Convergente II escrita por Juliane


Capítulo 36
Ela




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Uma sirene odiosa soa machucando meus ouvidos e levanto sobressaltada. Num primeiro momento imagino que deve ser um alarme de incêndio, ou qualquer outro tipo de alerta que indique alguma situação de emergência ou perigo, mas com o passar dos segundos, vou recobrando a consciência e concluo que é apenas o despertador...

Todos a minha volta vestem seus uniformes apressadamente, em sua maioria completamente despudorados, o que não me surpreende, haja visto o período em que passei em treinamento na Audácia... Eu imito suas ações e os sigo até o refeitório, um pavilhão repleto de longas mesas com bancos presos por barras de metal, de certa forma lembra um pouco a Audácia, talvez o ruido das conversas altas demais, o tilintar de talheres e copos... Essa atmosfera é um tanto reconfortante, ser apenas mais uma na multidão... Pelo menos por enquanto.

Assumo minha posição na longa fila para o buffet, com uma bandeja de metal nas mãos.

_ Bom dia Tris!. - Cumprimenta Celina, assumindo a posição na fila, logo atras de mim.

_ Bom dia Celina. - Respondo.

Ela sorri ajeitando seus óculos de lentes grossas e armação preta. A segunda vista, eles parecem grandes demais para o pequeno e redondo rosto, agora que sua vasta cabeleira está presa num coque atrás da cabeça.

_ Como foi sua primeira noite no alojamento? - Ela pergunta tentando manter uma conversa enquanto nos servimos do buffet, que diga-se de passagem, parece bem menos atrativo que o do restaurante.

_ Tranquilo, tão logo as luzes foram apagadas eu já estava dormindo.

_ Que bom que ninguém lhe pregou nenhuma peça...

_Por quê?

_ No meu primeiro dia, alguém se deu ao trabalho de pôr todas as peças do meu uniforme no vaso sanitário, de modo que apresentei-me para a minha primeira aula de shorts e regata e recebi uma advertência da Sargento Murphy, além de todo o constrangimento que tive de passar...

_ Você descobriu quem foram os responsáveis?

_ Não, mas passei a dormir com o meu uniforme em baixo do travesseiro... - Ela diz sorrindo.

Passamos por algumas mesas parcialmente ocupadas, mas Celina as evita optando por uma completamente vazia junto a porta de acesso da cozinha, o que faz com que esse seja um local horrível para sentar, já que é uma área de passagem, grande circulação e para piorar ainda mais a situação, as portas são do tipo vai e vem, então cada vez que alguém as atravessa, a porta do lado esquerdo bate nas costas de Celina, mas ela parece nem ligar, de modo que, resolvo não tocar no assunto. Tomo o cuidado é claro, de sentar-me a sua frente, do outro lado da mesa, para evitar as portas.

_ Eu sei que este não é o lugar mais privilegiado do refeitório, mas posso garantir que é o mais tranquilo, aqui ninguém senta, então podemos ficar à vontade. Além do mais a vista dqui é privilegiada, você poderá ver todo o refeitório daqui. - Ela justifica.

_ Você não tem amigos? - Assim que as palavras saem da minha boca, imediatamente me arrependo, os olhos tristes e o sorriso amarelo que ela lança em minha direção só confirmam que realmente falei demais.

_ As pessoas por aqui não estão muito interessadas em fazer amizades, os grupos que você vê por aí geralmente são de pessoas que já conviviam na vila.

_ Você não mora na vila?

_ Não, meu pai é geneticista aqui Base, temos um pequeno apartamento anexo ao laboratório onde ele trabalha.

_ Entendo... E a sua mãe? Trabalha com ele?

_ Na verdade minha mãe morreu eu ainda era um bebê. Somos só nós dois.

_ Sinto muito. - Tento me desculpar, já que mais uma vez eu falei demais.

_ Não, tudo bem. - Ela diz, sorrindo.

_ Há quanto tempo você iniciou os cursos?

_ No início do semestre, há dois meses. Na verdade, eu gostaria de ter ingressado no ano passado, mas tive de convencer meu pai. Ele é contra tudo o que na opinião dele pode vir a representar um risco iminente para a minha vida. - Ela fala dando ênfase nas palavras para ilustrar de alguma forma o instinto exagerado e super protetor do pai.

_ Bom, não pode culpa-lo por preocupar-se com você.

_ Não mesmo. - Ela sorri, sinceramente desta vez.

_ Com licença, esses lugares estão ocupados?

Levanto os olhos e não posso acreditar no que vejo, Alejandra e as outras duas garotas depositam suas bandejas na mesa e ocupam os lugares vagos.

_ Na, na... na verdade não. - Celina responde gaguejando, apesar de que, elas não esperavam de fato por uma autorização de nossa parte para ocupar os acentos.

Eu apenas levanto as sobrancelhas na direção de Alejandra.

_ Ah, sim, que falta de educação a minha, estas são Georgia e Daphne. Garotas essa é a famosa Beatrice Prior! - Ela nos apresenta, dirigindo-se a mim num tom exageradamente solene e jocoso ao mesmo tempo.

As garotas que ela me apresenta são as mesmas que estavam ao seu lado no Centro de Convivência, uma ruiva de cabelos encaracolados domados por coque severo e uma loira, magrela e desengonçada, ambas sorriem na minha direção e eu aceno com a cabeça.

Celina pigarreia, dando indicação de que gostaria de ser apresentada. Inocente, nem se quer percebeu a tensão instaurada entre nós.

_ Alejandra, Georgia e Daphne, está é Celina. - Eu a apresento, era a deixa que ela esperava.

_ Prazer em conhecê-la meminas. - Ela diz sorridente e exageradamente receptiva, mas elas a ignoram.

_Então Tris, como está sendo seu primeiro dia como recruta? - Alejandra indaga.

_ Tudo bem, imagino que deva ser o seu também!?

_ Oh, não. Na verdade eu frequentei algumas aulas no início do semestre, pensei em desistir, mas então me dei conta do quanto meu país precisa de mim, então retomei os estudos para poder servi-lo como militar. - Ela diz solenemente, como se de fato pudesse convencer-me de que essa foi sua verdadeira motivação.

Não consigo evitar um meio sorriso que surge irônico na minha boca, ela percebe e estreita os olhos na minha direção.

_ Atitude louvável! Quem dera todos pensassem assim! - Diz Celina, no último grau de ingenuidade que alguém pode atingir, mesmo na sua idade. Ela deve ter o que uns 16 ou 17 anos?... E mais uma vez é ignorada.

_ Vejo que você recuperou-se rápido. Fico feliz por isso. - Me dirijo a Alejandra lançando-lhe um olhar apreciativo..

_ Ah sim, não era tão grave quanto aparentava ser.

_ Não foi o que me pareceu no dia do julgamento. - Digo tentando ilustrar que a minha referência é à sua atitude e não ao seu ferimento.

_ Tenho uma capacidade quase que infinita de regeneração... É como dizem: "aquilo que não mata, fortalece." - Ela responde com a ameça implícita na voz.

Eu aceno levemente com cabeça, mantendo um meio sorriso cínico nos lábios.

_ Então, o Enrico já te mostrou a sua verdadeira face? - Ela joga a isca e as outras garotas soltam risinhos estridentes e muito irritantes.

_ É, acho que vocês se merecem. - Digo e levanto da mesa de maneira teatral, para sustentar meu descontentamento com a menção do nome dele.

_ Ei, espere! Não é com você, o problema é ele, é assim com todas! - Ela fala num tom sarcástico, como se fosse capaz de causar-me algum ciúme com a menção de que existem várias garotas... Por isso preciso entrar na brincadeira e caprichar na encenação.

_ Não me interessa! - Digo, o mais furiosa que consigo parecer e saio pisando firme, deixando a pobre Celina entre os corvos.

******

As 7 horas em ponto estou reunida com a turma de recrutas, não em uma sala de aula, como de fato eu esperava. Estamos num descampado que fica nos fundos do alojamento, neste momento ouvindo as instruções do Tenente Dunkan sobre como manusear uma arma. A maioria dos meus colegas estão com os olhos arregalados, alguns poucos tem uma excitação genuína estampada nos olhos de quem não vê a hora de segurar um instrumento tão poderoso entre as mãos. E se bem lembro, já me senti assim, mas agora que já experimentei a sensação de empunhar uma arma, a sensação de poder, que foi sobrepujada pela repulsa e pelo remorso por ter tido que matar, digo que já aprendi muito mais do que eu gostaria.

O Tenente Dunkan organiza a turma em 4 grupos de 15 e instrui o primeiro grupo a pegar as armas e se posicionar diante dos alvos, então ele os autoriza a praticar, enquanto o resto de nós observa. Já se passaram mais de 10 minutos e ninguém consegue acertar o centro do alvo, a maioria não passa nem perto, é notória a frustração estampada no rosto do Tenente Dunkan. O próximo grupo é convidado a tomar as posições, eu estou entre eles. Ele observa enquanto tento segurar a arma com as duas mãos sem sentir o desconforto ocasionado pelo ombro ferido. O impacto dos primeiros disparos reverbera pelo meu braço esquerdo de tal forma que todas as minhas terminações nervosas começam a protestar. Desisto de utilizar as duas mãos, me posiciono de lado e utilizando apenas a mão direita, com a arma no mesmo nível do meu nariz, fecho o meu olho esquerdo para ajustar melhor a mira e atiro freneticamente no centro do alvo, até que os projeteis tenham causado um enorme buraco no meu boneco de papel. Então subitamente os alvos começam a mover-se, vindo em minha direção, percebo que há um padrão circular no movimento deles, com a mão livre pego outro pente na mesa de apoio enquanto acabo com esse, atirando freneticamente em todos os alvos que se aproximam. Ejeto o pente usado e insiro o novo e continuo acertando um a um dos alvos que se projetam na minha direção, até que por fim eles param de mover-se tão subitamente quanto começaram, e pelo que vejo, provoquei grandes estragos em todos eles. Quando me dou conta do silêncio, olho em volta e vejo que todos estão calados, olhando para os alvos destruídos, completamente estupefatos e o Tenente Dunkan está literalmente de boca a aberta.

Então o som de palmas rompe o silêncio. Meus colegas recrutas estão batendo palmas para minha atuação, Celina sorri animada, Alejandra olha com ar de desdém e os demais parecem realmente impressionados. Não foi essa a minha intenção, concentrei-me no objetivo, esquecendo de tudo ao redor, simples assim. É isso que farei.

_ Já chega! Já chega! - O Tenente Dunkan silencia as palmas gesticulando com as mãos e quando consegue arrefecer os ânimos, ele caminha em minha direção.

_ Recruta Prior, receio que as aulas práticas de habilidade em combate serão um tanto entediantes, visto a sua habilidade com armas. O que mais devo saber a respeito das suas capacidades? - Ele quis saber.

_ Senhor, além de saber atirar com uma arma, lanço facas e sei lutar.

_ Gostaria que me mostrasse suas técnicas.

_ Ainda estou impossibilitada de lutar, não recebi alta médica, mas assim que que for possível estarei a disposição.

_ Certo. - Ele fala assentindo com a cabeça, o respeito estampado em seus olhos.

_ Agora, os demais prossigam. - Ele orienta, já dando de costas para mim.

Alejandra toma sua posição esbarrando no meu ombro, felizmente não foi o machucado.

_ O centro das atenções... Sempre, não é mesmo?! - Ela diz ironicamente num tom de voz baixo o suficiente para ser ouvido apenas por mim.

Não respondo apenas sorrio em retribuição.

*********

Confiro o meu relógio de pulso ansiosa, são 13 horas. Celina está sentada ao meu lado, rabiscando distraidamente seu caderno de anotações.

_ Quem é o instrutor do curso? - Pergunto deliberadamente, tentando fazer com que a pergunta soe o mais casual possível.

_ As aulas teóricas são dadas pelo Capitão Finth, mas as aulas de simulação de voo que começaram há duas semanas, tem sido ministradas por um rapaz lindo, o nome dele é Enrico, ele é piloto e tem um cheiro tão bom, almiscarado com um toque de baunilha! - Ela fale de uma forma sonhadora, entre suspiros...

Enrico, arrasando corações! O pensamento cria uma pequena menção de sorriso no meu rosto.

_ Espera aí! - Ela diz e está corada, faz uma pequena pausa, imagino que para organizar as idéias e então prossegue:

_ Enrico?! É o mesmo garoto por quem você e a Alejandra se desentenderam no refeitório?! Você é namorada dele? - Ela pergunta visivelmente muito encabulada.

_ Não, não, pode ficar tranquila, Enrico e eu fomos amigos. - Respondo.

_ Foram amigos? - Ela pergunta arqueando as sobrancelhas que escapam por cima da armação dos seus óculos.

_ Sim, é uma longa história. Um dia desses eu conto a você.

_ Vou querer saber todos os detalhes! - Ela diz esfregando as palmas das mãos uma na outra.

Nesse momento Enrico entra na sala acompanhado do Capitão Finch. Todos os olhares femininos seguem os seus passos. Não tinha me dado conta do poder que ele exerce sobre as garotas, não me admira a obsessão de Alejandra em ter como seu, alguém que é objeto de desejo de todas. Ele lança um rápido olhar na minha direção, enquanto o Capitão Finch discorre sobre o painel de controle dos jatos e suas funcionalidades. Alejandra que está sentada há quatro carteiras a minha esquerda, sorri descaradamente na direção de Enrico, que por sua vez, a encoraja dando-lhe uma piscadela de olho.

Bom garoto! Faça com que ela se sinta especial.

_Todos de pé! O Soldado Enrico os conduzirá até o hangar, para ilustrar tudo o que acabamos de falar. - Diz o Capitão Finch enquanto dirige-se para porta.

No hangar Enrico toma a dianteira e nos instrui a nos dividirmos em grupos de 4 pessoas. Temos à disposição dois jatos sem a carcaça de metal, somente motor, painel e alavancas, dez jatos inteiros, da força aérea, em perfeito estado de utilização, para estudo e alguns componentes que imagino integrarem o arsenal de ataque dos aviões.

Celina, e mais dois rapazes juntam-se a mim e nos dirigimos para um dos 10 jatos inteiros e temos a oportunidade de apertar os botões, controlar o manche, entender o radar projetado pelos MFDs, seguindo as instruções de Enrico, que passeia entre os grupos para tirar as dúvidas e surpreender os recrutas com perguntas complicadas, sobre procedimentos simples, como por exemplo, o passo a passo da pré-decolagem... E a julgar pelo desempenho geral, imagino que o um ano é pouquíssimo tempo para que eles estejam prontos para alçar voo sozinhos... Literalmente.

_ Tris, não estou entendo... O que afinal, faz parte deste maldito MDFs? - Pergunta Jared um dos rapazes do meu grupo. Ele é alto, forte, a pele branca coberta por sardas e os olhos verdes, quase azuis, o nariz é longo e delgado, o cabelo louro muito bem aparado. Percebo Celina contente por tê-lo no grupo, ela reage de forma exagerada a presença masculina...

_ Jared, na verdade a sigla correta é MFDs, e são mostradores multifuncionais, aqui, bem aqui você poderá identificar ameças nesse radar, ao clicar aqui você abre o arquivos com os dados da sua missão. A principal função é facilitar a sua vida, permitir que você tenha acesso a todas as informações de que precisa independente das condições do tempo. E você terá acesso a ele nesse painel de controle ou então no visor do seu próprio capacete. - Explico, ao mesmo tempo em que indico no painel do qual estamos falando.

_ Alguma dúvida aqui? - Enrico pára entre nós com os olhos interrogativos e sérios.

_ Não, nada, a Tris já nos explicou. - Jared responde.

_ Hum, que bom. Mas caso hajam mais dúvidas não exitem em chamar-me, estou aqui para isso.

_ Instrutor! - Alejandra chama.

Enrico vai até Alejandra e então ela aproveita a situação para tocá-lo o máximo possível, esbarrando o braço aqui, um ombro ali e ele corresponde, põe a mão aparentemente de forma distraída no ombro dela enquanto indica o local onde deve prestar atenção. E as coisas transcorrem assim ao longo de toda aula, Alejandra monopolizando a atenção de Enrico e ele pacientemente respondendo, sorrindo, entrando no jogo dela. Espero sinceramente que Enrico consiga evoluir dentro do plano...

_ Estou impressionado com o seu conhecimento em relação aos jatos e principalmente com a sua habilidade com as armas. - Jared comenta enquanto nos encaminhamos de volta ao alojamento.

_ Nunca vi ninguém atirando assim. - Castor, o outro rapaz do meu grupo, conclui o pensamento do colega.

_ Na verdade você nunca tinha visto nem uma arma de perto, quanto mais alguém atirando. - Jared corrige Castor em tom de deboche.

_ Obrigada. Mas não deviam ficar tão impressionados, de onde eu vim esses treinamentos faziam parte do nosso processo de iniciação, junto a facção a qual escolhi pertencer. - Eles me olham intrigados.

_ Ah... Sim! Claro! É obvio! A garota que veio do experimento Chicago. - Jared dirige-se ao Castor.

_ Não é justo, você nem devia passar por esses cursos idiotas, devia ganhar uma farda, medalhas e uma alta patente dentro da força aérea. - Diz Castor, lisonjeiro demais para o meus gosto.

_ É talvez... Mas aqui, sou só uma recruta assim como vocês. - Digo e aceno com a cabeça na intenção de me despedir e me dirigir o mais rápido possível para a Central de Comando, encontrar o General Sparks.

Enquanto corro observo ao longe que Enrico e Alejandra ficaram para trás para conversar. Viro a direita na bifurcação no final do corredor com a esperança renovada. Talvez as coisas aconteçam antes até do que eu imagino.

********

_ Pontualidade britânica Recruta Prior! Ouvi essa expressão em um velho filme que assisti há muitos anos. Confesso que num primeiro momento não compreendi do que se tratava, mas tempos depois acabei por descobrir que esta era uma referência a nacionalidade ao cidadãos nascidos no Reino Unido... Que viviam sobre o domínio da cora... Parece que os nativos eram de fato pontuais. - Ele divaga aparentemente de bom humor enquanto me conduz a sala de arquivo morto.

A sala de fato não é nenhuma novidade para mim, um cheiro pungente de bolor, uma porção de papeis velhos guardados em pastas poeirentas separados por seções, categorias e ano. Imagino se é possível encontrar algo de utilidade aqui.

_ Recruta Prior, o trabalho aqui é simples, vê aquela pilha de papéis? - Ele aponta para uma montanha de papel largada displicente num canto qualquer.

_ Sim. - Respondo.

_ Os papeis são basicamente notas de compras, preciso que separe por mês e setor. Quando me refiro a setor quero dizer: Hospitais e saúde, qualquer despesa relacionada a esta natureza, alimentação e defesa que será basicamente tudo aquilo que não se enquadrar nas outras categorias. Entendido?

_ Sim, senhor.

_Estarei na sala ao lado. - Ele diz, retirando-se, fazendo da pequena frase um lembrete de que estou sob constante vigilância.

Imediatamente lanço-me na pilha de papéis, mas é difícil achar alguma coisa quando não sabe o que procurar. Pondero se realmente houvesse o que encontrar o General Sparks não delegaria a mim a tarefa de arquivar estes documentos, mas por via das dúvidas mantenho os olhos atentos.

Depois do que acredito ser umas duas horas, separando e organizando pilhas de notas de cilindros de oxigênio, medicamentos de toda natureza, agulhas, seringas, soros, todos provenientes de uma empresa chamada CI&CGQ (Chemical Industry & Chemical Genetics Quarterly). Observo que a maioria delas tem um endereço: Eastern Point Road, Groton, CT 06340, Estados Unidos, e neste endereço onde deveria haver a sigla NY, está a sigla CT, que não faço ideia do que significa, mas tenho certeza que deve indicar o nome de um experimento, ou local. Esta indústria não é daqui ou de Chicago, então me pergunto onde mais existe vida neste país? Se bem me recordo, quando David nos mostrou o mapa do planeta, no Departamento de Auxílio Genético, as luzes que representavam vidas humanas, antes acesas e brilhantes, apagaram-se restando algumas poucas luzes que povoavam extensas regiões, distantes uma das outras. As demais notas de alimentos todas tem endereço local com a sigla NY, as ordens dos produtos de defesa também são provenientes de Nova York, de modo que estas não me chamam a atenção.

Com tudo pronto e organizado, dirijo-me a sala ao lado, afim de solicitar uma nova tarefa, já que concluí o trabalho que me foi designado. Enquanto me aproximo, ouço a voz do General Sparks:

_ Ela está bem aqui, debaixo dos meus olhos. Eu garanto.

Não ouço a voz do outro lado da linha, mas sei que se referem a mim.

_ Desculpe Senhor Presidente, mas pelo que pude acompanhar e agora convivendo com ela, lhe garanto, ela é apenas uma adolescente desesperada, tentando salvar a própria pele, não imagino que tenha planos além de fugir para o namorado.

Uma grande pausa, segue, creio que o Presidente esteja lhe dando alguma instrução.

_ Sim Senhor, eu entendo a gravidade, lhe garanto que como recruta ela estará sob constante vigilância.

Mais uma pausa, dessa vez rápida.

_ Mas Senhor, perdoe a minha intransigência, mas gostaria apenas de entender, Se julgas que ela seja uma ameaça, porque não a eliminamos?

Ouço gritos e blasfêmias quase inintelegíveis, imagino que o Presidente deve ter se irritado com a sugestão do General Sparks, mas não consigo compreender o motivo pelo qual ele me julga útil a ponto de me manter viva.

_ Peço desculpas Senhor, sei que não cabe a mim decidir. Não vai se repetir. Eu prometo!

Aguardo por mais informações, mas o Presidente desligou, e agora Saprks olha para o aparelho de telefone em sua mão com tanta raiva, que imagino que em algum momento ele vai lançá-lo na parede com tanta força que o objeto vai virar poeira. Mas ele não o faz, apenas resmunga:

_ Mártir, como é que uma adolescente idiota pode incitar uma rebelião?! Todo mundo pensa que ela está morta e de mais a mais, é simples, basta reiniciá-los e ninguém vai lembrar de quem ela foi...

Nesse momento, só por precaução retorno a sala de arquivo morto, pego uma "nota de defesa" mais especificamente a que fornece vestimentas e equipamentos de proteção individual e uma nota da CI&CGQ, dobro e coloco dentro do meu coturno. E saio pela porta da forma mais ruidosa que consigo, o General Sparks, percebendo minha aproximação, desliza sua cadeira de rodinhas para o corredor, parando de frente para mim, com uma sobrancelha arqueada, ele espera que eu me pronuncie.

_ General Sparks, já concluí a tarefa. Existe algo mais que eu possa fazer?

Ele confere o relógio.

_ Não, você está liberada por hoje, vou acompanhá-la até o alojamento.

_ Não é necessário Senhor, já sei o caminho.

Ele me encara com aqueles olhos serpentinos apertados, como se estreitando-os ele pudesse ver o que se passa dentro da minha cabeça.

_ Eu estou indo naquela direção, de modo que faço questão.

_ Certo, obrigada. - Digo com a minha melhor cara de paisagem.

Caminhamos em silêncio boa parte do percurso, então quando chegamos próximo ao alojamento ele para pigarreia, infla o peito e diz:

_ Recruta Prior, você está sendo vigiada! Não esqueça, eu saberei! - Ele fala, gira os calcanhares e desaparece no final do corredor.

Eu fico aqui, parada, por mais alguns segundos, pensando na conversa que ouvi entre ele e o Presidente, e de três coisas tenho absoluta certeza, o General Sparks o conhece, o Presidente detém muito poder sobre ele e se estou viva, aqui, respirando é porque o Presidente quis assim. Só me resta saber o porquê.

_ Tris?!

_ Sim. - Respondo enquanto viro na direção da voz masculina que me chamou pelo nome. Um rapaz franzino, moreno, cabelos, olhos e sobrancelhas negras como carvão, ele não deve ter mais do que uns treze anos.

_ Sou Carlo Espinoza, irmão de José. O Enrico pediu para eu te entregar esse bilhete. - Ele fala num tom de voz que é quase um sussurro e me estende a mão como se fosse me cumprimentar, entre seus dedos está um pequeno quadradinho de papel, uma folha que foi dobrada pelo menos umas dez vezes.

_ Obrigada! - Ele assente com a cabeça e desaparece correndo pelo corredor, imediatamente disfarço como se fosse amarrar os cadarços do meu coturno e então escondo o pequeno papel na meia, como fiz com as notas mais cedo.

Entro no alojamento, pego roupas e toalhas para um banho, dirijo-me ao vestiário, entro em uma das cabines privativas, tranco a porta, sento-me no vaso sanitário e puxo o bilhete de Enrico na meia.

" Tris,

Como sempre, você me convence a fazer coisas que muito provavelmente eu negaria à minha mãe. Mas bem, aqui estou eu, para dizer-lhe que tudo está ocorrendo a contento, escrevo agora da minha casa na vila, Alejandra está tomando banho, então você pode tirar as suas conclusões. Ainda a pouco conversávamos sobre poder e para provocar-lhe eu lhe disse que você tem poder para liderar uma rebelião, em Chicago ou em qualquer outro experimento em que seu rosto seja conhecido, então ela ultrajada deixou escapar que ela tinha a legitimidade do poder no sangue e que você não passa de uma pedra no sapato, que no tempo certo ela terá o prazer de se livrar. Tris, isso só me leva a crer que você está certa! Legitimidade do poder pelo sangue! Em outras palavras, ela disse, sou neta do Presidente! Outra coisa, vou ser rápido, porque ela desligou o chuveiro, marquei uma reunião na casa de José a meia noite, vamos esperar você. Encontre um jeito de sair, é importante.

Do seu, que acaba de vender a alma a uma Diaba... Enrico."

Pois é cara dele mesmo! Fazer piadas na situação em que nos encontramos. Mas não posso deixar passar despercebido o quão foi fácil para ele, uma hora chora, se declara, jura amor eterno e depois Alejandra já está no seu banheiro, enquanto ele muito provavelmente escreveu esse bilhete ainda deitado nos lençóis em que esteve com ela! Esse pensamento amargo atravessa minha mente e penso em Tobias, será que já me esqueceu também? Não, tenho certeza de que não esqueceu, eu vi seu sofrimento pelos monitores. Mas há quanto tempo foi isso? Uns nove meses atrás. Preciso sair daqui! O quanto antes.

Rasgo o papel em mil pedaços, jogo no vaso sanitário e dou a descarga, só saio da cabine quando tenho certeza de que cada pedacinho do papel foi tragado pela água. Tiro as roupas, as meias e os coturnos, enrolo as notas com as minhas meias e as coloco dentro do coturno. Ligo o chuveiro e deixo a água gelada cair sobre o meu corpo, para clarear as minhas ideias e levar embora toda a dúvida e aflição. Sou determinada! Sou capaz! Não sou uma adolescente desesperada que quer apenas salvar a sua pele! Eu sou aquela que ofereceu a vida em troca de manter a salvo aqueles que ama. Não posso me esquecer disso. Não posso duvidar disso nem por um segundo, se não eu vou enlouquecer. Resignada, respiro fundo, vamos lá!

******

Confiro meu relógio de pulso, são nove horas da noite, Celina tagarela sem parar sobre algo relacionado ao Jared, mas estou completamente desligada do papo, enquanto remexo a minha comida na bandeja sem intenção alguma de comer.

_ Ei! Ei! Terra chamando Tris! - Ela diz estalando os dedos bem enfrente ao meu rosto.

_ Desculpe Celina, estou com um pouco de dor de cabeça, acabei me distraindo, mas o que tem o Jared?

_ Bom eu pensei que talvez ele estivesse afim de você, afinal todos os garotos te olham de forma diferente, mas então quando você nos deixou para ir cumprir a sua pena ele esbarrou no meu ombro três vezes, olhou bem dentro dos meus olhos e disse: "Desculpe Celina, me com licença?": Tris, ele sabe o meu nome.

_ Nossa, que legal Celina! - Tento esboçar algum ânimo na minha voz.

_ Você acha que ele pode estar afim de mim?

_ Eu diria para você ir com calma. Os garotos são muito volúveis, uma hora se declaram pra você e na outra estão de baixo dos lençóis com uma... espera, do que eu estou falando? Esquece Celina! Com certeza Jared está afim de você, mas espere ele dar o primeiro passo. Okay?

_ Tris, você está bem? Do que você está falando? - Celina acompanha meu olhar e contempla a mesma visão que estou tendo.

Alejandra sentada em cima da mesa e Enrico sentado no banco entre as pernas dela. Não imaginava que fossem tão permissivos aqui.

_ Nossa! E pode isso? - Celina diz boquiaberta.

_ Pelo visto ela está acima do bem e do mal e quer provar isso. - Digo verbalizando um pensamento, muito mais que dando-lhe alguma resposta.

_ Do que você está falando, quem é ela?

_ Ex namorada que pelo visto foi promovida a atual. - Digo.

_ Era dele que você estava falando?

_ Quê?

_ Sim, quando você disse que os garotos são volúveis? - Ela explica.

_ É, digamos, que pode ser sim.

_ Ele se declarou pra você? - Ela está com os olhos arregalados em expectativa.

_ É, ele confundiu as coisas. Éramos apenas amigos, mas ele esperava mais.

_ E agora foi consolar-se nos braços dessa aí! - Celina conclui, ultrajada.

_ Garotos, Celina! Vai com calma. - Digo levantando-me e retirando minha bandeja da mesa, deposito seu conteúdo no lixo e vou caminhar um pouco ao ar livre. Celina me segue.Vai ser difícil ficar sozinha daqui pra frente!

Estamos do lado de fora do hangar, uma longa pista de pouso se estende até a onde a minha visão consegue alcançar, o céu está escuro, é noite de lua nova e as estrelas parecem lembranças tênues da minha vida antes disso aqui. Luzes laranjas, verdes e vermelhas piscam nos sinalizadores que se estendem por toda a pista. E me pergunto quando é que vou conseguir sair dessa prisão sem grades, quando poderei voltar para quem eu sou, para minha vida, sem ferir ninguém. Estou sempre caminhando na corda bamba, não importa a direção que eu tome sempre vou acabar ferindo alguém.

_Você ficou chateada né? - Diz Celina, com olhos compadecidos. Ah se ela soubesse.

_ Não Celina, Enrico é um bom amigo. Sinto falta de outra vida, muito além dessa cerca.

_ Ouvi algo a seu respeito, mas não quis perguntar, as lembranças as vezes são mais destrutivas do que nossa realidade. - Ela diz, fitando os seus próprios coturnos.

_ Quem disse isso a você?

_ Meu pai, ele evita responder quais quer perguntas que lhe faça sobre a minha mãe, e justifica que as lembras são como punhais que lhe rasgam o peito. Então eu não discuto.

_No meu caso, são as lembranças... As lembranças das pessoas que amo, da vida que tive, com todas as dificuldades que enfrentei, são elas que me mantém viva, são elas que me dão esperança.

_ Quando você fala em esperança, quer dizer voltar para eles.

Eu olho em nos olhos dela, imaginando se devo confiar a ela o que é obvio, para qualquer um que olhe com um pouquinho mais de atenção. Então deixo que descubra por conta própria.

_ Impossível, os mortos não voltam a vida.

Ela assente com a cabeça e volta seu olhar para o céu, desta vez em silêncio. Percorremos todo o perímetro, Celina está distraída, diferente de mim, que mantenho meus olhos bem abertos e atentos as movimentações dos guardas, buscando brechas para que eu possa sair sem ser percebida. Preciso descobrir qual horário será a troca de turno, quem sabe aí não está a brecha que preciso.

_ Celina, você sabe dizer se esses guardas ficam aí a noite toda? - Pergunto de modo casual.

_ Na verdade não sei não, acho que eles devem fazer algumas pausas para ir ao banheiro, ou comer alguma coisa. - Ele diz intrigada com minha pergunta.

_ Fico curiosa, se aqui for como na Audácia, após o curso imagino que teremos que escolher nossas profissões, então penso que seria importante sabermos como funciona o sistema de vigília, para o caso de termos que escolher entre os trabalhos disponíveis. - Tento desconversar.

_ É faz sentido. Tá vendo aquele guarda alí, o da esquerda? Bonitão ele. Quem sabe a gente deveria perguntar. - Ela diz, toda coquete e me pergunto se existem limites para os hormônios em ebulição de Celina.

Nos aproximamos do guarda em questão, sinto o calor subindo no meu rosto, imagino que minhas bochechas devam estar coradas, esse tipo de joguete não funciona muito bem para mim, não consigo flertar deliberadamente com ninguém, me sinto ridícula.

_ Olá, boa noite! Nós somos recrutas e gostaríamos de saber como funciona a vigília por aqui.

_ Se tem alguma dúvida sugiro que questionem seus instrutores.- O soldado responde secamente. Sem olhar diretamente na nossa direção.

Celina insiste, olha para ele sorrindo, enquanto enrola uma mecha de cabelo entre o polegar e o indicador da mão direita, claramente fazendo charme para o soldado.

_ Então Adam, esse é o seu nome, não é mesmo? Vocês trabalham demais! Acho que não conseguiria ficar horas e horas de pé, sem poder ir ao banheiro... Sem fazer um lanche, sentar um pouco.

O guarda abaixa o olhos de modo que possa manter um contato visual conosco. Ele é alto, másculo, forte , o maxilar quadrado, bem barbeado, o nariz expressivo e grande harmoniza bem com o queixo, adornado por uma pequena covinha, bem sutil, os olhos são castanhos, graves, quase tempestuosos. Deve ter uns 25 anos ou mais, o que me faz crer que Celina não tem um pingo de juízo e instinto de auto-preservação.

_ Olha aqui garota, não quero confusão pro meu lado. Não posso ficar de conversa durante o meu posto. - Ele diz num tom reprovativo enquanto nos dá uma olhada de cima a baixo, o que só faz as minhas bochechas corarem ainda mais, se é que isso é possível.

E quando por fim Celina desiste, e estamos prestes a girar os calcanhares em direção ao alojamento ele diz.

_ Ei! Recrutas! Entrego meu posto daqui há 2 horas. Quem sabe se vocês estiverem de bobeira por aí, eu possa responder todas as suas perguntas?! - Ele diz com um sorrisinho sedutor nos lábios e nos dá uma piscadela.

Celina sorri toda coquete acena na direção dele e diz.

_ Quem sabe eu consiga dar uma fugidinha!

_ Você não tem jeito mesmo Celina! Você nem o conhece! Como pode se insinuar dessa maneira para um rapaz de 25 anos ou mais?! - Eu a repreendo enquanto estamos nos dirigindo de volta ao alojamento.

_ Como você sabe a idade dele?

_ Não sei, mas é o que aparenta ter.

_ Ai Tris! Você viu como ele é lindo, e tá na cara que está afim de mim.

_ Meu Deus Celina! O que é que você tem, desde que nos conhecemos você só fala em garotos, só pensa neles!

_ Você também seria assim se tivesse sido educada a sua vida toda num dormitório, pelo seu próprio pai! - Ela diz num tom magoando, correndo de volta ao dormitório e me deixando para trás.

No fundo, esse desespero dela em encontrar uma paquera acabou me favorecendo. Acabo ficando com pena dela, afinal como será que eu seria hoje, se tivesse passado 16 anos presa em casa sendo educada apenas pelos meus pais. Não sei. Mas de qualquer forma decido deixá-la pensando um pouco nas suas atitudes e me concentro no plano. Confiro o relógio, são 21:45, pelo que o guarda falou, dentro de 2 horas ele entrega o posto, o que me faz crer que por volta de 11:45 a segurança estará mais vulnerável.

Disfarço o máximo possível e acabo deitando completamente vestida, ninguém percebe. Concentro-me na respiração dos demais, com os olhos fixos no estrado do beliche acima de mim. Repasso o plano em minha mente, esconder-me atrás do pavilhão do alojamento, esperar que os guardas entreguem seu posto, correr o mais de pressa possível em direção ao meu antigo dormitório, vestir roupas normais, pôr o uniforme militar em uma mochila, rumar para a vila. Depois para retornar, aí sim será outro problema, com o qual prefiro lidar depois.

Preciso conferir o relógio, mas tenho medo de ascender o visor, e se alguém estiver acordado?! Resisto a tentação de verificar as horas até que as respirações ao me redor se tornam pesadas, regulares, então ascendo o visor, 11:25. Rastejo silenciosamente para fora do cobertor e movo feito uma serpente preparando-se para dar o bote, sorrateiramente, com o mínimo de ruído possível engatinho entre os beliches, tomando o cuidado de não esbarrar em nenhum, embora o local esteja escuro feito breu. De repente alguém tosse, fico imóvel, congelada, apavorada com a perspectiva de ser pega a essa altura do campeonato em que ainda estou de mãos vazias! E se eu for apanhada?! O que direi? Preciso de uma boa desculpa... Então o silêncio me impulsiona a continuar. Só mais alguns metros e estarei diante das portas que dão acesso ao pátio perpendicular no qual estive com Celina. Empurro suavemente a porta de modo que abro apenas o necessário para espiar, Adam, o guarda, está inquieto, pela forma como se movimenta poderia jurar que ele está apertado por conta de suas necessidades biológicas. Ele confere o relógio e dá mais alguns saltos considerados um tanto constrangedores para um homem do seu porte e então corre para o lado oposto de onde me encontro, imagino que na direção do banheiro mais próximo, deixando seu posto livre. Reprimo o riso, não poderia contar com melhor sorte! Então aproveito a oportunidade me esgueirando atenta e vigilante em direção a porta de acesso ao corredor da área médica, o local que considero mais seguro para passar despercebida, já que todos os profissionais da área geralmente estão ocupados demais, concentrados demais, com os olhos fixos em suas pranchetas e tudo mais desde que não esteja sangrando, inconsciente estirado no chão, ou gritando de dor, são praticamente invisíveis.

Já no corredor, as fortes luzes fluorescentes ofuscam minha visão, deixando-me desorientada, mas apenas por um breve momento. Assim que me acostumo a luminosidade sigo andando calmamente pelos corredores, como se de fato eu pertencesse aquele lugar, como se eu não estivesse na verdade fugindo do alojamento em direção a uma reunião conspiratória contra esse Governo e principalmente contra esse Presidente cuja a clemência tem poupado a minha vida, embora essa atitude ainda seja uma incógnita para mim. Os corredores estão tranquilos, mas ao menor indício de movimento, meu coração dá um salto, que instintivamente ponho a mão no peito na intenção de mantê-lo ali, no lugar onde deve estar.

Enfim encontro a porta do meu dormitório, por um momento um pensamento desesperador me acomete: E se houver outra pessoa ocupando esse dormitório? E se a porta estiver trancada? Respiro fundo, inalando o ar, e ao soltar agarro a maçaneta e giro com toda a convicção que consigo encontrar. Está aberta, uma onda de alívio libera a tensão dos meus músculos até então rijos, mas aí lembro que não sei exatamente o que encontrarei do outro lado da porta e o meu estômago revira, sinto o gosto da bile na minha garganta quando espio pela pequena fenda que tive coragem de abrir... Escuridão, não enxergo nada, se há alguém aqui dentro, muito provavelmente estará dormindo. Esse pensamento revigora a minha coragem de modo que abro ainda mais a porta, com os olhos acostumados a escuridão, constato que o o quarto está vazio.

Meu primeiro impulso é ir até o interruptor e ascender a luz, mas então lembro-me das câmeras e contenho-me. Reviro as gavetas e pego as primeiras peças de roupas que surgem ao alcance das minhas mãos. Procuro desesperadamente por uma mochila, bolsa, ou algo em que eu possa depositar as minhas roupas de recruta, mas é em vão... Não vim para cá com nenhuma bagagem além da emocional, porque cargas d'água eu deveria ter uma mochila?! Então me dou conta de que as peças impessoais que recebi são grandes o bastante para se sobreporem ao uniforme certo e bem cortado que estou usando. Não perco mais tempo, visto tudo desajeitadamente e fico na dúvida se realmente vou convencer com essa aparência, já que não consigo ascender a luz, arrisco uma olhadinha no espelho do banheiro, onde é possível ver apenas a parte superior do meu corpo e na penumbra convenço-me de que não estou tão mal assim.

Confiro o relógio mais uma vez, 11:57 vou me atrasar, mas creio que já contavam com isso. Saio porta fora e sigo pelos corredores em direção ao centro de convivência, utilizo as docas que cortam todo o complexo, são mais tranquilas e utilizadas geralmente pelos trabalhadores encarregado da limpeza e pelos médicos e enfermeiros que precisam transportar pacientes com maior agilidade. Percorri esse caminho algumas vezes com Enrico quando ele apresentou-me a vila, e suas construções simples, pequenos casebres, simples que poderiam facilmente ser confundidos com o setor da Abnegação, não fosse pelas formas irregulares que diferem as construções uma das outras ou com Wes quando circulamos por aqui apenas com o intuito de ter alguma privacidade para conversar ou para cultivar aquele silêncio que não é nada constrangedor entre pessoas da mesma família, que confiam uma na outra... Wes, onde estará ele nesse momento? Dormindo, trabalhando, ou simplesmente preocupando-se por não ter-me mais sob suas asas?

O problema das docas é que todas as direções parecem tão iguais, as portas se confundem facilmente. A desorientação momentânea causa um pânico crescente que tento desesperadamente reprimir. Pense Tris! Pense! Cogito a possibilidade de voltar por onde vim e tentar outro caminho, mas aí me dou conta de que não me recordo ao certo qual destes 3 corredores me trouxeram até aqui, uma bifurcação com mais quatro corredores, um deles é a direção correta, as outras duas onde me levarão? Pense Tris, pense... Você já andou por aqui! Então me ocorre que talvez, essa seja uma boa oportunidade para tentar entender a bússola do meu relógio de pulso. Clico em alguns botões, o visor ascende, procuro a função, mas nenhuma delas surge com a imagem daquela rosa dos ventos que surge bem a minha frente quando aperto o pequeno botão de comando dos Mostradores Multifuncionais do Tiger F5, não preciso nem selecionar a opção de localização, automaticamente a rosa dos ventos aparece no lado esquerdo da minha visão, cintilando, linda, na cor azul, indicando todas as possibilidades a seguir, Norte, Sul, Leste, Oeste, e todas as suas variações, mas aqui, nesse relógio idiota, preciso adivinhar qual desses malditos botões que revelará qual é o caminho que devo tomar.

Nesse momento ouço a aproximação de alguém e reteso meu corpo instintivamente. Então uma senhora empurrando um carrinho com um enorme caixote e vestindo um uniforme que a identifica como da equipe de limpeza passa por mim como se não tivesse me visto. Eu a chamo, desesperada por uma resposta:

_ Senhora?!

Ela para, olha por cima do ombro, aguardando silenciosamente.

_ Senhora, estou perdida, preciso tomar o caminho da Vila. Em qual direção devo seguir?

_ Chica, que no debería estar aquí! Ya Está. ¡Rápido! - Ela diz indicando o corredor a direita.

Na verdade não entendo o que ela disse, a não ser pelo dedo, longo, magrelo e enrugado apontado para a direção que devo seguir. Eu assinto com a cabeça e corro pelo túnel, cujas as paredes de pedra tem um formato oval, lhe conferindo uma aspecto cavernoso porém com a presença constante da interferência humana em seu formato muito bem talhado. As luzes dispostas no teto, a intervalos irregulares, vez ou outra falham, piscam e ascendem rapidamente, acentuando ainda mais a cena de suspense em que me encontro. Depois do que imagino ser pelo menos uns 300 metros em linha reta, chego a portas duplas vai e vem as quais atravesso num arroubo de desespero, de quem esteve preso em um labirinto por dias, meses ou até mesmo anos!

Me abaixo pondo as mãos nos joelhos, tentando recuperar o folego. Depois de alguns segundos recordo-me o motivo pelo qual estou aqui e também o fato de que minha presença aqui é tão ilegal quanto o motivo. E instintivamente assumo a posição defensiva.

Há minha frente, há um pequeno aclive que leva em direção a rua principal da vila, a mais populosa. Chamada rua Esperança. Todas as ruas são ladeadas por luminárias, que se ascendem assim que o sol desaparece, o que irá dificultar ainda mais a tarefa de chegar a casa de José. O jeito será utilizar os pequenos corredores entre uma casa e outra.

Nunca fui a casa de José, mas sei que fica há três ruas à direita da casa de Enrico, na rua Sabedoria. Gostei de cara da vila, quando estive aqui pela primeira vez e não foi apenas o aspecto, que remete a Abnegação, mas as ruas todas elas, são nomeadas com sentimentos, tão caros as pessoas que nelas vivem, que encontraram no simples ato de nomear as ruas como forma de reconhecer este local como seu lar. Enrico contou-me a história que originou os nomes. Quando os primeiros habitantes chegaram, havia apenas uma rua, mas logo mais e mais pessoas foram trazidas a Base e alocadas em novas construções e ruas foram sendo formadas. Os soldados as identificavam por números. Mas Dona Evelina, uma senhora de mais de 90 anos, que após ter sido retirada de sua casa, situada num Vilarejo no país que antigamente era chamado de México, recusou-se a viver em um experimento, ela era viúva, havia enterrado os filhos e os netos que morreram pela peste que dizimou mais da metade do seu vilarejo, e ela por um designo de Deus, como insistia em dizer, sobreviveu. Como a velha mostrava-se irredutível, utilizaram nela o soro da memória, mas esta foi resistente, seus genes foram estudados, eram puros. Imaginado que a velha senhora não viveria mais do que dois ou três anos, lhe acomodaram numa pequena casa nesta vila, onde ela passava seus dias sentada numa cadeira velha de madeira, na sua varanda. Ora ela falava sozinha, ora as pessoas paravam e lhe davam conversa e ela entre seus devaneios começou a nomear as ruas que antes levam apenas números. Nomeou as três primeiras ruas, a sua, antes conhecida como rua 2, ela chamou de Saudade, até imagino o motivo. A rua número 1, a principal, chamou de Esperança e pequena rua que estava em formação, com apenas 4 casas a velha senhora nomeou de Fé, que hoje é rua onde Enrico mora.

A Dona Evelina como era conhecida, viveu até os 102 anos, superando as expectativas de todos os médicos e cientistas que conhecera e deixou um importante legado a todos os moradores da vila, que mantém a tradição de nomear suas ruas com sentimentos, alguns remetendo a coisas boas, como a rua Alegria, ou outros que remetem a sentimentos ruins como a rua Tristeza.

Durante meu percurso sorrateiro, vi apenas dois patrulheiros distraídos andando pelas ruas, de modo que a tarefa de chegar até aqui não foi assim tão difícil, a casa de José é a oitava casa à esquerda, com um aspecto de depredação que soube pelo Enrico ser totalmente proposital, já que não precisam de atenção desnecessária, visto o negócio ilícito que rola nas entranhas daquele simplório barraco.

A porta se abre com um rangido a primeira sugestão que faço de tocá-la, uma velha senhora de cabelos brancos me aguardava na penumbra, na mão direita um velho castiçal de madeira ostenta uma vela que dá seus últimos suspiros, a chama bruxuelante lambendo até a última gosta da cera, indica que talvez eu esteja muito atrasada. A vela apaga-se no exato momento em que a senhora arrasta a mesa da cozinha e levanta o alçapão.

Meus olhos que facilmente acostumaram-se a luminosidade tênue da vela não são capazes de identificar nada além dos degraus que indicam uma escada de madeira em declive. A senhora mantém o alçapão aberto até que eu tenha adentrado nas profundezas do porão. Então sou tragada pela escuridão no momento em que o assoalho velho de linóleo desce suavemente sobre a minha cabeça, sem emitir qualquer ruído, como se de fato, aquela passagem nunca tivesse existido, como se eu fosse apenas um fantasma, uma lembrança que fora delegada ao canto escuro da mente de alguém... Da mente de Tobias.

Ouço o riscar de fósforos e a luz de uma única vela ilumina o rosto sorridente de Enrico e algumas outras fisionomias mais sérias a minha volta. Pelo que consigo ver há estruturas de concreto sustentando o piso acima das nossas cabeças, mas as paredes em sua maioria são de terra, por isso a sensação de umidade no ambiente e o cheiro característico. O local apesar de ser claustrofóbico, por incrível que pareça, chega até ser agradável, sempre gostei do aroma que exalava dos campos da Amizade, diferente da minha recente, ou não tão recente experiência por lá, quando Caleb e eu éramos crianças, nas poucas vezes em que estivemos lá com os nossos pais, enquanto Caleb explorava o complexo, indagava as outras crianças, eu me afastava discretamente do grupo, e quando não houvesse ninguém para testemunhar, eu me deitava no chão, com o nariz colado ao solo, sentindo aquele delicioso aroma de terra molhada, irrigada, preparada para gerar vida.

_ Você demorou Tris! - Diz Enrico, tirando-me do meu devaneio.

_ Já estávamos cogitando a possibilidade de enviar uma equipe de buscas. - José completa.

_ É, parece que me perdi nas docas.

_ Você não disse a ela que não deve usar as docas? - O pai de José repreende Enrico.

_ Na verdade Sr. Espinoza, eu a aconselhei a usar as docas, porque é o caminho mais seguro. - Enrico responde.

_ Mas também o mais fácil para se perder. - Ele repreende.

_ Bem, vamos aproveitar melhor o tempo da moça. - Diz um homem velho, alto com uma vasta cabeira branca e um nariz grade que provavelmente já foi quebrado, pois sua ponta é torta, inclinada para a esquerda.

_ Este é Fancisco Alvarez. - Enrico o apresenta.

_ O Sr. Alvarez tem razão. Vamos aos fatos. Enrico você tem um importante relato para dividir conosco. - Digo arqueando as sobrancelhas na direção dele e vejo que José cutuca de leve as costelas do amigo, divertindo-se com a situação.

Enrico por sua vez, estreita os olhos na minha direção, na intenção de identificar todos os sentimentos obscuros na fraca luminosidade do local.

_ Bem, apenas comprovei uma suspeita da Tris, Alejandra é neta do Presidente.

Todos permanecem calados, aguardando por detalhes.

_ Na verdade, essa é notícia velha para mim. Descobriu algo que possa nos indicar onde ele vive e quem são as pessoas que fazem parte do conselho? - Digo inquirindo-o.

_ Calma Tris! Estamos nessa só há algumas semanas, consegui recuperar a confiança de Alejandra a pouco. Amanhã vamos nos ver depois da aula, pode ter certeza que continuarei pescando mais informações. - Enrico se justifica.

_ Okay, só tenha certeza de estar separando devidamente as coisas. - Digo

_ Como assim? - Ele diz, agora num tom divertido.

O silêncio dos presentes nos dá a falsa sensação, reforçada pela escuridão de que estamos sós. Mas tento lembrar a mim mesmo que há outras pessoas nesse porão. Olho em volta para me certificar de que os outros rostos continuam lá.

_ Quero dizer que é importante nosso objetivo maior, não seja sobrepujado pela sua diversão.

Ele dá uma gargalhada e eu me encolho, não com a possibilidade de sermos ouvidos, mas com a sensação de que fui pega fazendo algo de errado... Como uma criança que surpreende os pais fazendo alguma besteira qualquer e antes da lição, vem a diversão o riso...

_ Você que traçou o plano e fez questão de incluir a tal "diversão" a que se refere. - Ele diz a palavra diversão fazendo aspas com os dedos indicador e médio das duas mãos.

Minha vontade era de cuspir na cara dele que estou pouco ligando para o que ele faz ou deixa de fazer com Alejandra, que apenas não quero que ele perca o foco.

_ Certo, mas você há de convir comigo que cada um tem seu próprio conceito de diversão. Então para encerrar essa discussão infundada, quero apenas que você não perca o foco.

_ Ah, sim, você é perita em diversão! Pode julgar que a minha atuação com uma garota que eu desprezo profundamente é tão prazerosa que pode ser chamada de diversão! Ele diz, com a irritação disfarçada de sarcasmo.

_ Já chega Enrico! - O Sr. Espinoza o repreende mais uma vez e vejo Enrico baixar os olhos, ao que parece ele respeita o velho homem, e poderia até dizer com base em seus relatos a repeito do Sr. Espinoza que ele lhe tem admiração e o vê quase como o pai que perdera.

Aproveito a oportunidade para relatar a conversa ao telefone que ouvi entre o General Sparks e o Presidente. Comento ainda, sobre as notas que encontrei no arquivo morto e a suspeita de tenho de haja muitos outros locais povoados que o Governo mantém encoberto, para que acreditemos que não existe vida além das cercas as quais conhecemos. Mas esta última informação, parece um tanto irrelevante, aos olhos de todos que estão intrigados demais, com fato de eu estar viva, com o fato do Presidente sendo quem é, responsável pela morte da própria filha desertora, tenha poupado a vida de uma rebelde que destruiu seu Departamento de Auxílio Genético, transformou seus cientistas em pessoas desmemoriadas sem muita serventia, anos de pesquisas, apagados com em segundos... E ele simplesmente demostra clemência, poupa a vida da garota, com a desculpa infundada de que a transformariam em mártir... Mártir de quem? Já que ela foi tola o bastante para que ilusoriamente acreditasse que sua vida seria um preço razoável a se pagar pela liberdade daqueles que ama...

Nesse momento chego a cogitar a possibilidade de que liberdade, seja apenas o nome de umas das ruas dessa vila. E que o mais próximo que chegarei dela é ter um casebre no final dessa mesma rua, onde me sentarei todos os dias numa velha cadeira de madeira, durante uma longa e infeliz vida, onde os meus pais, Tobias, Christina, Caleb, Uriah, todas as pessoas que amei e conheci se tornarão apenas uma lembrança, tão distante, mas tão distante que me perguntarei se vivi tudo aquilo mesmo, ou se foi apenas um sonho do qual acordei rápido demais...


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