da cintura lentamente, Tom tentava utilizar-se de todos os sentidos para conseguir se situar dentro da perigosa e instantânea situação em que se encontrava. Mantendo-se praticamente imóvel, para não chamar a atenção dos hostis, Price deixara os ouvidos atentos, principalmente assim que percebera que os autores do atentado estavam ainda mais próximos.

— Tem certeza que você viu dois deles aqui?

Tom detectara uma voz não familiar, o homem que se pronunciara parecia estar há pouco mais de dois metros do buraco onde se encontrava.

— Eu já falei que sim, Will! Qual o seu problema?

Uma segunda voz, um pouco mais grave que a primeira, manifestara-se pela primeira vez.

— Nada chefe... É que eu vi você acertando um deles, mas agora...

Pelo som dos passos, Price conseguira notar a presença de duas pessoas no local. Àquela altura, já deveriam ter encontrado Isaiah no solo, provavelmente ferido mortalmente.

— Tá vendo esse sangue no chão? – Uma breve pausa fora feita – Então seu imbecil, é obvio que eu acertei um deles... O outro deve estar escondido em algum lugar!

Os passos começaram a se tornar mais pesados e mais próximos.

— Mas chefe... Não há nenhum corpo aqui... Eu vi você acertar o cara pelas costas, como ele poderia...

Uma nova pausa fora impetrada.

— Cala a boca, Will... Ouviu isso?

A voz do homem parecia entoar uma aparente preocupação.

— Isso o quê?

Price conseguira detectar apenas um grito grave após o breve diálogo entre os dois homens. Um grito que perdurara apenas por alguns segundos, antes de ser silenciado subitamente.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Continua...



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "All Out War" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.