Diário do Silêncio escrita por Vaalas


Capítulo 8
Drama Muito Dramático


Notas iniciais do capítulo

Leiam as notas finais, leitores futurísticos.



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Não há nada que valha a dignidade do silêncio.” — Júlio Dantas

“Elliot, você já ouviu falar de implante coclear?”

Era um dia extremamente frio de início de novembro. Havia-se passado mais de um mês desde que Cassie havia me beijado, e desde então esse assunto foi enterrado e esquecido. Eu andava junto aos gêmeos pelo campus escolar, castigando a mim mesmo pela falta de um cachecol — deveria ter atendido ao conselho de minha mãe sobre o cachecol. Droga, por que mães sempre estão certas? — e lendo os absurdos que os dois falavam sobre uma série de televisão já cancelada. Eu gostava de Heroes, independente do quanto os dois dissessem que ela havia se perdido totalmente ao fim.

Foi quando Cassie surgiu na nossa frente e soltou a pergunta.

Olhei para os gêmeos, movendo as mãos e pedindo pelos sinais que traduzissem o que eu dissesse para ela. Era bom usar o caderno, mas naquele momento eu estava com frio demais para escrever o que quer que fosse.

James assentiu, e eu comecei.

“Ele disse que sim, mas que o fato de já ter nascido com a surdez não traz muito benefício com a cirurgia” Pude ler seus lábios, antes de continuar. “A cirurgia e o aparelho são mais eficazes em quem adquiriu a surdez, mas já teve contato com os sons antes.”

Suspirei, me virando para Cassie e vendo seu sorriso murchar-se em decepção.

Eu sabia o que era aquilo, foi a mesma reação que tive quando meu fonoaudiólogo teve que me dar a notícia. Eu tinha 7 anos quando perguntei a ele o que minha mãe já havia perguntado, anos antes. Ele disse que eu até poderia tentar, mas que o processo seria demorado e os resultados não seriam tão bons quanto os de alguém que já teve contato com os sons. Quanto mais tempo privado dos sons, mais difícil. Bem, 16 anos privado de sons + sem nenhum contato com sons = resultados não bons com sons.

“E os aparelhos auditivos convencionais?” Cassie insistiu.

Mais uma vez, virei-me para James, mas antes de começar, Josh já estava falando.

“Eles apenas amplificam o som para quem é surdo parcial. Elliot tem surdez profunda, então amplificar o som não tem efeito”. Virou-se para mim, e sorriu. “Sim, nós dois já tínhamos pesquisado isso, há muito, muito tempo”.

Assenti. É claro que já haviam pesquisado. Se eu tivesse um amigo surdo, é claro que teria pesquisado sobre surdez.

Suspirei e mordi o lábio de baixo. Fazia tempo que não tinha essa reação meio triste, e só a tinha quando o assunto era mais ou menos aquele, ou quando se citava a ausência de Jesse, meu irmão. A questão é que ter certeza que sua surdez vai ser um problema para sempre pode ser um pouco deprimente, ou triste, ou sei lá. Geralmente costumo ignorar e me auto-consolar dizendo que é melhor ser surdo do que cego.

Mas bem, às vezes noto que não há realmente um melhor. Ambos são o mesmo: péssimos.

[...]

Josh e James resolveram ir mais cedo para casa, já que a "prima gostosa” deles havia ido passar o final de semana ali. Bem, não os culpava, a prima deles, chamada Rose, era realmente bonita. Havia a visto umas duas vezes quando ia até lá jogar vídeo game com eles, e além de bonita, ela sabia fazer uns biscoitos legais e era engraçada.

Então, me joguei sob a costumeira árvore sem frutos que eu tomei a liberdade de chamar de Lenny, e peguei você diário, para escrever sobre o que havia acontecido no dia anterior. Fiquei ali um bom tempo, esfregando as mãos ora ou outra para dissipar o frio e estava escrevendo um texto sobre como gostava de frio, quando Cassie surgiu, sentando ao meu lado.

Olhei para ela.

“Sua mãe sempre demora” Observou, puxando as pernas para um abraço e se encolhendo de frio.

Abri você em uma folha em branco e escrevi.

“Acho que ela gosta de me fazer esperar”

Cassie sorriu fracamente. Acho que ainda estava meio triste pela conversa de mais cedo sobre o implante, não sei se triste por mim ou triste por algo mais, talvez pelo futuro.

Sim, o futuro era bastante digno de tristeza. Embora a frase soe dramática demais e drama demais me dá vontade de dormir.

“Você se sente triste?” Ela optou por não responder escrevendo, e encostou o queixo no joelho. “Por ser surdo, digo”.

Demorei um pouco para pensar no que responder. Bem, sim, às vezes a auto-piedade é um tanto inevitável, mas não é como se ficasse triste a todo momento, todo instante. Aliás, todas as pessoas do mundo têm auto-piedade vez ou outra, e apenas 2,2% delas têm deficiência auditiva.

Suspirei, antes de escrever.

“Sim, às vezes, mas não é algo que sofro com. Todos têm suas cruzes, e não acho que a minha seja assim tão pesada.”

Escrevi cheio de orgulho. Fala sério, usei palavras muito bonitas e com ar intelectual, não é algo que surge com frequência. Ela leu e eu lhe sorri quando acabou, fazendo-a sorrir de volta.

“Certo, certo” disse, alargando o sorriso. “O dia está cinzento demais para tanto drama, não?”

— É.

E então ela ficou em silêncio, fitando a grama úmida e fria e já não tão verde. Gostaria que grama fosse como os filmes fazem parecer, macias e agradáveis. A verdade é que elas espetam e não são confortáveis, assim como o cotidiano não tão divertido quanto nos filmes.

Sabe, filmes e séries são belas propagandas enganosas. Só fazem notar como sua vida é sem graça e não há demônios, monstros, agentes do FBI, viagens no tempo, poderes loucos. A vida é só reduzida em nascer, crescer, estudar, estudar um pouco mais, ter paixonites por causa de hormônios adolescentes, estudar, se formar, trabalhar, trabalhar, se apaixonar de verdade — apenas aos sortudos ou não tão sortudos — ser preso em um casamento, ter família, ficar velho, ir parar no asilo e morrer. Mas bem, sendo surdo dá para riscar algumas coisas dessa lista.

“Você fica adorável com o nariz vermelho” Cassie fitou-me com seus olhos claros e mostrou os dentes em um sorriso.

E tudo o que pude fazer foi abaixar o rosto para o caderno e escrever a resposta rapidamente. Só fiz aquilo para que ela não visse que o vermelho não se limitou ao nariz e se espalhou nas bochechas, mas aquilo não era algo que ela precisava saber.

“Ser adorável tira toda minha virilidade”

Gostaria de poder ouvir a risada dela, parecia ser agradável.

“Claro, porque é muito viril escrever em um diário” Pensei em responder que você (meu diário) era bem másculo, já que tinha uma capa de couro toda rasgada e arranhada, mas achei meio inútil gastar meu tempo escrevendo isso. “Acho que sua mãe chegou”

Assenti, apanhando minha mochila e me erguendo quando o carro azul fosco estacionou na calçada, sujo como deveria ser um carro que não vai para o lava-jato há mais de um ano.

Minha mãe pareceu analisar a cena — principalmente a presença de Cassie — com um sorriso de malícia-orgulho que só uma mãe consegue dar. Normalmente esse é o momento em que o pai bate na costa do filho e fala “Esse é o meu garoto!”, mas como o velho morreu há alguns anos engasgado com o caroço de uma azeitona*, acho que era obrigação da minha mãe fazer esse tipo de coisa.

Suspirei e andei, acenando um tchau sem olhar para Cassie.

Antes de alcançar a porta do carro, um vulto de casaco cinza e touca verde se jogou contra a janela aberta e começou a falar algo. Dei um pulo para trás quando notei que a pessoa era Cassie, falando rápido demais e sorrindo para minha mãe. Ahhhhh, eu precisava saber do que falavam, mas não conseguia.

Tudo o que deu para ler de Cassie foram as palavras: “ele”; “na”; “estrela”; “tá” e de minha mãe foi fácil ler um claro: “tudo bem”.

Engoli em seco. Meu Deus, o que estava acontecendo?

A garota se afastou da janela e agarrou o meu braço, enquanto eu, estático, observava minha mãe ligando o carro e saindo para longe, não sem antes mover as mãos no sinal de “Boa sorte”.

Em poucos segundos, o carro velho sumia na esquina e me deixava ali, plantado estático no frio do campus com uma Cassie sorridente demais agarrada ao meu braço.

O que essa garota havia feito?


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Notas finais do capítulo

* Pai do Elliot não morreu realmente engasgado por um caroço de azeitona. Ele teve um tumor na garganta (laringe) que o matou. Como na época Elliot era muito criança, sua mãe inventou uma história com caroço de azeitona simbolizando o tumor, de forma que ele compreendesse. Mas bem, mesmo depois de realmente compreender, Elliot continua dizendo que foi culpa de uma azeitona porque acha que soa mais cômico.

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Mais um capítulo programado. Ainda dia é 15/07 aqui no passado.
Oi, leitores do futuro. Espero que estejam todos vivos. Olha, não sei se no exato momento em que estão lendo isso eu estou viva. Bem, espero que esteja, porque se não vocês ficarão sem o último capítulo, que é o próximo (risada maléfica)
PERGUNTA IMPORTANTE, LEIAM, LEITORES DO FUTURO!
O próximo capítulo, o último, tem nos arquivos em torno de 2500 palavras. Queria saber que vocês querem ele desse tamanho, ou preferem que eu o torne dois e fique cada um com 1000 e pouco.
Por favor, respondam isso.
E é, adeus, volto (espero) em breve.