Bastarda escrita por Lena Saunders


Capítulo 3
Aquele da Forja




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Só recoloquei meu vestido quando já estava quase chegando na vila. Ninguém olhou para mim enquanto eu caminhava entre as casas, mesmo com um escudo nas costas, parecendo uma tartaruga. Ninguém nunca olhava para mim.

– Ah! Menina Kyra! Eu estava começando à ficar preocupada com você! - Heike me recebeu.

– Me perdôe. Eu caí em um buraco e demorei para conseguir sair. Mas achei isso.

Mostrei meu escudo para ela, orgulhosa por encontrá-lo, enquanto ela franzia a testa, me olhando preocupada.

– É um belo escudo. - Algo estava errado, mas ela não me diria o que era. Ela nunca dizia. - Que bom que conseguiu sair. Coloque seu vestido na água e acenda o fogo. Está na hora de começar à preparar a sopa.

– Sim senhora.

Troquei de roupa antes de acender o fogo.

Os longos cabelos brancos, sempre presos em duas tranças eram a marca de Heike, a Anciã. Era assim que todos a chamavam. Mas esse era só um jeito bonito de dizer que ela era velha. Tão velha que ninguém saberia dizer quantos anos ela tinha ou a qual família pertencia. Ela era simplesmente a Heike.

Acendi o fogo e ela fez a sopa. Separamos a nossa parte e carreguei o resto até a casa de Greta, com o escudo que achara pendurado em minha costas. O caldeirão ainda estava um pouco quente e era tão pesado que precisei parar e colocá-lo no chão umas cinco vezes antes de chegar.

Greta era minha tia, irmã da minha mãe. Mas ninguém jamais aceitaria isso. Ah não. A bastarda e a santa Greta jamais poderiam ser parentes.

Ela era uma boa pessoa. Pelo menos era o que diziam. Ela cuidava de todos os órfãos da vila e era tão bonita que ninguém sabia porque não havia casado. Aos 27 anos, já era velha demais para voltar atrás, a menos que quisesse se casar com alguém realmente velho.

– Boa tarde, Kyra!

– Olá, Greta. Trouxe a sopa.

– Ah sim, eu posso ver. Entre.

A pequena Siv estava engatinhando pelo chão de madeira, vestindo um vestido branco longo demais para ela.

Seu nome era uma homenagem à minha falecida mãe. Por alguma razão desconhecida, sempre achei que combinava com ela.

Minha mãe e Greta eram gêmeas idênticas. Uma dádiva dupla, segundo Heike. Por isso, toda vez que a imaginava, vi-a exatamente igual à minha tia. Seus longos cabelos loiros, quase brancos, presos em um coque rígido, ornamentando seu rosto como os olhos profundamente azuis.

Muitos na vila se encaixavam na descrição. Greta, Siv e Aires, por exemplo. Por isso o nome servia à pequena Siv. Minha mãe deveria ser como ela quando era menor. Eu queria ter sido como ela.

– Aires está?- Perguntei enquanto colocava o caldeirão de sopa em cima da mesa.

Ela arqueoou uma sobrancelha.

– Acho que ele foi até a forja, mas está demorando mais do que o normal. Pode ir buscá-lo?

– Claro! - Eu já havia saído e fechado a porta.

Foi fácil encontrar Aires: era o único garotinho magro e loiro na forja. Seu rosto estava coberto de fuligem e suor.

– Hey! Aires! Greta mandou vir te buscar. Veja o que achei!

Mostrei a ele o meu escudo, orgulhosa de ter encontrado algo tão bom.

– Oi Kyrie! Senta aí! - Ele apontou para um banquinho de madeira ao seu lado. -Quer que eu arrume?

Assenti, contente por ele estar disposto a fazê-lo. Assisti-o trabalhar por alguns minutos. Suas marteladas eram precisamente calculadas, moldando o metal à sua vontade.

Para um garoto tão magro, ele era bastante esforçado e habilidoso. Apesar de ser possível ver alguns de seus ossos, ele tinha músculos muito significativos para a idade, reultado das horas que passava na forja.

–Air! - Chamei.

– Sim?

– Você acha que consegue fazer um machado para mim?

A idéia veio do nada, em minha mente infantil e criativa. Eu tinha um dragão agora e, embora ninguém pudesse saber, eu seria uma cavaleira. Era isso que os deuses queriam. Por que mais me dariam uma criatura tão magnífica? Estava decidido.

Ele sorriu de lado, mostrando as covinhas. Eu não sabia o que sentir quando ele sorria. Um lado meu queria sorrir também, mas o outro calava-o rapidamente.

– Eu poderia fazer qualquer coisa para você.

Senti minhas bochechas corarem, mas jamais saberia dizer o motivo.

– Certo. Então quero um machado duplo, do meu tamanho. Duas lâminas de cada lado do cabo. O mais belo e poderoso machado que você puder fazer.

–Do seu tamanho? Não é um pouco demais? Você não vai conseguir erguê-lo.

– Não me diga o que consigo ou não fazer! - Fiquei tentada à contar sobre Valkíria, mas mordi minha própria língua.- Precisa ser grande, porque, quando eu crescer, ainda pretendo usá-lo.

– E vai usar para quê?

– Para protejer a ilha, é claro!

Ele riu e bagunçou os fios loiros que eu daria a vida para ter.

– Certo. Mas, toda boa obra precisa de um bom material. Ele é tão importante quanto a habilidade. Ao menos isso é o que o Gigante diz.

Gigante era como chamávamos Skar. Ele era um homem grande e energético, com fios loiros saindo do capacete aqui e ali. Era ele quem forjava praticamente todas as armas e Aires era um de seus aprendizes. O mais jovem, com certeza. Aires era o único com dez anos. Os outros, variavam dos dezesseis aos vinte. Mas meu amigo era, de longe, o melhor deles.

– Eu posso arranjar o material. Você consegue derreter diamantes?

Ele pareceu cético, enquanto largava o machado para alongar o braço.

– Claro que posso. Lava de dragão pode derreter qualquer coisa. Mas dúvido que você consiga arranjar diamantes o suficiente, mesmo aqui na ilha.

Ah sim. Seiryn não era conhecida apena pelos guerreiros, dragões e mares transparentes. Também era conhecida por suas pedras preciosas, que cobriam a ilha de fora a fora. Alguns diziam que era justamente essas pedras que atraíam os dragões. Mentalmente vagueei pela caverna, vendo os diamantes novamente. Não havia nada mais duro do que diamante. Bem, talvez o couro de um dragão de terra. Mas, fora isso, nada.

– Acabei o escudo. - Ele anunciou, inflando o peito com orgulho.

De fato, fora um trabalho perfeito. O escudo estava como novo agora, seu desenho dourado imitava uma roseira selvagem, galhos retorcidos com espinhos. Impecável.

– Vou te trazer o material amanhã. Não se esqueça de ir logo, ou Greta enlouquecerá.

Quando já estava longe o bastante, me virei para assisti-lo mais um pouco. Aires era bom e dedicado em tudo o que fazia, mas nada era melhor do que vê-lo fazer as coisas.

Eu quase não dormi de ansiedade naquela noite e, quando enfim peguei no sono, tive pesadelos. Sobre sangue, mortes, crianças, dragões e bastardos.


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