La Dama y el Paraguas e outras histórias de morte escrita por Ganimedes


Capítulo 1
O Coração de Pedra do Coveiro




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O Cemitério da comuna de Porvenir se sentia orgulhoso de poder fazer uma lista de coisas que gostava em si mesmo:

a) tinha quatro muros pintados a cal;

b) os quatro muros eram separados por um hectare de terra seca;

c) o hectare de terra seca era salpicado de corpos;

d) os corpos eram visitados regularmente por personalidades muito peculiares.

O portão estava na lista até o governo municipal tratar de removê-lo sem nenhuma dó, devido à ferrugem.

Por isso ele ficava aberto durante todo o dia.

E, mesmo assim, quase ninguém entrava lá.

Quase.

Em companhia das lápides e dos ossos perdidos entre elas, três figuras interagiam enquanto a luz do sol lhes permitia enxergar uns aos outros. Seus nomes: Cristo, Pablo e Estevan.

O trabalho dos três consistia em retirar tudo aquilo que separava o morto de seu futuro lar, a sete palmos do chão — e, ordinariamente, colocar tudo de volta em cima dele.

"Usted só precisa ter em mente: como você iria querer essa cova se fosse você que estivesse lá dentro?"

Pablo deu uma cuspida no chão escasso de vegetação, descansando a pá debaixo do braço. Seu observador quase esperou que ele passasse as costas da mão na testa, para enxugar o suor, mas não foi o que aconteceu, simplesmente porque não havia suor, e isso bastava para saber que não era assim que funcionava o clima no extremo sul chileno. As nuvens apertavam-se umas contra as outras até taparem qualquer vestígio de azul no domo celeste. Buscavam proteção coletiva do vento congelante que zanzava lá embaixo.

O esforço que Estevan fez para conseguir ignorar os olhos desarrumados de seu instrutor (cada um parecia apontar pra uma direção diferente) foi quase tão intenso quanto o que fez para não correr pra longe da figura encurvada que emitia grunhidos alguns metros atrás. Perguntou a Pablo, entre batidas de dentes, como se chamava o homem corcunda.

"Cristo. Não se preocupe. Ele normalmente não faz mal a nadie, e você vai substituí-lo."

Ali, em cima da pequena colina bem no centro do cemitério, ao lado de uma árvore despida de folhas, eles mesmos pareciam outras três árvores, igualmente raquíticas e enegrecidas. O uniforme padrão dos coveiros era um sobretudo negro feito de tecido barato, calças de flanela tingida de preto e cabelos encharcados de gel, penteados para trás. Botas para a neve. E também havia a pá. A pá que Pablo fincava agora no chão, observando Estevan com seus olhos fora de foco. Deu a entender que queria saber mais sobre o novato, e assim o perguntou.

"Vim de Los Ríos, señor. Meus pais faleceram."

Os olhos tortos de Pablo examinaram-no de cima a baixo. Pareceram brilhar ao som da palavra faleceram.

"Los Ríos, hein? Não vai aguentar mais cinco minutos nesse frio, se não ajeitar essa gola. Ande! Vou te ensinar o que se pode fazer com uma pá."

Ele se mostrou habilidoso de uma forma quase sobrenatural em retirar grandes pedaços de uma mistura de terra, pedrinhas brancas e mato, e conseguir um bom projeto de cova. Estevan observou atentamente o modo como ele enfiava a ponta da pá no chão e a removia, seu jeito esquelético e meticuloso.

Fez uma tentativa, sem muito êxito. Tinha a certeza de estar tentando perfurar uma placa de mármore. Atrás de ambos, Cristo continuava a cavar, extremamente concentrado, seus sons grotescos ecoando até os ouvidos de Estevan.

"Ah... continue. Hoje é um grande dia." ele falou. Cristo soltou um som parecido com um arroto.

As horas foram passando, e o céu escurecia quando o relógio pendurado numa das paredes da capelinha marcou dezesseis horas.

No inverno, a noite gostava mais do mundo.

...

Pablo parou um pouco, observou o horizonte, em direção à entrada, e suas sobrancelhas se arquearam numa expressão de lembrança súbita. Ele apontou naquela direção, onde um vulto esguio e cabisbaixo caminhava por entre as lápides. Trazia uma enorme sacola que aparentava estar abarrotada de bugigangas.

"Lá vem ele. Ei, garoto, olha lá."

Estevan firmou a vista para onde o homem apontava, mesmo que já tivesse notado a figura esquisita se movimentando sob as luzes do pré-crepúsculo. Assim que a distância já não era tão grande, notou a face de um rapaz jovem, de vinte e poucos anos. Era muito bonito, do tipo que revistas não hesitariam em contratar como rosto-propaganda.

O rapaz caminhou até uma lápide pequena, porém lustrosa, enfiou a mão na sacola e tirou de lá um espelhinho, depositando-o no batente. Lá já havia uma quantidade incontável de espelhos semelhantes, do tamanho de uma mão e com a moldura alaranjada.

"Quem é ele?", Estevan perguntou, soltando a pá, que emperrara numa parte mais dura do solo, e olhando com curiosidade para a cena.

Pablo apenas sorriu, os dentes tão tortos quanto os olhos.

"El Segador de Corazones." O Ceifador de Corações, ele disse.

O vento assobiou, as árvores retorcidas se curvaram com curiosidade (inclusive aquela que se encontrava logo ao lado dos três coveiros, e ela se sentiu feliz pela posição privilegiada) e a cena apareceu como um fantasma, espiralando em névoa na mente de quem estava ouvindo.

O Ceifador de Corações

Ele fez sua primeira vítima aos nove anos de idade.

A garotinha estava estirada, dura e sem vida, no pátio da escola, com uma faca enfiada no peito.

Os adultos apareceram, e tudo se tornou um caos. Choravam e gritavam como se não soubessem que estavam ali para resolver as coisas, em vez de manter distância e apontarem, trêmulos, sem acreditar no que viam.

O Ceifador de Corações aproximou-se, cortando a multidão que se aglomerava ao redor. Só queria ter a certeza que aqueles lábios finos e azuis pela falta de oxigenação eram os mesmos que haviam declarado-lhe amor no começo daquela mesma manhã.

A ironia do destino havia sido muito cruel com a menina, chamada Esperanza, pois era exatamente esse o sentimento que ela não possuía ao ter tido a coragem de confessar ao Ceifador seu amor. Já chegou dizendo que não era tão bonita quanto ele merecia, que não ia viver sem ele. As coisas saíram do controle quando ele ouviu isso.

A mulher da cantina não notou o sumiço da faca.

O Ceifador havia feito sua primeira vítima.

Cinco anos se passaram até que ele pudesse sobreviver com sua própria labuta: arranjou um emprego de meio período na única lanchonete do bairro onde morava. Só precisava traduzir os pedidos dos clientes em anotações, entregá-las à moça do balcão, que as passava para o cara da grelha, e finalmente, levá-las de volta (convertidas em comida real) até a mesma mesa de onde o pedido havia saído.

Era muito simples. Seria muito simples. Se a moça do balcão não implorasse para ser a próxima vítima.

No fim do turno, ela o segurou pelo pulso, chorando, e disse algo que o Ceifador achou familiar. Ela soluçava. Ela o amava. E sabia que não iria tê-lo. Era bonito demais. O rosto do Ceifador era o de um anjo esculpido em pedra.

Encontraram-na uma hora depois, com uma das facas do suportezinho no balcão enfiada entre as costelas.

Ao fundo, apenas o som do óleo fervendo.

E foi assim com uma de suas colegas de faculdade. Com um rapaz que morava no apartamento ao lado. Com a filha do açougueiro. Com as gêmeas que trabalhavam no café ao lado de seu escritório.

Todos mortos. Vítimas do poder incontrolável do Ceifador.

E ele não tinha culpa nenhuma.

Por um instante ínfimo, um raio de sol brincalhão surgiu entre as nuvens e refletiu no espelhinho que o rapaz ajeitava cuidadosamente em uma segunda lápide. No intervalo de tempo em que a história foi contada, ele havia visitado uma dúzia deles e feito exatamente a mesma coisa.

"Aquela ali foi semana passada. Uma bela moça, veinticinco años. Muito triste."

Estevan observou como o Ceifador, apesar de jovem e bonito, carregava uma aura obscura e pesada. Era como se um borrão de tristeza tivesse sido esfregado em seu rosto.

"Como assim ele não tinha culpa nenhuma?"

O sorriso de Pablo foi deprimente. Assim que ele se estampou em sua boca, Estevan compreendeu o que acontecera. Seu coração pareceu ter sofrido uma injeção de água em ponto de congelamento.

Os espelhinhos talvez não adiantassem muito agora, pensou. Não havia mais como convencer as pessoas do contrário depois que já estavam do outro lado. Pela primeira vez na vida, agradeceu por não ser tão bonito quanto um deus.

E, principalmente, agradeceu por não fazer as pessoas cometerem suicídio por se julgarem mais feias que ele.

"Mas não se preocupe, existem histórias piores." Pablo falou.

O Ceifador de Corações terminou sua peregrinação e, arrastando debilmente a sacola vazia atrás de si, atravessou a entrada e desapareceu da vista dos três.

Junto com a noite, o frio devastador instalou-se e acomodou-se por ali mesmo. Mais uma hora se passou, na qual Pablo deu uma série de instruções ao seu aprendiz.

"E há um acordo tácito entre os coveiros...", mas teve que se interromper. Atravessando o portal do Cemitério de Porvenir, uma versão sombria e adulta de Chapeuzinho Vermelho (porém de capuz preto) caminhou pela estradinha de ladrilhos principal até uma das seções do lado esquerdo do cemitério. Ela tinha a pele pálida como o vestido que usava, os cabelos escorridos e negros e um cachecol que se debatia por causa do vento. Caminhava meio inclinada para frente — não exatamente como Cristo, e sim como se tivesse passado por uma sessão de cinco horas de chutes na altura do umbigo.

A mulher se apoiava sobre um guarda-chuva da mesma cor de sua capa. As mãos firmemente entrelaçadas no cabo curvo.

Estevan observou enquanto ela se ajoelhava na frente de uma lápide minúscula e muito pobre, feita de tijolos avermelhados e com o cimento escorrido e mal feito entre eles. A coisa mais curiosa naquilo tudo era que, diferente das quase vinte lápides visitadas pelo Ceifador de Corações, aquela não estava tomada por espelhos.

Estava abarrotada de guarda-chuvas.

Ela se ajoelhou com dificuldade, soltando arquejos de dor, e depositou o guarda-chuva que trazia consigo ao lado dos outros. Uniu as mãos em forma de prece e começou a rezar.

Pablo deu a entender que falaria algo, mas preferiu que a cena dissesse por si mesma por alguns segundos.

E, finalmente, apontou para ela.

Pela segunda vez, o vento assobiou ansioso, as árvores estalaram numa tentativa de se curvar sobre eles. As imagens invadiram suas mentes, espiraladas por névoa.

"La Dama..." ele falou, parando por um instante e apontando para o guarda-chuva. "...y el paraguas."

A Dama e o Guarda-chuva

A Dama soube que sua vida a partir daquele dia seria um inferno assim que a moça disse que não daria certo.

Desejou que ela tivesse dito isso quando toda a operação ainda tinha volta, mas não foi o que aconteceu. Os movimentos dentro de si já haviam cessado. Ele já estava morto.

"Sinto muito, eu não sei... não sei o que deu errado...". A visão da Dama estava tão embaçada que ela mal distinguia os traços do rosto da mulher entre suas pernas. Sua expressão era tensa.

A visão do quarto de paredes verde-limão e desgastadas ficou cada vez mais turva, pontinhos pretos brincavam de flutuar à sua frente. Sabia que isso significava que estava prestes a desmaiar. E também sabia o motivo.

"Estou perdendo sangue" a Dama pensou. Ou até mesmo chegou a pronunciar as palavras. Ela não se lembrava, estava mais preocupada em não morrer.

A mulher apenas encarou aterrorizada o espaço por onde, caso tudo estivesse dando certo (ou o tão certo quanto possível. A Dama imaginou que nada daquilo estaria acontecendo se sua vida não fosse uma grande fileira de erros, organizados como pecinhas de dominó: cada um servia somente para derrubar o próximo, com o propósito único de chegar à última peça. Ao último erro. E este, no caso, era ela. O maior erro de todos.

Sua mente retornou há seis meses, champanhe em copo de vidro. O estrangeiro que prometeu pagar muito mais do que o usual por um simples pedido.

Dentro, e não fora. Dentro, e não fora.

Ele era muito bonito, talvez isso tenha ajudado a convencê-la. Ele havia demorado muito, também.

Era tudo que se lembrava daquela noite. Arrependeu-se amargamente de não ter desconfiado do gosto amargo do champanhe.

Durante todos os meses seguintes, sua vida se resumiu a: recuperar-se da violência que a deixara marcada na carne e na alma; e procurar uma solução para Problema. Preferiu chamar a criança assim: Problema, para não se afeiçoar. Não ia conseguir olhar nos olhos da criança sem lembrar-se do estrangeiro e não vomitar.

A verdade veio dos lábios de uma amiga:

"Acha que está onde? Num país liberal e moderninho? Vai ter que procurar um clandestino, hijita, estamos no Chile.".

Isso era uma sentença de morte, mas ela foi até lá mesmo assim.

A ideia, obviamente e como convém, deu muito errado.) deveria estar saindo o corpinho de um bebê.

Apagou por alguns segundos, talvez minutos. A mulher já não estava mais lá quando acordou. Sentiu o volume ainda dentro de sua barriga e entrou em pânico. Tinha que se livrar daquilo. Nem que morresse. Nem que fosse junto com ele.

Seus olhos percorreram avidamente o quartinho abarrotado de coisas inúteis. Ela se levantou da cama, fazendo um esforço sobre-humano, e começou a revirar as caixas de papelão, os jarros de cerâmica. Alguma coisa tinha que dar certo.

Foi então que notou. Pendurado num suportezinho na parede verde-limão. Era preto e comprido, como um cajado.

O que a fez pegar o guarda-chuva sem nem olhar duas vezes foi o cabo curvado.

Perfeito para puxar coisas.

Para fora.

O procedimento foi brutal. Suas entranhas gritaram em terror com aquele objeto desconhecido que rasgava tudo o que estivesse pela frente na intenção de alcançar seu objetivo.

Quando tudo acabou, a Dama não sentia mais as pernas. Não sentia mais os braços. Seu corpo estava inebriado pela adrenalina e pela dor.

Os médicos reconstruíram o que puderam, mas foram bem claros:

"Se não foi esse, não será mais nenhum. Sentimos muito"

Ela também sentia.

Estevan observou a mulher se erguer dos joelhos — com uma dificuldade aparentemente incalculável — e caminhar em seu jeito molengo e dolorido até a saída do cemitério.

"Então ela homenageia o bebê com aquilo que o matou? Não parece muito sensato." ele observou, procurando nos olhos tortos de Pablo um sinal de concordância.

Mas estes apenas se deslocaram até a capela atrás deles.

No topo dela havia um crucifixo. Estevan se calou.

"Mas não se preocupe, existem histórias piores" Pablo falou novamente, aparentemente querendo deixar aquela informação bem clara.

Com a noite cada vez mais escura, as nuvens já haviam passado do cinza-pó-de-grafite para vermelho-inflamado. Não demoraria muito para uma amostra do dilúvio (ou da Era do gelo) cair sobre o Cemitério de Porvenir, e Pablo se apressou em mostrar ao iniciante o que mais havia de interessante sobre o seu trabalho.

Chegaram a uma sessão que fez com que ele quase caísse duro ali mesmo. Seu nariz parecia derreter como ácido.

Estavam perto de algo que ainda não tinha terminado de apodrecer.

"Por que o cheiro está tão forte?" perguntou, tapando o nariz com força. Procurava a lápide de onde vinha o fedor terrível.

"Vou te mostrar." E caminhou mais um pouco. Estevan sentiu que ele ia começar a narração, pois, novamente, o vento assobiou, as árvores apuraram os ouvidos e a névoa invadiu a mente daqueles que escutavam.

"Vou te mostrar", ele repetiu. "O que aconteceu com el Poeta de las Estrellas."

O Poeta das Estrelas

A notícia saiu no noticiário da noite. O jornalista era cheio de dentes e sua voz era convincente.

"Foi inaugurado essa semana o centro de pesquisa astronômica no Deserto de Atacama. Os melhores astrônomos do mundo poderão desfrutar do que há de mais avançado em tecnologia de telescópios. O clima seco do deserto..."

O Poeta não terminou de ouvir, pois a imagem de um dos telescópios foi marcada em brasa na sua mente. Tinha sete anos. Decidiu fazer um poema.

Quem morre vai para o céu?

Sua alma vira estrela?

Um dia vou olhar pra elas bem de perto, mamãe

E verei seu rosto pela primeira vez.

A mãe do Poeta o deixara no orfanato com uma semana de nascido. Não tinha condições de cuidar dele. A única notícia que tiveram dela foi a de sua morte, cinco anos depois.

Espancada pelo marido.

O Poeta passou todas as noites claras de sua vida encarando o céu, e naqueles momentos podia senti-la. Ela estava lá, tinha certeza disso. Só precisava olhar mais de perto.

A adoção aconteceu quando ele fez dez anos. Seus novos pais tentaram tirar aquela ideia da cabeça dele, mas é claro que não conseguiram. Acabaram concordando em sua escolha de fazer faculdade de Astronomia. Seria difícil arranjar emprego, mas o Poeta já sabia onde trabalharia.

Precisou de cinco anos para chegar até lá.

Jamais se esqueceu de quando, no dia da posse do emprego, foi recebido com sorrisos por seus colegas, sentou-se na cadeira onde passaria o resto da vida observando o rosto de sua mãe. O coração batia forte.

Ajustou a resolução da lente gigante que apontava para o céu. A imagem surgiu na tela do computador.

Um pontinho brilhante. E em sua cabeça somente apareciam equações matemáticas.

Resolveu aproximar mais. Apenas pontos brilhantes. Supernovas, anãs-brancas, nebulosas, espirais, quasares. Nenhum rosto. Nenhuma mãe.

Trocou de estrelas, de filtro, e continuava a observar a escuridão do Universo.

Não aguentou a decepção. Abandonou o emprego no mesmo dia, voltou para casa desesperado, as lágrimas escorrendo. O que tinha dado errado? O objetivo de sua vida estava acabado. Depois de algumas horas de reflexão alucinada, chegou a uma ideia genial. Daria certo com toda certeza.

Matou-se engolindo uma porção de remédios para depressão que sua mãe adotiva utilizava. A dose recomendada era de meio comprimido por dia. Ele ingeriu dezoito.

Encontraram-no já sem vida, em seu quarto. Uma cartinha escrita às pressas explicava os detalhes do enterro.

Ao qual ninguém teve coragem de comparecer.

Estevan não precisou perguntar o motivo, pois entendeu tudo quando aproximou-se da lápide. A carranca envelhecida e putrefata da caveira o encarava, lá embaixo, misturada à lama e ao musgo.

A cova estava aberta.

Era um buraco retangular e com quase dois metros de profundidade, com as bordas até jeitosas, esculpidas em mármore e granito. Se não fosse o fato de que faltava a tampa do caixão e toda a terra que devia estar por cima dele, a cova seria até simpática.

Pablo não pareceu se importar com o cheiro, pois pôs o rosto bem em cima do vão e deu uma gargalhada sonora para o cadáver.

"Você não ia querer estar aqui um mês atrás. Estava cem vezes pior."

Estevan não imaginou como aquilo podia ser mais nauseante, e se ateve a perguntar o motivo daquela bizarrice.

"Ele pediu pra deixar a cova aberta porque, caso não encontrasse a mãe no outro lado da vida, poderia passar o resto da eternidade olhando para ela. Nas estrelas.", ele respondeu, virando a face para o céu escuro.

As nuvens pareciam mingau. Não se via uma estrela. E o coração de Estevan afundou.

"Mas não se preocupe, existem histórias piores." Pablo falou.

Os dois terminaram de conferir o resto das covas (fechadas, para a alegria de Estevan) e voltaram para onde Cristo terminava seu trabalho. Ele parecia exausto, e segurava a pá de forma trêmula.

"Então, é isso, querido amigo. Acho que isso é uma despedida." e andou até Cristo, dando um abraço no amigo. "Está vendo esse aqui, Estevan? Sabe por que ficou com a coluna assim? No dia que conseguiu o trabalho, recusou-se a cumprir o acordo tácito entre coveiros. E foi essa a punição. O Velho Destino tarda, mas não falha. Arrependido, resolveu cumprir o acordo mesmo assim. Quando o Cemitério quer alguém, ele sabe ser bem persuasivo."

"Há um acordo tácito, meu jovem. Há um acordo tácito." Pablo falou, e andou na direção de Estevan, entregando-lhe a pá que Cristo usara para cavar a cova durante toda a noite.

Estevan levou alguns segundos para notar tudo que estava ao seu redor. E um tempinho a mais para juntar tudo numa informação só.

Ao lado da cova que Cristo fizera, havia uma fileira com dezenas de lápides simples.

Apenas uma informação em comum em todas elas.

Todos os mortos eram coveiros.

Existem histórias piores.

Cristo encarava seu algoz com resignação, ao lado do buraco que cavara, como se esperasse por aquele dia há muitos anos. Seus olhos pareciam o de um animal ferido. Era o retrato da desolação e da pena: as roupas imundas, corcunda e com as feições deformadas.

Estevan teve certeza de que não conseguiriafazer aquilo até sentir uma dor lancinante atingir-lhe a coluna, e ela se curvava para frente com estalidos.

Em sua mente, imaginou-se igual a Cristo, feio e assustador. Se teria que ficar ali de qualquer jeito, preferia parecer com Pablo a com o corcunda nojento e asqueroso que estava à sua frente.

E a última coisa que o pobre corcunda viu antes de cair morto dentro da cova foi o arco descrito pela pá antes dela atingi-lo em cheio no crânio.

O vento assobiou, satisfeito, as árvores ficaram tão felizes que quase bateram palmas. O Cemitério de Porvenir conseguiu ser convincente mais uma vez.

Por fim, Estevan sentiu um fluido gélido e seco adentrar por suas costelas e se alojar direto no coração. Imediatamente, o órgão parou de bater e se tornou pesado como chumbo. Havia virado pedra.

"Existem histórias piores, garoto." Pablo falou, soturno.

E a névoa escorregou em espirais para dentro da mente daqueles que estavam ouvindo.

"Existe a história del Corazón de Piedra del Sepulturero."

O Coração de Pedra do Coveiro

O Cemitério da comuna de Porvenir se sentia orgulhoso de poder fazer uma lista de coisas que gostava em si mesmo:


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Notas finais do capítulo

- O Chile é conhecido por ser um dos países com as leis mais duras em relação ao aborto.- Também é um dos maiores centros de pesquisa em astronomia do mundo, com dezenas de observatórios espalhados pelo país.- É chamado de "país dos poetas" por ser o lar de grandes escritores, como o poeta Pablo Neruda e Gabriela Mistral