Era noite e as ruas de Io, atual lar da Classe Torin, estavam vazias. Já há algum tempo nenhum cidadão saia durante a noite devido à presença de um demônio que os vinha aterrorizando.

Mas quebrando o silêncio, um rapaz moreno e forte corria pelas ruas, não fugindo, mas tentando ganhar tempo para pensar. Seu braço esquerdo sangrava um pouco e estava inchando e ficando roxo.

Segurava sua espada com o braço bom enquanto corria por aquelas ruas que conhecia tão bem. Tinha medo do que podia acontecer com seu braço machucado, o demônio havia arrancado seu escudo dele com tanta força que estava com medo de ter quebrado.

O rapaz tinha uma fina barba, que há três semanas ele ainda não usava. Sabia que tinha sido muito arriscado ir para lá, mas era seu lar, não podia deixar que enfrentasse esse tipo de problema. E fora exatamente esta sua fraqueza que o inimigo explorou. Era uma armadilha.

Por mais que corresse, parecia não haver maneira de despistar o feroz enorme lobo que o seguia.

– Tinha que ser um nível nove... – murmurou correndo.

Não podia ficar somente correndo, tinha que lutar.

Carter parou abruptamente, se virou e jogou sua espada no lobo. O animal caiu para o lado, desviando da espada que se fincou no chão. Levantando a cabeça percebeu que tinha somente sido distraído, no tempo em que desviava da arma sua presa já estava em cima dele, com braços grandes demais prendendo seu pescoço.

O rapaz respirava ofegante enquanto colocava toda sua força naquele aperto. Seu braço doía como se estivesse levando milhares de injeções juntas ao mesmo tempo, sua esperança é que a dor fosse tanta que ela mesma se anestesiasse. O lobo em suas mãos se debatia e sufocava, Carter pensou ter vencido, mas o logo o lobo se transformou em um urso, que ficou de pé nas patas traseiras derrubando-o.

O novo animal urrava e arranhava Carter, que se defendia com o braço ferido. Aquele demônio era forte, os animais nos quais se transformava era maiores e mais fortes do que o normal, e pareciam preservar algumas características humanas. Ainda com os braços grandes, ele socou o animal. Nunca na vida se imaginara socando um urso, mas era necessário.

Estava ganhando vantagem novamente, mas o animal recuou um pouco e se jogou no rapaz que só conseguia se defender por conta de seu poder. Não tinha tempo para feitiços nem encantos, teria que vencer no corpo-a-corpo.

Carter então fez suas pernas crescerem, iria empurrar o demônio, mas antes que fizesse isso, o urso mudou. Sua boca se tornou igual à de uma cobra, que mordeu com toda força o braço esquerdo do inimigo. O rapaz urrou e chutou a criatura. Fechou os olhos sentindo a dor crescer, sentia que uma boa parte de seu braço tinha ido com o demônio. Podia sentir seu sangue quente o sujando. Finalmente a dor se anestesiava, mas agora ele ficou tonto, sabia que estava prestes a perder os sentidos.

Não podia ver o demônio, mas podia ouvir seus passos. Fez o feitiço mais fácil que se lembrava e que manteria inimigo longe tempo suficiente para conseguir se recompor. Murmurou algumas palavras e socando o chão com o braço bom criou um losango de fogo ao seu redor, fogo mágico, mais destrutivo do que o normal. Aquilo ia lhe dar tempo. Demônios tinham medo de fogo, não o entendiam, podia levar horas até ele transpor aquela barreira.

Carter se sentou, sua visão estava turva, mas conseguiu se sentar e colocar a mão em cima de seu ferimento. Era realmente grave, mas só de estancar o sangramento ele teria uma vantagem.

Porém, uma figura de cabelos tingidos de verde rolou pelo chão através da barreira. Um homem. O desconhecido jogou seu casaco, que pegava fogo, no chão para apagá-lo. O Guerreiro não entendeu por um segundo, mas quando o homem se virou para olhá-lo, ele percebeu que era o demônio.

Como podia ter passado pelo fogo? Era impossível!

Uma descarga de adrenalina percorreu o corpo de Carter e sua visão clareou. Há luz do fogo ele pôde olhar bem para seu inimigo enquanto este se aproximava.

O sangue ainda escorria por seus dedos, mas sabia que era tarde demais.

O que via não fazia sentido. O homem não tinha traço algum de demônio. Dentes perfeitos, olhos normais, ele somente tinha uma aparência de quem não dormia há vários dias ou que estava se drogando. Percebeu que até mesmo ter se transformado em urso com dentes de cobra estava além das habilidades de um demônio. O único que ele já tinha visto com poderes assim era Hunter.

O homem abriu mais o sorriso que tinha em seu rosto. E ele finalmente teve sua resposta.

– Quimera... – sussurrou enquanto o inimigo o golpeava com um chute na cabeça e tudo ficava sem cor.

~*~

Algumas horas depois, uma mulher de cabelos brancos e opacos chegou a Io, puxando uma carroça de madeira com muitos panos. Ela fumava enquanto seus pés descalços caminhavam pelas ruas de pedra. Tinha que fazer seu serviço antes de amanhecer.

Fox olhou para a pequena esfera amarela em seu pescoço, que indicava seu caminho. Mesmo que usasse somente uma regata e estivesse pisando no chão gelado, ela não sentia frio.

Andou devagar até encontrar o corpo de Carter. Ele não estava exatamente inteiro. Ela conseguiu fazer seu pescoço voltar para uma posição mais humana, mas melhor do que aquilo ela não poderia fazer.

Mastigou e engoliu seu cigarro enquanto tirava o garoto da poça de seu próprio sangue e o levava mais para o lado. Pegou a outra metade da mão e do antebraço dele e deixou junto com o resto. Li era quem ia cuidar daquilo.

Estendeu um dos panos no chão e começou a enrolar Carter, logo ele era somente um corpo enrolado de branco, não havia sinal de sangue, afinal ela usava muitos panos. Colocou-o dentro da carroça e parou para acender outro cigarro.

Nunca tinha fumado tanto quanto nos últimos tempos. Tinha sido difícil se manter no controle, mas os cigarros e incensos ajudavam bastante. Inclusive agora ela tinha uma desculpa para ir à mansão e conseguir mais.

Com o cigarro aceso, ela pegou a espada de Carter e jogou na carroça junto com ele. Levou um tempo para encontrar o escudo também, mas conseguiu sair da cidade antes do amanhecer. Não se preocupou com o sangue na rua porque se a cidade vinha sendo ataca há algum tempo, provavelmente achariam que fora um animal que tinha morrido. O importante era não saberem que um Guerreiro havia sido assassinado ali.

Quando finalmente saiu da cidade, Fox amarrou as correias da carroça a sua cintura e respirou fundo. Era difícil se transformar, mas em forma humana nunca conseguiria ser rápida o suficiente. Logo, quase seu corpo inteiro era de cavalo. Parecia mais um centauro disforme na verdade, embora tivesse patas e cauda de cavalo, ela não tinha braços (eles haviam se tornado as patas dianteiras), parecia estar deitada, suas costas pescoço e cabeça ainda eram humanos.

Se alguém visse de longe, pareceria uma amazona em seu cavalo.

Ela então começou a trotar e foi gradativamente ganhando certa velocidade, sem nunca deixar seu cigarro cair da boca.

~*~

O homem de cabelos verdes estava nos arredores da cidade, dentro da floresta, levando um frasco com o sangue do Guerreiro que matara.

A sua espera estava um homem de armadura negra. O de cabelos verdes entregou o frasco a seu superior, fez uma mesura, transformou-se em cão e foi embora.