Olhos de Cobra escrita por Laura Salmon


Capítulo 30
Capítulo 29 - Karina




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Caí sentada no sofá. Minha mão descia e subia pela minha garganta. Eu mal podia respirar lembrando-me do modo como o corpo de Cobra respondera aquele beijo. Toquei meus próprios lábios. Eles ainda latejavam. Meu corpo estava pronto para ser dele. Mas minha cabeça tinha um problema para resolver.

― Bom dia, Ka. ― Bianca apareceu repentinamente, se espreguiçando. ― Quando você chegou?

― Cheguei e já saí e já cheguei de novo.

Ela parou de mexer nas coisas da cozinha e me olhou intrigada.

― E essa cara de assombro?

― Ih, Bianca! Me erra.

― Nossa, Karina. ― Ela sentou ao meu lado, tomando um pouco de café. ― Grossa.

― Desculpa. ― Suspirei. ― Estou num momento difícil. Estou apaixonada.

― Aham. ― Ela levou a xícara novamente aos lábios, mudando de ideia para sorrir e piscar um dos olhos. ― Agora conta uma novidade.

― Pelo Cobra.

O café que já ia entrando em sua boca se espalhou por todos os lados. Inclusive na minha perna. Bianca tossiu por um tempo longo em que tive que manter a paciência para sua dramatização exagerada.

― E o Pedro?

― Ai. ― Comecei a apertar meu próprio rosto. ― Não é como antes, Bi. Alguma coisa se perdeu. Nosso tempo passou. Quando eu fui picada pela jararaca, chamei por Pedro em delírio. ― Bianca me olhava atentamente. ― E o Cobra disse que eu só saberia o que sentia pelo Pê se eu terminasse aquilo que tínhamos começado.

― Sábio conselho. ― Ela estava sendo sincera. Mexeu os ombros, erguendo os olhos novamente para os meus. ― Quer a minha opinião?

― Vai adiantar se eu disser não? ― Nós rimos.

― Sabe quando você quer muito uma coisa e quando consegue percebe que aquilo não era exatamente como você pensava? Não há mais o fogo da conquista, a expectativa, o desafio. Mas aí você consegue não acontece mais nada. ― Balancei a cabeça de um lado para o outro. Bianca era boa em ler as pessoas, mas para ela mesma. Eu não estava entendendo muito bem. ― Eu tô falando do Pê. Ele te perdeu de uma forma muito brusca. ― Os olhos dela se abaixaram como se implorassem perdão pela milésima vez. ― Ele não poderia deixar que você fosse embora assim. Machucada. Destroçando tudo de bom que viveram. Ele lutou por você e até respeitou seu espaço quando se cansou de apanhar e de insistir com todas aquelas mentiras. E quando vocês finalmente se acertaram ele está lá sorrindo. Mas apenas sorrindo e se perguntando: e agora?

― Eu me sinto um pouco assim.

― Vocês não estão conseguindo ir para frente. Estão andando em uma esteira e o caminho é sempre o mesmo, Ka. Lembranças boas e ruins e expectativa de que as boas voltem. Mas elas não vão voltar. Vocês precisam construir algo novo. E não conseguem.

― Bi. ― Empurrei a perna dela com o pé. ― Já pensou em largar a administração e ser psicóloga? ― Ela gargalhou. ― Não! Sério. Já tem dois pacientes. Eu e o João.

― O João está indo bem sem mim.

― Eu senti um desapontamento?

― Karina o que você está fazendo aqui que não foi colocar os pingos nos is com o Pedro? ― Me levantei do sofá. Bianca segurou a minha camiseta antes que eu pudesse sair correndo. ― Faltou uma coisa. O papai não vai gostar nada nada dessa sua nova paixão.

Encolhi os ombros.

― Não é o papai que vai beijar o Cobra.

Bianca riu com a possibilidade e me soltou. Corri para a casa de Pedro. Ainda era bem cedo, o que fez com que Delma abrisse a porta para mim com um sorriso, convidando-me para o café da manhã.

― Obrigada, mas eu quero mesmo falar com o Pedro.

― Ele tá lá em cima gritando com a Tomtom por causa de pasta de dente. ― Delma revirou os olhos. ― Sobe, minha filha. Vai até lá. Ele vai ficar melhor quando te encontrar. Por favor. Diz a Tomtom que estamos atrasadas e que não vou mais esperá-la.

― Nem precisa. ― Tomtom apareceu na escada me abraçando assim que me alcançou. ― Estou pronta. Pedro voltou a dormir. Eu jogaria água nele.

Apertei os lábios em um sorriso ruim. Eu jogaria um banho de água fria em Pedro, com certeza. Subi as escadas, chegando rapidamente ao seu quarto. Ele estava sentado com os cabelos revirados mexendo no celular. Quando me viu seu rosto se iluminou. Mas foi só isso. Exatamente como Bianca havia dito.

― Olha só quem resolveu sair do ninho de Cobras! Esquentadinha!

― Pê. ― Parei no meio do quarto. Eu não sabia o que fazer com as mãos, elas estavam suando. Cruzei os braços. ― Nós precisamos conversar.

― Ah, eu sabia! ― Pedro jogou a cabeça pra trás, cobrindo os ouvidos. ― Eu sei o que vai dizer, então não vou ouvir.

Tive que tomar a atitude extrema de voar até a cama dele e arrancar suas mãos dali. Ele me encarou com medo. Mas eu estava triste. Não sabia como dizer. Tentei me lembrar de cada palavra de Bianca. Era um bom jeito de fazer Pedro enxergar as coisas.

― Você veio terminar comigo, não é? ― Ele se adiantou. ― Dormiu com ele, Karina? ― Fiquei em silêncio, os olhos vacilantes entregando que eu havia passado a noite com Cobra. ― Mente na minha cara que você não dormiu com o Cobra.

― Dormi. ― Engoli em seco diante da frustração de Pedro. Ele puxou as mãos da minha e revirou mais ainda toda aquela cabeleira. ― Mas só dormi, Pê!

― Porque ele tá com a costela quebrada! ― A voz dele se arrastou num choro estupidamente inventado. ― Eu sou chifrudo. Eu nunca achei que seria corno. Fui corneado.

Não havia como convencê-lo do contrário porque tecnicamente eu havia beijado Cobra. E nosso envolvimento emocional ia além do físico. Eu era uma traidora. Suspirei bem devagar. Pedro não parava de resmungar que a cabeça estava doendo com os chifres. Então o fiz calar com um arranco.

― Me ouve, Pedro. É melhor para nós dois. ― Repeti a análise psicológica de Bianca e ele se calou. Parecia refletir sobre o que estava sentindo. ― Segundo a Tomtom, nossa história era A Culpa É Das Estrelas. E o final não é muito bom.

― Não. Não é. ― Ele suspirou. ― E a sua história com o Cobra, Esquentadinha? É Divergente? Você sabe como termina? Na nossa história eu morro. Na sua nova história...

Cobri a boca dele.

― Ainda não li o terceiro livro.

― Sugiro que leia. ― Pedro afastou minha mão. ― O engraçado é que não estou triste. É como se eu tivesse ficado triste antes. Como se tivéssemos vivido tudo antes. ― Concordei em silêncio. ― Falhei com você, Karina. Desculpa.

― Não falhou comigo. ― Avancei para Pedro, abraçando-o. ― Me ensinou a viver de um jeito diferente. Sou uma Karina melhor porque você passou por minha vida.

― Pretendo continuar nela, Esquentadinha.

― Quero que fique.

Ficamos em silêncio, abraçados. O único som era o de nossas respirações. Esperei algumas lágrimas, mas elas não vieram. Era como se Pedro e eu não estivéssemos rompendo. Como se já soubéssemos que não íamos conseguir amar um ao outro como antes.

― Preciso ir. ― Sussurrei, me afastando.

― Vou procurar Convergente pra você. Pra você tomar cuidado. ― Assenti, saindo de costas.

Dei um último sorriso a ele e desci as escadas. Nenhum choro brotou em mim. Abri a porta da sua casa e estava com os pés na rua quando o ouvi fazendo um estardalhaço atrás de mim.

― Esquentadinha! ― Parei, voltando-me novamente para a porta. Pedro balançou o terceiro livro da série Divergente. ― Leve-o agora.

― Karina?

Virei-me ao som do meu nome. A praça estava deserta exceto por um furgão preto parado um pouco mais além. Um homem de cabelos baixos e joia de ouro no pescoço sorriu. Quando ele acenou percebi que havia anéis pesados em seus dedos. Mas foi só quando outros três caras truculentos saltaram do carro que eu soube que estávamos encrencados.

― Que bom que encontramos você. ― Ele retirou o meu celular do seu bolso. ― Peguem ela.

Dois dos três caras vieram para cima. O braço dele passou por minha cabeça quando me esquivei e acertei seu estômago. Meu pé pegou o queixo do outro em cheio, jogando-o para trás. O terceiro homem se aproximou. Nós lutamos com os braços. Meu ouvidos captaram os sons de Pedro sendo amordaçado. Dei um soco tão grande em meu oponente que minha mão latejou.

Click.

Parei. Estática.

― Já chega, loirinha. ― O cara do colar de ouro chegou bem perto. O cano de uma arma tocou minha nuca. ― Nenhum pio. Agora amarrem a cabritinha. Joguem esse saco de bosta no carro. Vamos levá-los para dar um passeio.

Um deles passou uma fita isolante em meus lábios enquanto o outro amarrava minhas mãos para trás e vendava meus olhos. Fui jogada com um baque surdo no furgão. Pedro caiu sobre mim, choramingando baixinho.

Eu ainda não sabia o final de Convergente, o livro que ficara jogado na calçada antes que eles nos pegassem. E talvez eu nunca viesse a saber.


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