All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 20
Solitary


Notas iniciais do capítulo

Aqui estou eu de novo, como prometido, trazendo a segunda parte desse enorme capítulo! Espero que estejam gostando...

Esse capítulo trata diretamente dos dramas pessoais de um certo personagem. Acho que vocês já imaginam de quem se trata...

Boa leitura!



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— Leah... Precisamos conversar...

A frase pronunciada de forma assertiva fez com que o coração da jovem Fisher palpitasse. Ela que decidira cortar todos os laços possíveis com o doutor Hall, principalmente após decepcionar-se com algumas de suas atitudes, prometera a si mesma que não mais se deixaria levar. Em vão. Bastara uma frase para que tudo voltasse, como um mar revolto, pronto para estourar dentro de seu peito.

Tentando ainda demonstrar estar alheia a tudo, Leah diligenciava passar a imagem de que não se importava, que não ligava mais, que nada daquilo a afetava. A garota turrona e de personalidade difícil, tentara tomar as rédeas de sua própria vida, escolhendo que caminho percorrer.

Não seria fácil aproximar-se dele novamente, não depois de tudo pelo que passaram juntos, ou de tudo o que ela conjecturou. Amenina que vivia em um mundo a parte em sua cabeça, deparou-se com a realidade, e fora bastante afetada por ela quando finalmente percebeu como as coisas se dão. Não é fácil sair de uma ilusão assim, de uma hora para outra. O conforto de um mundo imaginário onde todas as coisas dão certo é muito melhor de ser encarado do que a dura realidade por detrás dos muros de Alexandria.

Mas ainda assim ela estava lá, seguindo o doutor até o seu ‘esconderijo’, o sótão de uma das poucas casas ainda não habitadas na comunidade. O local onde ela se encontrara com Enid, sua mais nova parceira, a menina que parecia compreender exatamente o que se passava com ela. Diferentemente de Vincent.

O cirurgião nunca fora bom em detectar sentimentos, nem mesmo os próprios sentimentos. Preso ao momento, Hall deixou-se levar diversas vezes na vida, exaurindo todas as sensações, alimentando-se delas, fossem boas ou ruins. O homem que tentava passar uma imagem de racionalidade era extremamente guiado por seu coração, e provavelmente esse era o motivo de ter tomado tantas decisões erradas.

O homem de ciência e o homem de fé, presos dentro de um único corpo.

Também não era fácil para ele, principalmente ao lidar com seu próprio confronto interno, com seus demônios se digladiando o tempo inteiro, na busca por uma única resposta. Mas quem disse que a vida possui uma só resposta para as coisas?

Após o rompimento com Rosita, sua esperança de ancorar-se nesse mundo fora totalmente esgotada. Ele estava ali, mas não era dali. Hall sentia-se vazio, um enorme buraco em seu interior que provavelmente nunca seria preenchido.

Chegara a hora de aparar as arestas. Talvez fosse o momento de tentar concertar as coisas.

— Alguma chance de ainda ver o meu livro?

Hall tentara quebrar o gelo.

— Está com o Tom... Eu emprestei a ele... – Ela evitava olhá-lo nos olhos – Como a Magna está, alguma evolução?

A menina tentava tratar a conversa como algo trivial, apenas palavras jogadas ao vento.

— Não, ela não está bem... A perfuração foi profunda, o abdome está enrijecendo... Se tudo seguir dessa forma, ela deve morrer em dois, três dias no máximo. Além disso, estamos quase sem antibióticos...

— É uma pena...

Realmente era uma pena, mas Leah não se referia a isso. A garota que tanto quis a aproximação de Vincent outrora, agora apenas queria que ele tomasse uma decisão definitiva. Não dava para ficar brincando com algo tão sério assim, algo que tanto a afetava. Fisher queria seguir em frente, mas para isso, precisava que Hall também o fizesse.

— Porque me procurou Vincent?

Pela primeira vez seus orbes encontraram-se com os de Hall.

— Eu não tinha mais para onde ir... Eu quero resolver as coisas, eu quero que tudo fique bem... Quero me desculpar por tudo o que fiz você passar, por ter sido fraco todas as vezes que você precisou de mim... Eu prometi apoio, mas nunca consegui cumprir...

Leah precisava se manter forte, ainda não era hora de ceder.

— E você chegou a essa conclusão do nada?

Era espantoso o quanto aquela garota havia amadurecido. Fisher demonstrava ser muito mais forte internamente do que o cirurgião, o que só fazia com que Vincent a admirasse ainda mais. A garota não parecia viver em uma fuga constante, passava a impressão de estar sempre disposta a encarar de frente os seus medos.

— Quando o seu pai morreu, bom... Eu prometi a mim mesmo que cuidaria de você, que não deixaria nada de ruim se aproximar... No começo até que eu consegui lidar bem com isso, mas...

Hall passou a fitar o teto empoeirado, concentrando-se totalmente em seu discurso.

— Nós nos envolvemos tanto que eu acabei me tornando a coisa ruim... Estávamos vendo as coisas da forma errada Leah...

A garota respirou fundo, passando as mãos nos cabelos e mudando a expressão de sua face.

— Acho que já tivemos essa conversa... Você deixou bem claro o quanto ficar comigo foi um erro...

O cirurgião balançou a cabeça negativamente, sentando-se no solo, ainda mais próximo a adolescente.

— Eu não me arrependo mais do que fiz... Não me arrependo de nada que fiz, não mais... O problema é que eu não quero enganar você, não quero que crie falsas expectativas, ou regue algo que não carrega potencial para dar certo...

Agora fora Leah que desviara o olhar.

— Quando o Mike me encontrou naquele apartamento há mais de dois anos, eu estava pronto pra morrer... Você não sabe o quanto minha vida já estava destruída antes mesmo dos mortos começarem a andar por aí!

A voz de Vincent embargara, o desabafo era sincero.

— Vocês me levaram ao comboio e me fizeram alguém de novo... Eu pude voltar a utilizar da medicina para ajudar as pessoas... Eu conheci você...

A última frase trouxera lágrimas aos olhos da garota. Ela se segurava de todas as formas para não deixar as emoções falarem mais alto.

— Você se tornou o grande motivo para que eu prosseguisse vivo, para que eu quisesse prosseguir vivo! Eu não sei o que teria acontecido comigo se você não tivesse surgido!

Uma lágrima escorrera inevitavelmente.

— Só que...

Com a voz falha, Leah não tardara em interrompê-lo.

— Só que você ainda se sente culpado por termos transado, você não queria que isso tivesse acontecido... Provavelmente acha que está traindo o que prometeu para o meu pai!

O médico abismou-se com a forma como Leah se pronunciara. A garota tocara no seu ponto mais fraco, mais uma vez.

— Eu não entendo qual a razão de você sentir tanto medo Vincent... Porque eu te assusto tanto assim? – A garota aproximara-se dele – Que efeito eu causo em você? Porque simplesmente não deixamos as coisas acontecerem?

Hall sentia a respiração da menina próxima a seu rosto. Seus lábios avermelhados, convidaditos, mostravam-se de forma insinuante para ele. O aroma doce vindo de sua pele branca, límpida, atravessava suas narinas, embriagando-o. Vincent fechou os olhos, sentiu-se voltar para onde mais se sentira bem durante toda a sua vida. Sentiu-se retornar para os braços de Julia.

Agarrando-a pela nuca, o cirurgião puxou a menina para si, colando os lábios nos dela, em um profundo beijo. O toque das delicadas mãos da garota em seu corpo, dançando de cima a baixo, provocando-o a cada arranhão, arrepiara todo o seu corpo.

Leah desvencilhara-se de Hall, surpreendendo o médico, que já puxava a garota para o seu colo, totalmente tomado pelo desejo momentâneo. Após passar a ponta dos dedos no rosto cansado do médico, a menina loira deu-lhe um breve beijo, encarando-o olhos nos olhos.

— Esse é o problema Vincent... Você nunca sabe o que quer... Você nunca conseguiu tomar uma decisão!

Hall apenas observou Leah deixar o recinto, firme, decidida e renovada. A garota conseguira controlar-se o suficiente para refletir sobre tudo o que vinha ocorrendo em sua trajetória. Aquele não era o momento para se deixar levar, a garota que tanto evoluíra sabia o quanto seria desgastante tentar novamente um recomeço com Vincent. O médico não estava pronto, ainda brigava consigo mesmo e por isso, jamais poderia ser dela plenamente.

Chegara a hora de abandonar as ilusões. Leah agora passaria a viver, passaria a controlar sua própria vida. Hall fora um ótimo guardião, salvara a menina da morte algumas vezes, mas seu tempo com protetor havia se esgotado. O novo mundo forçara a adolescente a amadurecer, e finalmente agora, já preparada, Leah poderia caminhar sozinha.

*****

A meia luz do escritório fazia com que a sombra dos dois homens que lá se encontravam, tornassem-se ainda maiores, refletindo na bela parede. Um quadro representando algum momento das cruzadas, cuidadosamente posto logo acima da escrivaninha, mostrava o quanto o proprietário gostava de tudo muito bem organizado.

Mesmo nos tempos atuais.

Sentado sobre a mesa, Goodwin parecia tenso, gesticulando de forma ampla, aparentemente descontente. Também pudera, já que o seu dia começara literalmente com o pé esquerdo. Após se deixar levar pelo calor do momento, tomando decisões drásticas que poderiam suplantar sua moradia em Alexandria, James agora debatia com Isaiah sobre os próximos passos. Agora mais do que nunca tudo precisaria ser feito com extremo cuidado.

— Não consegui me controlar... Não sei ao certo o que aconteceu, tudo foi muito rápido...

Isaiah apenas olhava fixamente para ele. A enorme cicatriz em seu rosto, escondido pela penumbra do cômodo, dava a ele ainda mais um ar assustador.

— Eu devia ter imaginado que Rick colocaria alguém na minha cola... Eu deveria ter raciocinado, acabei sendo burro demais!

O parceiro mudo tomou um cinzeiro nas mãos, observando toda a extremidade do objeto, enquanto ainda atentava-se as palavras de Goodwin.

— Estava tudo certo Isaiah, tudo estava muito bem pensado... A morte de Nick acabaria inevitavelmente caindo sobre as costas do xerife... Só era preciso uma fagulha, uma mísera fagulha...

James passeava os dedos sobre as mechas grisalhas de forma compulsiva.

— As coisas fugiram do controle, não tinha outra solução... Não sei qual o potencial que essa história possui para se sustentar, mas de qualquer forma sabemos de uma coisa...

O alto homem de aparência estranha voltou a olhar para aquele que discursava.

— Magna não pode sobreviver, de forma alguma ela pode contar para a alguém o aconteceu naquela floresta... – Goodwin diminuiu o tom de voz – Você entendeu Isaiah? Magna não pode sobreviver! Preciso que me ajude, preciso que me ajude mais uma vez... Você sabe o quê e como fazer!

Isaiah olhou para o teto, respirando fundo. O homem que executara Spencer parecia reticente quanto ao novo pedido. Provavelmente se pudesse falar, teria muitos argumentos a respeito na nova tomada de decisão de seu amigo.

— Ei! – Goodwin percebera a hesitação em seu parceiro – Isso vai acabar logo, e no fim das contas, tudo vai ter valido a pena... Você sabe que Rick e a corja dele estão levando Alexandria para um caminho de destruição! Mais do que ninguém eu sei o quanto você quer voltar a ter uma vida normal... Mas o momento não é agora Isaiah! Precisamos lutar, precisamos deixar esse lugar limpo, e depois sim, depois poderemos retomar nossas vidas...

O homem parecia não querer olhar para James.

— Eu também não gosto do que estou fazendo, mas sei que é preciso ser feito... Quero que meu filho cresça plenamente nesse lugar, que possa considerá-lo um lar! Droga, ele nunca vai saber como o mundo era, nunca vai conseguir mensurar o que perdeu, as oportunidades que poderia ter tido! Me ajude a fazer desse o melhor lugar para ele! Me ajude a tirar Rick Grimes do comando!

Isaiah respirara fundo novamente, tomando fôlego, como se estivesse se preparando para falar algo. Acenando positivamente com a cabeça, o homem da cicatriz parecera ter sido convencido pelos pontos apresentados por Goodwin, que pareceu extremamente aliviado após a resposta recebida.

O remendo teria que dar certo, principalmente após a mudança de curso, causada pelos dois incidentes recentes.

James sabia que não havia convencido Andrea, mas para ele o importante naquele momento era ter a maioria do seu lado. A população de Alexandria comovera-se plenamente com a dolorosa história contada por ele. Goodwin conseguira pensar rápido, e mesmo estando envolvido em dois homicídios, conseguira permanecer firme e forte em seu personagem de cidadão exemplar.

— Eu e Susie brigamos feio... Por isso eu fui caçar, realmente queria espairecer! O que ferrou com tudo foi o idiota do Nick, tentando dar uma de herói!

O amigo era um bom ouvinte, e mesmo se pudesse falar, preferiria prosseguir escutando as histórias de James. Isaiah já fora um homem comum, em uma época já esquecida e ultrapassada por ele. Alguém que amou, sentiu medo, que viveu plenamente o tempo que lhe fora dado. Porém também fora alguém que se deixara consumir completamente pelo mal do novo mundo. Um homem que perdera sua própria identidade, preso em uma horrenda imagem que ele próprio preferia não encarar.

— Ela está exigindo muito de mim... Quer algo que eu não posso dar para ela agora. Ela nunca entenderia uma conversa como essa, jamais concordaria com as decisões que eu tenho tomado... O problema é que tudo o que tenho feito é por ela, ela e Jacob!

Goodwin guardava muitas coisas dentro de si, às vezes era muito bom botar tudo para fora.

— Alguém tem que sujar as mãos para que o mundo seja um lugar melhor, principalmente agora... Se ela pudesse enxergar o que eu vejo, o que você vê... Ela não está pronta, ela jamais entenderia...

Os claros olhos de Isaiah fixavam-se em Goodwin.

— Eu a amo muito, mas não posso deixar que nada me atrapalhe... Não agora que estamos tão perto! Ela vai ter que entender... Quando tudo estiver bem, quando as coisas passarem a ficar nos seus devidos lugares... Só aí ela irá compreender o quanto tudo valeu a pena...

Após ouvir atentamente o amigo, Isaiah não exprimira nenhuma reação, apesar de ter um único pensamento rondando em sua mente, repetindo-se como uma mensagem gravada.

Uma hora isso vai ruir Goodwin... Uma hora você acabará perdendo tudo... Eu já vi isso acontecer, e estou perto a ver isso se repetir...

— É melhor você voltar para o seu posto... Não acredito que tenham colocado você como sentinela a toa, provavelmente também estão seguindo os seu passos, portanto... Tenha cuidado Isaiah, tudo depende de você agora!

O homem se retirou, deixando Goodwin refletindo consigo mesmo. O dia havia sido corrido, totalmente repleto de tensas situações inesperadas. O balanço não fora positivo, talvez tudo estivesse por um fio a partir desse instante, mas ainda assim, James sabia que não poderia demonstrar fraqueza ante inimigos igualmente inteligentes. O melhor agora era fingir que nada acontecera, deixar o tempo agir um pouco.

*****

A noite estava linda, o céu totalmente preenchido por brilhantes estrelas que, sem a capa de poluição para atrapalhar, podiam agora mostrar-se em sua plenitude, totalmente reluzentes e imponentes. O cenário era o ideal, não haveria melhor hora.

Manqueteando com sua nova perna de pau, Vincent Hall aproveitara-se de toda a confusão que o tenso dia trouxera a comunidade, para por em prática algo que mais uma vez decidira em meio a um impulso. Todos estavam assustados e abalados demais para prestar atenção em algo aparentemente tão trivial. O medo fizera com que a maioria das pessoas ficassem trancadas em casa, vivendo mais um luto, algo que se tornara muito comum nos últimos tempos.

Yumiko não saía do lado de Magna por nada, nem mesmo para se alimentar. Ainda com muitas dificuldades para caminhar, a asiática esforçou-se ao máximo para poder ficar perto de sua companheira, nem que fosse pelo pouco tempo que lhe restava. Vincent sabia que ela não sobreviveria, mas carregava essa certeza apenas consigo.

Foi difícil chegar à conclusão que alcançara, mas após ouvir as palavras de Rosita e Leah, Vincent precisava tomar uma decisão em definitivo. Precisava encontrar respostas para perguntas que apenas o seu interior poderia formular. Dúvidas essas que o fazia sangrar internamente, tirando o seu sono e a sua paz, reduzindo a sua existência a poeira e ossos.

Vincent precisava se encontrar nesse novo mundo, deixar de ser um perdido, parar de viver sobre a sombra de um passado doloroso. Viver, apenas voltar a viver. Dentre tantas incertezas, apenas uma única certeza era o que o movia a caminhar naquele momento, uma coisa que poderia trazer a paz para o médico outra vez.

Vincent Hall precisava de redenção. E iria procurá-la fora dos muros de Alexandria.

Andrea havia pedido que todos os sentinelas trabalhassem dobrado aquela noite, sem trocas de turno, provavelmente para dar um recado aos veteranos, mostrando que o casal de mandatários estava agindo para manter a comunidade segura. O problema era que mesmo que se esforçassem, uma brecha acabava sempre surgindo.

Não foi difícil para Vincent conseguir em meio à madrugada uma forma sair da comunidade. Apesar de sua mobilidade prejudicada, o homem estava decidido a seguir um novo caminho, deixando tudo para trás. Mesmo que isso o machucasse intensamente.

O universo parecia estar agindo de forma cíclica, sempre fazendo com que Hall retornasse ao mesmo ponto. Mais uma vez ele estava fugindo, mais uma vez deixava de encarar os problemas de frente. Mais uma vez abandonara uma paciente em estado grave. A única diferença entre esse e os outros atos de covardia de Hall, era que agora, ele acreditava estar fugindo pela última vez.

Seria preciso encarar a realidade, mensurar toda a sua trajetória e tudo o que ainda estava por vir. Vincent não conseguia entender o motivo de ainda estar vivo, principalmente após ver tantas pessoas de boa índole deixarem esse mundo.

Milhares se foram, entre eles, pessoas que contribuíram muito mais para o planeta como seres humanos do que o doutor jamais conseguiria. Hall considerava-se um covarde, um rato que sobrevivera justamente por se esgueirar, escorregando e sempre estando alheio aos eventos mais importantes.

Era inegável que a perda de Julia ainda o abalara, a mulher que era considerada por ele o amor de sua vida, o deixara após descobrir a verdade sobre uma grande fissura no passado do obstetra. A imagem desta mulher, projetada em Leah, insistira em persegui-lo durante esses dois anos, lembrando-o todos os dias de tudo o que ficou para trás.

Seguindo pela relva, Vincent ainda tentava não afetar-se pelo fato de estar abandonando tantas pessoas, pessoas essas que de certo modo sempre o ajudaram, e sempre se mostraram muito gratas por também terem recebido ajuda do cirurgião. Alexandria ficaria bem sem suas habilidades médicas? Rosita conseguiria cuidar de Magna sem sua ajuda? E Leah, como ela reagiria após descobrir que o médico desaparecera?

Se quisesse realmente recomeçar, Hall teria que deixar absolutamente tudo para trás, esquecendo inclusive de quem fora um dia. Talvez o remorso permanecesse intrínseco para sempre em seu interior, mas se esse for o preço a ser pago para encontrar a redenção, Vincent estaria disposto a depositar todas as suas moedas.

O cirurgião não trouxera muito consigo. Dentro de sua mochila de camping carregava suas peças de roupa, alguns enlatados que guardava em casa, e o principal, duas garrafas de bebidas alcoólicas, sendo uma de gim e a outra de whisky.

A vontade de beber até morrer retornara com toda a força. Se nada mais desse certo, talvez essa realmente fosse a melhor decisão.

Hall caminhou por mais de sete quilômetros, seguindo o desconhecido, sem ideia alguma de como ou para onde seguir. Estafado, assustado e tomado pelo remorso, o obstetra recostou-se sobre uma árvore a beira da estrada, enquanto observava o fim de madrugada, com o céu azul clareando-se lentamente.

Apenas o cricrilar dos grilos podia ser ouvido. O frio, que se ampliara à medida que o médico avançara pelo matagal, tornara-se cortante, dolente. Não era possível enxergar muita coisa a sua volta, por essa razão, a audição deveria tornar-se o sentido mais apurado naquele momento, já que isso poderia determinar a sua sobrevivência de forma direta.

Abrindo a mochila e retirando a garrafa de gim, Hall sorriu ao constatar algo inacreditável. O médico não havia levado água consigo.

Talvez aquilo fosse um sinal, talvez o universo não quisesse que ele prosseguisse naquele mundo. Vincent Hall começava a pensar se sua hora não havia chegado enfim. Se assim fosse, um peso gigantesco seria retirado de suas costas.

Há coisas que apenas a morte pode proporcionar.

Após um generoso gole em sua bebida, Hall passou a conjecturar o quanto sua decisão fora estúpida. Ele sabia que não conseguiria ir a lugar algum, sabia que não havia possibilidades de redenção para ele. No fundo Vincent sabia que aquela era a sua última fuga, seu derradeiro ato de covardia.

O brilhante jovem, que um dia fora considerado um prodígio na medicina, que ganhara a admiração de Annette, de Julia... De Leah. Hall conseguira jogar fora todas as mulheres que um dia acreditaram nele, que o viram como uma boa pessoa, que acreditaram que poderiam ter um futuro a seu lado.

Tudo se esvaíra como lágrimas na chuva.

Chuva que agora lentamente começara a cair dos céus.

Enrolando-se como pôde em um cobertor, o inerte homem permanecera-se aquecendo com o combustível que movera todo o seu período de depressão, antes mesmo do mundo virar de cabeça para baixo. A mesma bebida alcoólica que já compartilhara com suas amadas. Tudo parecia familiar demais.

Um barulho em meio ao matagal quebrara todo o clima que o silêncio da madrugada trouxera. O médico espantou-se, arregalando os olhos e abraçando a garrafa, como que buscando proteção. Dois pontos avermelhados puderam ser avistados, paralelos, fixando-se em Hall.

Eram dois olhos.

Vincent tentou erguer o corpo, levantar-se para tentar escapar da ameaça, mas sua falta de mobilidade acabou jogando contra. Após um assustador ladrar, os dois olhos passaram a avançar de forma feroz na direção do médico.

A criatura, um vira-lata faminto, pulou com voracidade contra a perna do obstetra. Para a sua sorte, o cachorro escolhera justamente o lado que continha a prótese. Agarrado contra o pedaço de madeira, o louco animal girava a cabeça, mordendo de forma violenta, como se realmente pudesse se alimentar daquele material. Trêmulo e assustado, Hall aproveitou-se do erro do animal para sacar seu revólver, descarregando a arma na direção da criatura.

O vira-lata cedeu, tombando sem vida.

Naquele momento, Vincent percebeu que mais do que qualquer coisa, ele queria viver.

[...]

Mais de vinte e quatro horas se passaram, entre paradas e retomadas de caminhada, o médico já havia avançado bastante, não mais sabendo onde se encontrava. Tentando de alguma forma traçar uma estratégia, Hall resolvera evitar a estrada, seguindo o máximo possível pelo matagal ao redor ou até mesmo nos próprios bosques nas adjacências.

O ritmo lento imposto por sua perna de pau fazia com que ele se estafasse muito rapidamente, além é claro da constante ingestão de álcool não ajudar em nada. A falta de água logo cobraria o seu preço, alguns sinais de desidratação já começavam a despontar.

O que você está fazendo, Vincent?

Uma voz reverberara pela cabeça de Hall, assustado, o médico passou a olhar nas mais diferentes direções, buscando a origem do familiar som.

Você ainda continua perdido?

A voz que se repetia era pronunciada em uma língua estranha, porém, o médico sabia que já havia ouvido aquelas palavras anteriormente.

Eu estou aqui, querido. Por que você não me procurou mais?

Agora ficara mais do que claro para ele, a linguagem falada tratava-se do português, e ele apenas conhecera uma pessoa na vida que dominava aquele idioma. Uma brasileira que há muito deixara para trás, mas que nunca conseguira esquecê-la por completo.

Jogando a garrafa vazia que trazia em baixo dos braços, Vincent levou as duas mãos aos ouvidos, tentando de forma inútil fazer com que aquela voz desaparecesse. Talvez fosse o efeito do álcool ou da desidratação, ou quem sabe ele realmente estava ficando louco. A verdade era que Julia ainda se fazia presente, e ouvir sua voz outra vez era tão sublime quanto assustador.

Nós poderíamos ter feito tantas coisas juntos... Poderíamos ter tido uma família... Aproveitado ao máximo o tempo que ainda nos restava... Por que você jogou tudo isso fora, amor?

O médico balançava a cabeça negativamente, girando no próprio eixo, totalmente ensandecido, buscando incansavelmente por algo inexistente.

— Você está morta... – Sussurrou o médico, repetindo em voz alta logo em seguida – Você está morta!

Hall estava ofegante, enfastiado em demasia. Sua cabeça era tomada por milhares de lembranças, seu peito palpitava.

Você tem certeza disso? Como sabe que eu não sobrevivi? Você me abandonou, lembra? Fugiu assim como fez com Annette... Assim como voltou a fazer com Leah!

— Você não sabe de nada! – Suas mãos seguiam nos ouvidos, os olhos agora cerraram-se – Eu ainda estou pagando pelo que fiz sim, mas muita aconteceu desde que nos separamos... Você não sabe de nada!

A loucura e a sanidade passaram a se misturar, Vincent não conseguia mais saber se vivia um sonho ou se tudo aquilo estava realmente ocorrendo.

A vida cobra um preço pra tudo, meu amor...

A forma doce como a frase fora dita fizera arrepiar o médico.

Abra os olhos... Você já pode abrir os olhos, Vincent...

Vacilante e temeroso, Hall retirou a mão dos ouvidos e passou a abrir os olhos lentamente, como se não quisesse encarar a realidade, fosse ela boa ou ruim.

De pé ante os seus olhos, translúcida, quase etérea, uma mulher de branco sorria para o médico que abismado, não conseguia acreditar no que sua visão lhe mostrava. Julia estava ali, viva ou morta, a mulher mostrava-se diante do cirurgião, como se quisesse passar um sinal, deixar uma mensagem.

Lágrimas escorreram de forma desmedida pelo rosto de Hall. Ver ela ali, mesmo que fosse apenas uma ilusão, acalentava o seu partido coração. Dando dois passos para a frente, Vincent ainda temia a aproximação, se pudesse, apenas admiraria o seu rosto durante o resto de sua vida. Ele não queria que ela escapasse novamente, não queria perdê-la outra vez.

— Eu... – Sua voz encontrava-se extremamente embargada, era difícil tentar falar qualquer coisa aquela altura – Me perdoa Julia, me perdoa por tudo o que eu fiz a você...

Não sou eu quem precisa perdoar você... Você sabe disso.

Era duro ouvir aquilo, apesar de ser a mais pura verdade.

Eu sempre amei você Vincent, até depois que tudo se foi...

— Eu te amo Julia...

Os olhos do cirurgião queimavam em meio ao choro descompassado.

Está na hora de prosseguir, meu bem. Venha comigo, quero lhe mostrar uma coisa.

A imagem desfocada de Julia que se projetara diante do médico, deu as costas, dirigindo-se lentamente em direção ao interior do bosque, repleto de enormes árvores com gigantescas copas. O local parcialmente obscuro, muito por conta da não incidência de sol, parecia hostil a primeira vista, mas nada disso importava naquele momento. Ele precisava segui-la, precisava encontrar o seu caminho.

Adentrando o interior da floresta, Hall passou a procurar por sua amada, que não mais se fazia presente. Apenas sussurros podiam ser ouvidos, vozes que nada diziam, vindas das mais variadas direções. A cabeça de Hall doía, sua mente não funcionava em sua normalidade. Os fantasmas de seu passado nunca estiveram tão vivos quanto agora.

— Julia...

Sem saber para onde prosseguir, sem conseguir encontrar a mulher que tanto buscara, o cambaleante médico seguira trançando as pernas, tentando acelerar o passo em busca de algo que sabia não ser real. Ou pelo menos era nisso em que se agarrava. Apoiando-se nas árvores, o confuso homem seguiu de uma extremidade a outra, avançando sobre as folhas, até perceber uma clareira logo à frente.

Sua boca estava seca, sua garganta queimava e seu corpo não mais conseguia manter-se de pé. Alcançando a claridade logo à frente, Vincent ultrapassou os limites do bosque, chegando a uma área de vegetação rasteira, onde apenas um pequeno matagal o separava do solo.

A visão estava turva demais para que ele pudesse identificar qualquer coisa a sua frente. O esforço que fizera em sua louca conversa com o fantasma de Julia parecia ter arrancado toda a força que ainda restava em seu corpo. Caindo ao chão de joelhos, Hall não pode fazer muito mais de que erguer os braços, em um movimento totalmente involuntário, antes de receber um poderoso e doloroso impacto contra o seu ombro.

A dor lancinante o fizera cair para trás. Sua cabeça começou a girar, como em um poderoso ataque de labirintite. Só dera tempo de perceber duas sombras se aproximando, antes que o seu corpo apagasse de uma vez.

[...]

Abrindo os olhos repentinamente, em um único movimento, Vincent Hall sentiu uma forte dor no lado direito de seu corpo. Sem camisa, o homem olhou para o ombro e notou um pequeno curativo improvisado, onde um emaranhado de gaze era preso sobre o local afetado de forma precária por algumas tiras de esparadrapo.

Voltando o olhar para os lados, Hall percebera que estava em um quarto fechado, feito de madeira, iluminado de forma parcial por algumas velas. Além disso, ao tentar mover o corpo, notara também estar preso a uma cama, os braços amarrados de forma profissional, impossibilitando qualquer movimentação, por mais que tentasse. O médico já vira aquele tipo de manobra anteriormente, reconhecera ser a mesma utilizada em hospitais para imobilizar pacientes problemáticos.

— É melhor não se mexer muito, ou então os seus pontos irão abrir...

Saindo das sombras, uma mulher de pele negra e enormes cabelos ondulados, aproximara-se do médico calmamente. Ela agia de forma natural, parecendo bem tranquila diante de Hall.

— Me chamo Patricia! Não sei se você consegue se lembrar do que ocorreu, mas ao que parece um dos nossos acabou o atingindo acidentalmente... Tem sorte de ainda estar vivo!

Vincent realmente não conseguia se lembrar de tudo, mas ao ouvir o que a mulher lhe dissera, conseguiu juntar os fatos. O impacto que sentira antes de desmaiar fora gerado pelo encontro de uma bala de rifle contra o seu ombro. Ainda assim tudo ainda era por demais confuso, Hall não fazia ideia de onde estava.

— E então, não vai dizer o seu nome forasteiro?

O sorriso de Patricia causava estranheza, sua calma e naturalidade idem. Vincent escolhera deixar tudo para trás, abandonar as pessoas que acompanharam durante toda a sua jornada, que o resgataram quando ele próprio já havia desistido de viver. Ele não sabia o que estava ocorrendo, muito menos possuía discernimento para o que ainda estaria por vir.

Se era para recomeçar, se era para deixar tudo para trás, Vincent precisaria abrir mão por completo.

Encarando o teto e respirando fundo, Vincent Hall refletira bastante antes de responder ao questionamento da mulher que em momento algum intimidara-se com sua presença.

— Eu me chamo... Eu me chamo Desmond...

A mulher sorriu mais uma vez, parecia satisfeita pelo fato do forasteiro estar cooperando. Vincent a encarou, ainda extremamente cansado e enfraquecido. Prosseguindo com sua postura amigável, Patricia pronunciou-se uma derradeira vez.

— Olá Desmond, seja bem vindo ao Garden! Tem alguém aqui que quer muito falar com você...


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam? Contem-me tudo! Hehe...

Eu particularmente gostei bastante de escrever essas duas partes, mas quero saber que impressão elas passaram para vocês...

Ainda tem muito o que rolar, e o Garden será apenas mais um tempero para os grandes eventos que virão... Aguardem!

Nos vemos no comentários...



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