Criança Domesticada escrita por AneenaSevla
Notas iniciais do capítulo
"O cofre do banco contém apenas dinheiro; frusta-se quem pensar que lá encontrará riqueza."
Carlos Drummond de Andrade
– Eu não aguento isso! – disse a menina pela segunda vez naquele dia, largando o lápis e se debruçando na mesa, a cabeça entre os braços de cor bronzeada, cruzados sobre a mesa – Sr. Jaime, eu odeio matemática!
– Calma Alicia – disse Jaime, seu preceptor, sorrindo e mostrando suas rugas recentes para um homem de meia-idade. E ele, como sempre, era paciente – Ora, são só umas formas geométricas…
– Eu não entendo. – ela se senta e afasta o seu caríssimo caderno devagar - Pra que eu vou precisar disso?
– Para saber noções de área e de espaço – respondeu Clarice, a filha do preceptor, que sempre o acompanhava nas aulas de Alicia para reforço das suas próprias aulas – também para saber coisas a mais como… como… como o quê, pai?
– Como também principalmente ser utilizada na arquitetura, engenharia, e outras áreas, querida – respondeu o preceptor, sorrindo.
– Grande coisa! Eu não vou ser nada disso, então não preciso de Geometria! – respondeu Alicia. Mesmo aos sete anos, ela era altamente geniosa.
– Ah, certo… - então Clarice olhou para o pai e deu uma discreta piscadela, então se dirigiu à rebelde aluna – Licia, sabe por que vai precisar?
– Obviamente que não, né… - ela respondeu sarcástica. Clarice ignorou a patada.
– Porque o seu pai trabalha com vendas de casa, né? – ela perguntou, e Alicia assentiu – então vai precisar quando assumir os negócios, e aí vai precisar saber quanto de terreno você tem para vender, e assim os seus clientes não poderão te enganar…
Alicia abriu a boca para falar uma coisa, mas calou-se, resignada. Clarice sorriu triunfante. Para sua tenra idade de sete anos, tinha uma ótima inteligência.
Enfim a aluna disse:
– Tá, você me pegou – ela olhou para Jaime, que sorria – me ensine isso de novo, preciso aprender para os negócios!
– Assim que se fala – então ele a explicou mais uma vez, e de repente o despertador do celular do Sr. Jaime tocou, indicando o término da aula – ah, que pena… temos de ir, Clarisse…
– Ahhnn… - ela suspirou – eu queria ficar…
– Mas sua mãe chega hoje, querida; esqueceu? – ele diz, e foi o bastante para a menina mudar de ideia e arrumar rapidamente suas coisas, sorrindo imensamente.
– É mesmo! Tchau, Licia! – diz ela, abraçando-a.
– Ah… tchau… - disse a outra, não muito acostumada a contatos.
Após assistir os outros irem embora, Alicia deixou os materiais dela na mesa, afinal, estavam no quarto dela, então não precisaria tirá-los de lá. Andou até a escrivaninha, pegando a sua tablet, deitando-se na sua cama de dossel e iniciando o seu jogo favorito: pássaros raivosos.
Pouco tempo mais tarde, ela tendo completado um nível e meio – e muitas tentativas para isso – ela ouve uma batida na porta.
– Oi filha – era a voz do seu pai – ocupada?
– Um pouco – ela diz, pausando o jogo. Estava quase perdendo o nível mesmo… – mas o que quer pai?
– Saber se você está bem – ele diz, entrando no quarto.
– Tou bem sim. – ela responde secamente – Nada interessante para falar. Queria dizer alguma coisa?
– Na verdade sim – ele deu um pigarro – Achei uma coisa interessante, acho que vai gostar…
– Uma coisa interessante? – ela repetiu, se sentando direito na cadeira, seus cabelos pretos e cacheados na altura dos ombros foram jogados para trás – e o que seria isso?
– Vai saber… é uma surpresa – o homem sorriu maliciosamente, sentando-se na cama, ainda um pouco distante da menina – mas vai ter de prometer uma coisa.
– Claro… - ela não gostava muito de prometer algo que não sabia o que era, mas sendo de seu pai, poderia ser alguma coisa boa.
– Vai me prometer cuidar bem desse presente. Vai ver, é uma coisa bem diferente dessa vez.
– Ah, fiquei curiosa agora – ela sorriu verdadeiramente pela primeira vez naquele dia. Se tinha uma coisa que a fazia feliz, era um mistério ou um presente, dois ao mesmo tempo era o mesmo que multiplicar por mil.
– Promete? – ele repetiu. Queria ouvir isso dela.
– Prometo! – ela podia cuidar de coisas. Só não desgastá-las.
– Ótimo – ele disse – daqui a pouco eu mostro, só preciso resolver uma coisa antes.
– Ah, mostra logo! – ela se levantou de joelhos na cama e o puxou pela manga de sua camisa social – nem pra dar uma dica?
– Não, é uma surpresa – ele soltou-se da mão dela com uma pequena e devagar sacudidela – portanto, só à noite. Até mais tarde, Alicia, comporte-se, certo?
– Tá… - ela se senta de volta, a camisa folgada que ela gostava de usar caindo num dos lados no ombro. E então ela ficou ali, sozinha, e então fechou a cara. Odiava ficar curiosa, e olhou para o tablet. Tinha perdido a vontade de jogar, então desligou o jogo e o jogou de leve na cama, se deitando emburrada.
– Que chato… – ela fez careta, falando sozinha – nem pelo menos uma dicazinha…
E olhando para a tablet, volta a mexer nele, lendo alguma coisa na internet.
No final da tarde, o Sr. Oakley andou até o armazém e encontrou o monstrinho no mesmo canto onde o deixou: sentado dentro da jaula. Este virou a cabeça na direção do magnata assim que chegou. Seus trabalhadores, que estavam jogando cartas numa mesa afastada, olharam muito depois, mas o cumprimentaram assim que o fizeram.
– Boa tarde, Sr. Oakley – disse John – fizemos o que mandou, botamos roupas nele…
– Ótimo – o magnata se aproximou e verificou suas roupas - uma calça jeans de criança e uma camisa social muito folgada, contudo as mangas cobriam até metade do antebraço – É, está apresentável, para um selvagem.
– Estranho o senhor dizer isso, porque ele parece ser bem civilizado, chefe – disse Kyle – assim que eu cheguei com a roupa, ele ficou bem feliz por usá-las, e as vestiu completamente sozinho… até pediu pra gente se virar!
– É mesmo? Interessante… - disse o Sr. Oakley – realmente, é formidável, e inteligente…
– Parece um Alien – Jeffrey riu. Os outros seguiram, e o Sr. Oakley ouviu um pequeno rosnado do bicho, como um riso também, mas imediatamente parou ao perceber que estava sendo visto, como que repreendido. Por um momento ele pensou que o pequeno podia entender o que diziam, até perceber que ele estava apenas achando graça do riso dos capangas.
– Hmm… - refletiu o homem – Kyle, Jeffrey, cubram e levem a jaula até a casa. Está na hora. John, pode guardar o caminhão no depósito.
Os três caras se entreolharam e assentiram, desfazendo o jogo, movendo a mesa e cada um foi fazer seu trabalho, sendo que os que levavam a jaula a cobriram com um pano, colocaram num carrinho e acompanhavam o seu chefe.
– O senhor acha que ela vai gostar? – perguntou Kyle, o mais jovem dos três, enquanto andavam pela estrada de concreto até a mansão.
– Absoluta certeza – ele respondeu – Ele com certeza não é um bicho comum, e de fato é raríssimo, ela gosta de raridades.
O pequeno mais uma vez sentia o mundo andar, mas desta vez não se sentiu tão desconfortável: por estar em um ritmo devagar, ele conseguia entender onde estava, através de seus sentidos, via um campo aberto, o cheiro de grama cortada e de céu úmido e aberto inundavam suas narinas, e a vibração das “pernas rolantes” da gaiola ajudavam a entender que o chão era cheio de pedras delicadamente juntas umas nas outras, e os passos das criaturas eram muito familiares, o que eles calçavam lembravam algo que parecia estar muito distante… perdido em suas memórias. Sentiu um pouco de dor de cabeça ao pensar nisso, então voltou sua atenção à direção para onde estava indo e notou meio ao longe uma construção enorme, polida, de algo que ele notara outras vezes em outras casas, mas ainda não sabia o nome.
O cheiro dela era estranho… um aroma de flores a rodeavam… até que notou as ditas cheirosas perto da casa. Por tudo que viu, estava em um lugar bonito, mas pare ele era muito exposto… das árvores que notou, eram esparsas e muito separadas, nenhum sinal de floresta em canto nenhum… e de novo a dor de cabeça apareceu, então pôs a mão na cabeça, sacudindo-a depois, um pouco atordoado.
O Sr. Oakley percebeu isso. E disse aos seus empregados:
– Um pouco mais devagar no ritmo, rapazes. Ele parece tonto.
– Desculpe chefe – disse Jeffrey, desacelerando o passo.
– O senhor não acha que essa tontura toda pode ser por causa de fome? Olha só como esse bicho é magrinho…
– Bem pensado, Kyle, mas o estranho é que ele não tem boca, nem nada que possa nos ajudar em como ele poderia se alimentar. Pretendo testar isso depois…
– De repente a gente coloca ele no sol e resolve – Jeffrey, o zombeteiro, ataca novamente.
– A hipótese não é descartável, mas os homens do leilão não me disseram nada… - e foi aí que o magnata avistou a casa - Ah, cuidado agora, meninos, estamos quase na porta…
Então levantaram a gaiola e trouxeram para frente da porta, passando por ela. Esta era larga, então não houve problemas. A sala, assim como a porta, era larga e suntuosa, as paredes pintadas de bege claro, com cortinas transparentes da mesma cor nas janelas de vidro com esquadria branca. Boa parte dos móveis – dois sofás, duas poltronas – era da cor do marfim com madeira pintada de preto. Um tapete de pele de urso negro decorava o chão, embaixo de uma mesa de centro em mármore e metal. Também tinha uma televisão de sessenta polegadas e um conjunto home theater com blu-ray e vários DVDs. Um divã vermelho “quebrava” o tom, e toda a casa tinha um ar vintage, porém moderno.
O monstrinho não pôde deixar de ficar fascinado com a quantidade de detalhes estranhos do local, virando a cabeça para todas as direções, e soltou um ronronado de admiração. Kyle, que estava mais próximo da jaula na hora, foi o único que percebeu, e isso arrancou um pequeno sorriso do humano enquanto saía da casa.
O Sr. Oakley olhou para a jaula coberta com o pano, e enfim resolveu chamar sua filha. Ela já devia estar terminando o jantar.
– Alicia? – disse ele andando até a sala de jantar – Querida?
– Sim pai? – eis que a menina apareceu com uma empregada, que tratou logo de sair do local para cuidar de seus afazeres. Ela estava com uma camisa mais justa e usando um short jeans, os cabelos encaracolados lavados e penteados, presos atrás, mostravam claramente seu rosto redondo, e os olhos eram cinzentos como os da mãe, que por acaso estava ausente no momento, tratando de outros negócios na Escócia.
– Não lhe disse que traria um presente? – disse o magnata. A menina instantaneamente sorriu.
– Ah! E o que é? – os olhos dela se iluminaram, tentando ver por trás do pai, mas este a impediu.
– Ah, calma – ele sorriu – primeiro uma pergunta: o que acha que é?
– Uma coisa bem c… rara! – ela ia dizer “cara”, mas preferiu não ofender o pai.
– Acertou. Garanto que nunca viu algo igual.
Alicia se encheu mais ainda de alegria, ela adorava ganhar presentes, ainda mais quando faziam suspense. O Sr. Oakley deixou a filha ir ver a jaula, coberta com um pano preto. Ela parou na frente e olhou para o pai, que acenou com a cabeça, incitando-a retirar o pano.
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Ilustrações, depois.