Mais que o sol escrita por Ys Wanderer


Capítulo 11
Espelhos


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente! Desculpem a demora, mas eu estava com problemas de internet devido o excesso de chuva.
Bom, esse capítulo narra o ponto de vista da Sam sobre todos os acontecimentos desde que ela chegou às cavernas e ao final se encaixa no que já havia.
Boa leitura!



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Samantha

Seis semanas. Para quem disse que não iria ficar nem mais um dia até que minha estadia estava durando nas cavernas de Jeb. É lógico que depois do incidente com Cal na sala de banhos eu tentei ir embora na mesma hora e arrastar Adam comigo de volta para a floresta, mas a pedido dele eu acabei ficando. No final, seus argumentos foram válidos e venceram a minha cabeça quente:

— Samantha, pense bem. Nós estaremos melhor aqui com outros humanos do que sozinhos como andarilhos naquela solidão sem fim.

— Adam, você não está vendo o que está acontecendo? — resmunguei furiosa. — Neste lugar há mais almas do que eu consigo lidar. Todos aqui sofreram alguma espécie de lavagem cerebral, é a única explicação plausível. Como eles podem ser amigos daqueles parasitas?

— Sam, eu acredito que todo mundo possa se arrepender de algo um dia. E acho que se aquelas almas estão aqui é porque devem ter se arrependido sinceramente. Você não vê como todos confiam nelas? — Adam argumentava tranquilamente.

— Eu não quero saber. Vamos embora agora!

— Sam — ele baixou o tom de voz. — Por favor, fique e me deixe ficar. Eu não quero enlouquecer naquela floresta escura. Se nós perdemos o mundo e isso é tudo o que nos resta, pelo menos me deixe viver o resto dos meus dias perto de outras pessoas. De outros humanos. Eu não aguento mais ficar sozinho. Eu preciso de amigos, de companhia.

Suas palavras me comoveram, eu sabia que Adam não era o tipo de pessoa que gostava da solidão. Ao contrário, ele sempre precisou orbitar em torno de outras pessoas para se sentir feliz. Eu vi o quanto ele e Jamie já tinha se tornado amigos e como tudo isso estava fazendo bem a ele. Ele estava mais vivo e, apesar de preso, mais livre.

— Tudo bem — concordei contrariada. — Mas não para sempre. E qualquer deslize desse pessoal a gente se manda daqui sem ao menos dar tchau, ouviu?

Meu irmão me deu um abraço de urso e beijou o topo da minha testa. Mesmo aos dezesseis anos ele era consideravelmente mais alto e mais forte do que eu, e senti um aperto no peito. Adam não precisava mais tanto de mim e me senti abandonada, exatamente como uma mãe se sente quando os filhos crescem.

— Seu idiota — respondi sorrindo. — Seus músculos não me vencem, ainda sou mais forte que você.

— Eu sei, tampinha — ele gargalhou.

— Perdeu o amor a vida, foi?

— Desculpe, Sam — ele continuou debochando. — Você ainda me dá medo.

Nós rimos juntos e o clima ficou ameno. Ele se despediu correndo e saiu para jogar bola com os rapazes. "Tudo bem", pensei. "Por ele talvez eu ature uma alma ou outra".

A primeira semana foi bem difícil. O trabalho também era árduo e eu me vira prestes a matar Adam pela ideia idiota de nos fazer viver nesse buraco. Ele sentia que o trabalho era puxado, mas não reclamava para não dar a mim qualquer razão para ir embora. Eu via o quanto estava se esforçando e se mostrava alegre mesmo nas situações mais difíceis. Pensando melhor, talvez um pouco de rotina na vida dele fizesse bem.

Depois de uns dias eu já conseguia me locomover nas cavernas sem me perder, mas de vez em quando ainda esbarrava em alguém. Uma vez dei de cara com Peregrina e percebi que ainda tinha vontade de matá-la por causa de Grace. Enquanto ela se desculpava, eu já estava longe.

A parasita de Kyle, irmão de Ian, era ainda pior de aturar. Muito sonsa, muito doce. Adam imediatamente caiu de amores por ela e ela idem, que fazia de tudo para agradá-lo. Eu apenas ignorava a presença dessas criaturas, pois havíamos sido acolhidos aqui e pelo menos não seria eu aquela a quebrar a “harmonia”.

Todos se mostraram bem receptivos à nossa presença e comecei até a gostar de alguns. Nate era divertido, Ian era bem legal e prestativo, Jeb tinha um bom coração, Paige era inteligente e Lily perspicaz. Do outro lado da moeda, havia pessoas que eu simplesmente odiei. Além das almas, o trio Maggie, Sharon e Lacey eram as criaturas mais odiosas naquele deserto.

Porém, a criatura que mais me causava desconforto era a alma Cal. Desde o dia em que quase o matei ele sempre me seguia com olhar, creio que esperando um pedido de desculpas. Mas eu jamais diria tal coisa a uma alma, afinal elas roubaram tudo de mim e isso era justificativa suficiente para odiá-las. No entanto, confesso que sua presença me deixava desnorteada, pois ele era muito diferente das outras almas e, além disso, tinha um hospedeiro muito bonito.

Eu só posso estar ficando louca — falei para mim mesma quando me peguei o avaliando enquanto ele tomava café. Definitivamente ficar sem tomar sol estava fazendo mal para a minha cabeça. Adam, que estava ao meu lado, começou a rir.

— Você está louca mesmo, irmãzinha. Já está até falando sozinha — ele riu e apenas o ignorei.

— Vê se me esquece — disse tentando me safar do seu olhar zombeteiro e levantei imediatamente da mesa. — A gente se vê mais tarde — me despedi e sai rumo ao nosso quarto. "Que diabos foi isso?"

Nosso dormitório era bem pequeno, mal cabiam nossas coisas, mas ao menos não precisávamos dormir com pessoas desconhecidas. O cômodo era mobiliado apenas pelos nossos sacos de dormir e nossas mochilas no chão, além de algumas roupas penduradas numa arara improvisada. Alguns dos meus livros favoritos estavam numa caixa protegida e em outra caixa jaziam alguns pertences de Adam. A única iluminação era proveniente de pequenos buracos nas paredes e no teto que permitiam a luz exterior entrar e também deixavam o quarto bastante quente. Senti saudade das pedras frias banhadas pelo córrego de nossa caverna na floresta e me senti triste. Adam podia estar muito feliz aqui, porém eu nunca havia me sentido tão infeliz.

Esse lugar fazia com que eu me sentisse deslocada, fora de foco. Por mais que houvesse pessoas maravilhosas, isso eu não podia negar, sentia uma vontade imensa de me isolar novamente no meu próprio buraco. Acho que era isso, esse lugar não me pertencia, não era meu. E não estar no controle era algo novo para mim. Além do mais, ver o corpo de Grace zanzando por aí com a tal Peregrina dentro ainda era muito doloroso. Havia olhos prateados para onde quer que eu olhasse nessa caverna e isso era um constante lembrete do que ocorrera comigo e Adam no passado. Senti falta dos meus pais e da minha vida, lembrando dos momentos bons. A saudade era algo que podia matar mais do que uma arma carregada e lembrar deles trouxe lágrimas aos meus olhos e uma pontada lacerante no peito.

— Samantha, posso entrar? — Adam perguntou do outro lado da cortina azul que servia como porta. Ele parecia preocupado.

— Sim, irmão — respondi limpando as lágrimas que teimavam em rolar no meu rosto.

— Você está bem? Saiu tão apressada da cozinha que nem terminou seu café da manhã. Eu te trouxe uma maçã — ele me estendeu a fruta e eu sorri.

— Sim, estou bem. Obrigada. Estava pensando em nossos pais... — respondi chorosa.

— Sam, você precisa esquecer o que aconteceu. Nós estamos aqui, não estamos? Eu estou bem e você também. Eles se foram e você precisa superar.

— Eu vou tentar — falei não muito convicta. Mas eu precisava mesmo deixar o passado para trás, desse modo prometi a mim mesma parar de pensar nos dias sombrios.

Acabei passando o dia no quarto, relendo livros velhos e pensando na vida. À noite, jantei em silêncio e afastada de todos, mas quando já estava saindo de fininho Trudy acabou me convencendo a ajudá-la e me fez sentar.

— O que você quer que eu faça? — perguntei para a mulher que, apesar do meu mau humor, apenas sorria.

— Estenda e estique as mãos — ela ordenou e começou a enrolar o fio de lã entre elas, fazendo do meu braço um novelo.

— Você vai tricotar e quer que eu segure a linha?

— Sim, Samantha. Vou fazer uma coberta para o seu irmão para quando as chuvas chegarem.

Fiquei paralisada com o que ela disse. As chuvas demorariam meses para acontecer. Será que a mulher pensava que ficaríamos ali por tanto tempo?

Não dei ouvidos aos seus devaneios e continuei lá parada feito uma estátua enquanto ela tricotava. De repente, uma movimentação na cozinha chamou minha atenção. Alguns homens se deslocavam desconfiados em todas as direções e pareciam não querer chamar a atenção, o que era muito suspeito. Observei os outros presentes na cozinha e eles pareciam não desconfiar de nada.

— Trudy, com licença — pedi educadamente, algo fora dos padrões Samantha de ser. A mulher deve ter ficado assustada porque respondeu apenas com um meneio de cabeça.

Sai em disparada, a curiosidade me consumindo. Algo estava errado, eu podia sentir. Procurei Adam discretamente e ele estava no quarto de Jamie jogando damas. Passei furtivamente e segui em frente.

— O que está acontecendo? — peguei Ian de surpresa.

— Paige sumiu há horas. Andy está desesperado.

Com medo de Paige na realidade ter sido pega por buscadores, retirei a arma que eu mantinha escondida no fundo da mochila e a coloquei na parte de trás da cintura, por dentro da roupa. O metal frio contra a minha pele não era reconfortante, apesar da sensação de proteção que ele oferecia. Desse modo saí com os outros em sua busca, e a sucessão de acontecimentos a seguir foi mais do que eu podia imaginar. 

Encontrei Clint socando Cal e Paige no chão desacordada. Levou só alguns segundos para eu processar toda a informação: Clint sequestrara Paige e Cal estava tentando defendê-la. Mesmo trêmula, disparei um tiro certeiro. Apesar de tudo rezei para que o homem não morresse, minhas mãos já estavam demasiadamente sujas.

Depois disso passei por inúmeros momentos esquisitos. Primeiro, Cal me acusou de querer matar o homem, o que eu realmente nunca quis, embora ele merecesse. Segundo, a alma me pediu desculpas.

“Perdoe-me, por favor. Eu não devia ter dito aquilo. Me desculpe”.

“Perdoe-me por julgá-la mal”

Tive pena dele. Cal parecia realmente confiável e arrependido. Mas ao mesmo tempo meus instintos não me deixavam sentir a tranquilidade que todos emanavam na presença das almas. Tudo era muito difícil e intenso para mim. Eu me esforçava para não ficar perto dele, para não dar uma chance dele pensar que eu era legal, não queria derrubar meus muros protetores. Porém, vez em quando me pegava fitando-o curiosa e pensativa. Cal era carinhoso com os outros, prestativo e dono de uma beleza singular. Ele tentara salvar Paige, desastrosamente, mas tinha provado o seu valor. Sunny me incomodava. Peregrina me incomodava. Cal me incomodava, entretanto era diferente.

 

Eu não devia estar pensando nele — me dei conta mais uma vez enquanto escovava os cabelos pela manhã. Esses pensamentos estavam ficando frequentes e começavam a me atormentar.

— E aí, como você se sente hoje? — Adam perguntou bisbilhoteiro, curioso por conta do meu olhar perdido. Ele tinha acabado de acordar e seus olhos ainda estavam inchados.

— Estou bem não se preocupe. Ainda me adaptando, mas...

— Você consegue, irmã. Vamos comer? — ele cortou o assunto e achei graça de sua versatilidade.

Nós fomos rápido para a cozinha, já que eu teria de ajudar a preparar o almoço enquanto meu irmão lavaria a louça. A cozinha ainda estava cheia e assim que entrei Cal me direcionou novamente aquele olhar azul-prateado.

— Ainda é cedo, mas vamos logo preparar o necessário para o almoço devido a grande quantidade — pronunciei para quem estivesse encarregado de prepará-lo junto comigo. — Peregrina, quero você corte as cebolas e outros legumes e você Luz do Sol Através de alguma coisa, me ajude com as panelas.

— É luz do Sol Através do Gelo, mas você pode me chamar de Sunny se quiser — a parasita de Kyle sorriu docemente para mim. — E você também pode chamá-la de Peg — ela continuou se referindo a Peregrina.

— Apelidos são para amigos íntimos e eu não sou amiga de vocês — respondi, amarga. As duas então se entreolharam e resolveram ficar caladas.

— Samantha, Adam, hoje eu tenho uma outra tarefa para vocês dois. Quero que vocês ajudem os trabalhadores no campo leste. Adam, você carrega água para irrigar o solo e você, Samantha, encha todas as garrafas com água fresca e depois distribua para quem tiver preparando a terra — Jeb sentenciou sem nem esperar nossa confirmação. O velho adorava mandar em tudo e todos.

— Pode deixar com a gente — Adam respondeu alegre como era de costume. Eu apenas revirei os olhos.

— E mais uma coisa — Jeb continuou. — Após terminarem o serviço quero que vocês limpem alguns dos espelhos que cobrem a plantação. Adam, pegue a escada no depósito e eu acho melhor a Sam subir, pois ela é mais leve que você — o velho disse para meu irmão e depois piscou para mim.

Maluco. Eu gostava de gente maluca.

— Tudo bem, Jeb! — ele confirmou por nós dois. Fomos juntos até os rios e enquanto ele enchia os baldes eu enchia as garrafas plásticas. Adam vez ou outra segurava o riso, pois ele me conhecia melhor do que ninguém e sabia o quando odiava quando alguém me dizia o que fazer.

O campo oeste estava bem cheio, pois Jeb designara quase todos os homens para auxiliar o preparo do solo. O calor no lugar era insuportável e percebi o quanto aquelas pessoas precisariam se hidratar com frequência. Eu pensei que teria que distribuir água apenas umas duas vezes, mas pela quantidade de gente e de calor calculei que teria que voltar aos rios para repor a água das garrafas umas dez vezes.

Depois de umas duas horas eu já tinha dado água pelo menos três vezes para cada pessoa, no entanto havia evitado Cal à manhã inteira. Ele ficava me olhando alegremente e isso me deixava envergonhada. Porém, percebi que ele não parecia muito bem quando abaixou a cabeça e se inclinou sobre o cabo da enxada. Resolvi dar uma garrafa a ele, pois se ele desmaiasse for falta de hidratação com certeza Jeb não iria me deixar em paz.

— Você quer? — perguntei e Cal se espantou quando ouviu a minha voz. Ele agradeceu sorrindo, mas eu não correspondi. Achei melhor não dar espaço para que ele se sentisse meu amigo. Entreguei outra garrafa a Jared e uma para Aaron, e o último me lançou sorriso safado e um olhar luxuriante. Apenas respirei fundo e contive minha vontade de socá-lo, pois a última coisa que eu desejava era ser cortejada em pleno fim do mundo.

Jeb veio verificar o serviço e me liberou da função dizendo que os espelhos precisavam de limpeza urgente. Adam, junto com outros rapazes, já havia trazido a escada, alguma coisa usada há décadas por alguma concessionária de energia,  e senti um calafrio quando a vi. Ela parecia meio solta em algumas parte e lascas de madeira estavam se soltando. Não parecia nada segura, mas era o que tínhamos.

Subi em direção aos espelhos com apenas uma mão, pois com a outra segurava um balde e algumas flanelas. O sol era refletido pelas placas e por isso semicerrei os olhos. — Eu odeio você, Jeb! — vociferei e apenas escutei sua risada rouca. Comecei a limpar os mais próximos a borda, tentando não olhar para os metros abaixo de mim. A escada estava encostada precariamente na beirada da abobada e a única segurança provinha dos braços de Adam que segurava sua base lá embaixo.

— Onde ela está! — alguém gritou e reconheci a voz como sendo a de Sheron. Olhei para baixo e vi a ruiva indo em direção a uma Candy que semeava a alguns metros de meu irmão no chão.

— Você precisa parar de dar em cima dele! — Sharon gritou e Candy apenas olhou-a, envergonhada. — Você não tem vergonha na cara não, sua dissimulada? — ela se aproximou de Candy apontando o dedo em seu rosto.

— Eu não entendo... — Candy se defendeu, todos os olhares nelas, contudo eu resolvi dar mais atenção ao meu serviço do que a uma briguinha de comadres. Porém, de repente as duas se engalfinharam e Sheron pegou Candy pelos cabelos, arremessando-a na direção de Adam.

Ele instintivamente tentou segurá-la e ambos acabaram caindo, mas não sem antes esbarrarem na escada onde eu estava. Segurei-me nas correntes que prendiam os espelhos no teto enquanto via a escada se espatifar no chão e se partir ao meio. Eu agora estava pendurada a muitos metros do chão.

— Tragam outra escada! — Adam gritou desesperado. — Alguém faça alguma coisa.

— Não há outra! — Alguém respondeu aflito.

Ótimo, eu agora não tinha como descer e para piorar a situação os espelhos começaram a estalar. As correntes não estavam mais me aguentando e o meu peso iria fazer com que todos os espelhos quebrassem e caíssem. Eles eram a única forma de iluminação e lembrei que Jeb havia dito uma vez que demorou décadas e muito trabalho para prendê-los todos no teto. E eu estava prestes a destruir tudo isso.

Olhei para baixo mais uma vez. Quantos metros? Espero que haja curar e corta dor suficiente. Isso se eu sobreviver.

Respirei bem fundo, contei até três. E me soltei. Adam deu um grito que rasgou todo o ar.




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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Bjos e até a próxima.



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