Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 21
Shades of blue


Notas iniciais do capítulo

Então, se estiverem pensando em me matar pela demora, não me matem. Eu saí escrevendo e, de repente, o capítulo tinha quatro mil palavras! Eu disse que o passado antecederia um tipo de reviravolta porque foi bastante neutro. A partir desse, conforme o contexto for aprimorado, vocês vão perceber centenas de coisas se revelando. Mesmo que seja num tom bastante misterioso, o clímax está por vir. Algo vai inquietar o enredo, por exemplo, no próximo capítulo.
Mas antes, uma boa leitura.

Amo todos vocês, e obrigada pelos reviews.



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— Quer saber o que aconteceu? Quer saber o que você odeia considerar? A casa foi reconstruída. As escadas de ferro que você costumava conhecer passaram a ser de madeira. A casa mudou. O incêndio mudou. E, hoje, ela está aos pedaços. Sabe por quê? Porque o que o incêndio levou não foi a mobília. Ou as escadas, ou os retratos, ou as lembranças. O incêndio levou a estrutura dela. A sua estrutura. E, um dia, você vai estar aos pedaços exatamente como pôde ver que hoje ela está.

Lembro que estava sentindo medo e que uma mulher de sapatos de salto e vestido vermelho se aproximou de mim. Num piscar de olhos, ouvi uma melodia tocar ao fundo. De repente, o silêncio mostrou-se visível, também, trazendo uma confusão jamais explicável. E palavras embolavam-se. Umas sobre as outras, umas através das outras... Embolavam-se e era quase impossível desembolá-las.

Surgiu uma cena angustiante: meus pais, ainda vivos, como nos retratos recém-quebrados, choravam defronte a uma lápide solitária. Meu nome estava gravado ali, sólido. Entendi que estava morta, pelo menos caso a cerimônia fúnebre acontecesse mesmo. Passos distanciavam-se e aproximavam-se, e a música alternava-se. Cautelosamente. Serenamente. Tranquilamente.

O portão fechou, achando-se vazio aquele silêncio que deixou de ser tão carregado. O par de saltos voltou a aparecer em minha direção acompanhado daquele vestido longo, vermelho-sangue. Os cabelos já passavam da altura dos ombros havia muito, negros e lisos, movimentavam-se à brisa vivíssima acima dos adormecidos para sempre. Era ela. Os olhos, quase da mesma cor dos cabelos, apagados. Torturantes — e, ao mesmo tempo, saudáveis. Os lábios, embora pálidos, transpareciam uma feição ligeiramente satisfeita. Havia luz, e como havia.

Mas doeu quando as palavras de fúria acenderam-se para o nada, cobertas pelo nada, senão pela névoa.

Minha companheira de quarto.

Minha companheira de quarto, mostrando o lado que nunca mostrou a alguém antes.

Ainda assim, pude ver que as íris sombrias afogaram-se. Lágrimas ardentes, por pouco não corroíam a pele. Difícil saber se o sentimento era falso ou se era realmente a mágoa.

Num outro piscar de olhos, me via novamente naquele cenário do cemitério abandonado que tanto gostava de visitar. Ao contrário do que tinha vivenciado primeiramente, era como apreciar a vida. Finalmente havia um motivo para continuar sobrevivendo: o meu motivo estava ali, ao meu lado na grama, sonolento. Eu queria poder admirá-lo para todo o sempre, com certeza um sempre bem maior do que qualquer outro... Mas, pelas forças!, eu tinha acabado de sussurrar que o amava. E se o pianista estivesse ouvindo? Ele estava, eu sabia que estava antes de literalmente saber. Sempre soube que disfarçava bem. E, sem exagero algum, era realmente como se minha alma quisesse libertar-se de dentro de mim e dizer mais. Sentir mais. Sentia como se mil Universos saíssem dele, despedindo-se brevemente.

Eu queria que pudéssemos ver a eternidade ir e vir bem naquele gramado aos fundos do cemitério.

E sobreviveríamos enquanto estivéssemos ali, por mais irônico que pareça. Como se despertássemos de um pesadelo muito parecido com sonho. Com toda a certeza, jamais sentiria algo como aquilo que senti por ele. Eu seguraria a mão do pianista e deixaria que me levasse até mesmo para dentro das chamas, desde que estivesse comigo.

O medo se foi.

Uma visão. Um devaneio. Uma sequência. E o que seguia-se dela? Soube no momento em que, não minha alma, mas meu corpo começou a doer. Doer muito. Senti algo além de pesado fraquejar meus ossos.

Peguei um copo d'água ao lado da cama, mas havia gosto. Gosto salgado... gosto enjoativo, para mim, como seria o gosto daquelas lágrimas ardentes de Carly. E engoli. Virei-me, o sorriso patético deu lugar àquele perverso, o mesmo conjunto de agasalhos velhos cobria a mulher. Olhei ao redor, podendo ver paredes pardas e de pintura gasta, descascando. Ficaria de pé, mas a dor persistia.

E havia o ambiente lá fora, envidraçado. Certa vez, ouvi a voz ameaçadora da senhora dos bolinhos — mesmo que, à luz do luar, acabasse me esquecendo dela.

— Então, Samantha — ela pronunciou na tentativa de me pegar de surpresa, o que soou bastante mal —, não esperava ver todos os retratos de sua família pendurados aqui na minha casa?

— Quem é você, afinal? Como pode saber tanto? — desafiei.

— Nunca nos vimos antes, exceto naquela vez dos panfletos. Acontece que qualquer um, de longe mesmo, avaliaria o quanto sua postura deixa a desejar. O quanto é frágil e misteriosa, o quanto guarda segredos sujos e que pretende não revelá-los. — Riu, numa tentativa macabra que não foi bem sucedida. — Sou uma pessoa comum, uma pessoa bem diferente de você e da sua gente.

— Por que me arrastou até aqui? Me deixe sair! E que tipo de água é essa?

Ela permaneceu calada, até que uma única frase fez com que eu me apavorasse por uma fração mínima de segundos:

— Não sente gosto de lágrimas?

Entendi que eram as lágrimas dela. E que eu havia cometido o erro de bebê-las.

— Mas que porra! O seu sofrimento não me interessa! Vou me soltar das dessas cordas e acabar com o resto do que sobrou da "senhora", porque não existe mais respeito entre nós...

— Não existe? Desde quando anda tão corajosa?

— Pelos planetas do Universo, eu nunca te vi na vida!

— Temos coisas em comum, embora eu seja normal e você não. A primeira é o meu filho. Você acabou com a vida dele.

— E como achou os retratos? Pertences da minha família? Foda-se o seu filho, nunca ouvi falar dele!

Mas não foi necessária uma resposta para que eu assimilasse: ela conhecia a casa. Já tinha ido até lá. Conseguiu as fotos lá, obviamente.

E ela não era um ser das trevas, uma vidente ou qualquer outra coisa sobrenatural. Era uma mulher, uma senhora que gostava de distribuir bolinhos e que fazia propositalmente... assim que conseguisse dar uma volta nela, sabia que nunca mais a veria. E não demorou muito. Eu fugi. Eu corri. Eu até mesmo tropecei. E eu caí.

Quando caí, sem olhar para trás, pude ouvir aquela voz soar doentia pela centésima vez na manhã, tarde ou noite que passei ali:

For Elise não é para você.

[...]

Mas o que queria dizer a mulher? Será que se chamava Elise, será que realmente conhecia a música ou pelo menos quem a havia tocado recentemente para mim? Será que o seu amado filho tinha algum tipo de familiaridade com o pianista?

Tudo soava como incompleto. O dinamismo da situação me fez parar e pensar por horas. Pensei no quanto eu deveria ter pensado antes: antes de aceitar o convite para o interior da casa ou sequer deixar de desconfiar da senhora estranha; antes de ter me deixado levar pela fome, pela pena e me esquecido de usar a voz da razão pelo menos uma vez no dia, ou na vida.

Usar a minha ignorância, eu gostaria mesmo de saber fazer isso adequadamente.

Cheguei cambaleando pelo apartamento, mais precisamente no banheiro. E num estado deplorável, de acordo com o espelho. Meu reflexo estava bem ali, me encarava, e ao invés de lavar o rosto, tomar um banho quente para tranquilizar os nervos ou qualquer outra coisa, peguei o celular no bolso da calça jeans e digitei os números de Freddie numa velocidade questionável.

E eu não precisava de muito, não estimava tanto. Ele precisava estar ali, o telefone quase aos pedaços precisava funcionar ao menos uma vez para que eu o ouvisse dizer meu nome. Clamei ajuda aos céus, a Deus... e implorei que ele atendesse para qualquer outra daquelas forças superiores que me vinham à cabeça. Sabia que alguma delas iria ajudar.

— Fr-freddie? — gaguejei. Minha voz era têmula e baixa, como se eu tivesse respirado ao invés de pronunciar as sílabas de seu nome.

Foi nada menos que o bastante e nada além do bastante para que ele reconhecesse quem estava do outro lado. Eu era o outro lado, ao menos uma vez, e ele sabia exatamente disso desde que ouviu o ritmo da minha respiração, pelo jeito.

— Amor? Eu li sua mensagem e fui te procurar pouco tempo depois e não encontrei. Pensei que você só ia passar pelo apartamento e depois voltar — ele disse, e aquilo me confortou de um jeito que qualquer pessoa diria ser impossível.

Meus sentimentos davam mais do que uma única razão para serem contestados: havia algo de anormal neles. Algo de instável. Algo de incontrolável. E um pouco de todos os prefixos usados com o fim de tornar uma coisa contestável, óbvio.

— Sam? Aconteceu alguma coisa? — Sua voz já podia ser ouvida num tom diferente do de antes. Sua preocupação era algo que até mesmo o silêncio insinuava. — Meu Deus, você ainda consegue me ouvir?

— Sim. Por favor não desliga. — Suspirei e relaxei por alguns instantes, ainda sem explicar o que havia acontecido. — Pianista?

— Meu amor... Sua respiração... Você... — ouvi sua voz, estava prestes a dizer exatamente o que eu estava sentido. Diria por que eu estive chorando desde que ele atendou o telefone, ou antes, ou sobre tudo que eu poderia fazer depois. Mas ele soube com uma antecedência quase improvável.

Não porque tinha o dom de ler mentes, mas por outro detalhe totalmente diferente.

O pianista não disse uma só palavra. Também devia ter a consciência de que, quanto mais falasse, mais pioraria as coisas para nós dois.

— Eu não aguento mais, Freddie. Eu não aguento ter pesadelos, visões, ser ameaçada por velhas e todo o resto... Sei que a minha existência tem um propósito, mas não consigo encontrar explicações sozinha. Vou morrer.

O silêncio respondeu por ele, mas eu entendi que precisava de... tempo? Talvez precisasse mesmo de um tempo para assimilar tudo que tivesse relação comigo. E com as minhas turbulências. Nunca o culpei por isso. Na maioria das vezes, ficava melhor. Melhor por saber que ele estava mesmo refletindo sobre algo que diriam ser ilógico.

Melhor por saber que ele estava mesmo refletindo sobre alguém como eu. Que tinha me dado uma chance.

Eu nunca me arrependeria de ter sido sequestrada por ele.

— Da próxima vez que alguém se lamentar da morte, responda positivamente. Você vai morrer. Eu vou morrer. O Universo vai morrer um dia, Sam, mesmo que seja só para alguém que por acaso acabe perdendo a chance de sobreviver. Mas esse dia ainda não chegou, então você não tem por que se preocupar. — Por um momento, fiquei ainda pior de lembrar que um dia, não só eu, mas nós dois morreríamos. E foi o necessário para que uma maré de maus pensamentos invadisse minha cabeça com ainda mais impacto do que na primeira vez.

— E eu acho que esse tal dia fica cada vez mais próximo.

Era a lógica, Samantha Joy Puckett. Era exatamente o que ele estava querendo dizer e, pelos céus!, você não entendeu até que ele especificasse o máximo que pudesse...

— Estar perto da morte não significa que você viveu o bastante. Porque a morte nem sequer enxerga o tempo, ou enxerga?

— Como? Mas eu já devo ter algum tipo de histórico. Vivo pra nada?

Tudo que ouvi foi uma resposta negativa convincente a respeito do quanto a morte passava longe da minha pele:

— Não, Sam. Ninguém tem hora marcada com ela. A própria morte não gosta de fazer seu trabalho, então deixe que o resto vai se descomplicar. — Apreciei as paredes pardas, pensando que poderia estar apreciando cada traço do rosto dele enquanto o esperava falar. E deitei na cama, imaginando que havia começado um diálogo esquisito. Mas não era tanto assim para nós dois, dois órfãos. Ele hesitou. Ao invés das outras vezes, pareceu só mudar de posição enquanto segurava o telefone, para continuar a dizer o que pretendia. Nem mesmo ficou por minutos formulando algo inteligente a aconselhar. — Enquanto isso, aqui na vida, você tem a mim. E coisas que vão além de mim. Você não tem necessidade nenhuma de aprender o que significa viver sozinha.

— Eu sei que tenho você. E isso também me deixa louca.

— Não é ruim saber que eu te deixo louca. Sabe disso, não sabe? — Foi estranhamente adorável quando pude ver o sorriso dele, mesmo que estivéssemos em lados opostos. — E agora você parou de chorar, não parou?

— Parei.

— Você pode esperar quinze minutos?

— Depende. Esperar por quê? — Tentei não transparecer um tipo de desapontamento.

Eu não gostava de me despedir. Era ainda mais intenso quando se tratava dele.

— Não vai embora. Não desliga. Por favor. Eu preciso ouvir você respirar, pelo menos. Freddie? É sério. Eu vou voltar a chorar se você desligar e...

A respiração dele já não era mais audível.

Eu sentia como se acabasse de ser esfaqueada. E nem estava com uma faca em mãos. E também não havia ninguém com uma faca em mãos. A morte não anda com uma foice, e eu tinha acabado de descobrir isso.

Senti como se descobrisse o mundo.

Saí da cama para o banheiro. Me despi e depois fiquei observando alguns cortes, cicatrizes aqui e ali... não eram bem daquele dia. Existiam desde muito antes.

Finalmente embaixo do chuveiro, afundei nos meus próprios medos, nas más lembranças e em todo o resto apavorante. Tinha colocado as roupas limpas em algum lugar dali antes que me desse conta de que precisava sair andando até o guarda-roupas para me vestir, enrolada na toalha, como minha companheira de quarto costumava fazer. Por isso, ela passava anos decidindo o que vestir para as aulas pela manhã, selecionando até mesmo as cores que parecessem menos chamativas — e até mesmo as mais chamativas, quando queria conquistar algum dos garotos da classe de filosofia. Filosofia era absolutamente terrível, como podia ser uma de suas matérias favoritas? E por que ela gostaria de listar cada uma delas? Não que eu tivesse observado, simplesmente deduzi isso. Ela era dedicada, organizada... O meu oposto me encarava bem de perto todos os dias e eu não tinha como fechar os olhos e idealizar seu lado maligno. Tudo se juntou para ser futuramente lembrado.

Cerca de dez minutos depois, já tinha refletido o bastante. O que seriam aqueles quinze minutos do pianista? Será que ligaria outra vez, faria uma surpresa ou coisa do gênero?

Resolvi ser mais rápida. Peguei um casaco, vesti e saí porta afora. A primeira coisa que avistei ao sair do prédio foi uma criança. Uma criança perdida no meio de centenas de pessoas que andavam rápido de um lado para o outro. Perdida no meio de automóveis dirigidos por homens e mulheres impacientes. Pessoas que não olhavam para o lado ou para atrás, que custavam a olhar para a frente.

Mas eu fui até ela. Olhei para a direita e esquerda, não havia nenhum sinal dele por entre qualquer uma daquelas construções e aglomerações. Ele não estava ali depois dos quinze minutos que tinha dito, então cansei de esperá-lo.

A menininha encarou a mim, procurando conforto no meu semblante. Eu sentia que não podia ajudá-la.

— Tudo bem? — Ajoelhei numa parte da calçada, ao lado dela. — Por que está aqui? Por que está sozinha?

— Não sei.

— Onde estão seus pais?

— O quê?

— Sua família, onde está ela?

— Família? — ela pronunciou, parecendo dizer a palavra pela primeira vez em seus poucos anos de vida. Tive quase certeza de que era isso, ela quase me convenceu.

— Não sabe o que é isso?

— Não.

— O que aconteceu com sua família?

Ela olhou em volta... como se pedisse permissão a alguém que não estava entre nós.

— Eu vou morrer? — perguntou, com os olhinhos insinuando esperança. Esperança de que eu dissesse não.

Mas lembrei do que o pianista tinha dito. Eu não podia alimentar ainda mais toda aquela enganação.

— É, você vai, um dia. Eu também vou. Talvez a gente acabe indo pro mesmo lugar, e você vai ter com quem conversar. Não se preocupe.

— Dizem que vamos para um lugar ruim...

— São teorias. Não acredite nelas. — Sorri e ela sorriu de volta. — Mas, e aí, o que você anda procurando?

Ela ignorou a pergunta, desfazendo o sorriso.

— Não quero morrer. Não quero morrer. Não quero morrer.

E repetiu outras mil vezes.

Eu evitava olhá-la nos olhos. Eu tinha feito algo muito errado. Tinha dito a verdade nua e crua para uma criança. Tinha acabado com sua infância. Tinha queimado todas as chances dela de dar a si mesma uma noção de mundo ingênua, pura. Tinha sido a pior das ouvintes e não conseguia pensar em algo para consertar tudo.

Era de se esperar. Eu não era habilidosa com crianças, nem mesmo entendia a mim mesma quando era uma.

— Tudo bem, vamos analisar de outro jeito: se você não quer, então não vai — finalizei. Ela pareceu aliviada.

— Você quer morrer? — perguntou, mais confiante.

— Eu tenho dezessete anos. Dezessete. — Recebi um olhar interrogativo. — É que, quando você tiver dezessete anos, vai entender que morrer parece mais legal que viver.

Quase disse outras besteiras... mas não tive tempo. A menina desapareceu da minha frente quando desviei o olhar para mais alguma placa luminosa. Fiquei receosa de nunca mais ver aquele rostinho. Viveria inquieta por não ter explicado direito o porquê de eu querer morrer, na verdade.

Viveria.

Tinha acabado de destrancar de novo a porta. Foi tarde quando lembrei que estava com uma fome terrível e, por um acaso, me esqueci completamente de comprar algum hambúrguer no caminho.

Viveria se, por um acaso, não abrisse a porta.

Viveria se não desse com um maldito de um pianista segurando uma caixa grande de pizza enquanto ia até a geladeira improvisada, pegando algumas bebidas e colocando tudo na mesa de centro. Eu poderia ignorá-lo e ignorar o quão rápido ele tinha chegado até lá, comprado pizza e me beijado. Ele nem me deu o tempo que eu precisaria para fechar a porta por trás do meu corpo e perguntar por quê, em nome da luz mais brilhante, tinha feito aquilo tudo ao invés de levar aquela minha reclamação como algo diário. Eu reclamava todo dia. E nem me dava o trabalho de enxergar o lado bom das coisas, mesmo que quase sempre estivessem recheadas de lados bons.

Porque, em algum lugar do planeta, alguém estava desacompanhado e passando por crises bem mais complexas e difíceis de serem resolvidas. Alguém estava doente de qualquer problema gravíssimo e possivelmente mortal, estava sabendo todos os dias que há uma restrição para tudo. Até mesmo para amar.

Mas, bem ali, no outro lado daquela porta entreaberta, havia um motivo para sobreviver. Exatamente como na visão, ou melhor, no devaneio sobre o dia anterior. Havia o contrário: um motivo para amar ainda mais e esquecer que alguns minutos atrás alguém estava sofrendo. Mesmo que esses pensamentos desagradáveis chegassem sem um aviso prévio, era fácil simplesmente deixá-los ali, no ar. Era fácil não dá-los tanta importância. Eles nunca mereceram ser importados.

Então notei o quanto eu vinha sendo uma idiota e merecia ser machucada.

— Como soube que eu sairia? Como pensou em tudo tão depressa assim? Como você faz isso, como você...

— Simples: eu sabia que você não sossegaria por quinze minutos. Você é teimosa e... se eu dissesse pra você esperar... eu acho que qualquer um sabe que você faria o contrário, Sam. — Ele deu de ombros ao terminar a frase. E depois roubou outro beijo meu.

— Isso soa muito genial. Meus parabéns. — Dei um sorriso meio fraco e andei, jogando o casaco em alguma parte do assento do sofá. Depois, só me joguei nele. E fiquei fitando as rachaduras e outras pequenas partes defeituosas da estrutura da sala, pegando um pedaço de pizza e mastigando rápido. Ele assistia a meus movimentos com as sobrancelhas arqueadas e as mangas da blusa erguidas. Depois, apoiou o corpo num dos braços do sofá e deslizou até estar sentado ao meu lado.

Fazíamos um contato visual incrivelmente forte. Não era a primeira vez, e isso não quer dizer que eu não perdia totalmente o controle toda vez que isso se repetia.

— Você é mesmo um oceano misturado com céu — ele sussurrou. Não para que eu não ouvisse, e sim para que entendesse e interpretasse cada sílaba no tom certo. Eu fechei os olhos por cinco segundos, tentando deixar de me concentrar em qualquer outra coisa que não fosse a dor desesperadamente viciante que estava sentindo, dosada de sentimentos completamente contrários a ela. Ele passou as mãos por dentro da minha blusa, envolvendo minhas costas de forma que eu fosse para mais perto. — E eu sei que esse oceano não poderia estar mais agitado, e esse céu não poderia estar mais chuvoso. Mas isso não faz com que você deixe de ser um oceano misturado com céu, sabe?

— E como você chegou a essa conclusão tão incerta sobre mim? — Eu nunca seria tão ampla, extensa e infinita quanto as águas ou toda a imensidão acima do teto, do prédio, do mundo, dos satélites e das estrelas que podemos contar. E a linguagem figurada era o que me impressionava: ele realmente falava como se acreditasse naquilo. Não é como você pode imaginar um indivíduo insinuar, num piscar de olhos, que o céu é a azul e o sol é amarelo, sem confiar totalmente ou pelo menos fazer um conceito das palavras que diz. O pianista era exatamente o tipo de pessoa confiante o bastante para afirmar, com toda a certeza do mundo, que tudo ao redor tem uma cor mesmo que ela nem sempre seja visível. E que existem tantas coisas invisíveis, e que mesmo assim existem infinitas cores por trás.

Eu nunca entendi, de verdade, o que ele estava querendo dizer. Mas você não vai achar graça de uma metáfora se souber ligar ponto por ponto; você vai, provavelmente, criar mais e mais metáforas e nenhuma delas vai passar a mesma mensagem.

— Eu já disse que o azul dos seus olhos é o mais bonitos de todos os outros azuis? — respondeu, usando outra pergunta.

Não queria que ele deixasse a conversa por terminar ou que levasse como encerrado aquele assunto que tinha começado — estava gostando de ouvi-lo —, mas algo me surpreendeu.

As mãos dele já tinham acabado com qualquer distância que havia entre nós, num ritmo lento e eficaz. Os lábios estavam quentes como os meus, dessa vez, e tive vontade de prová-los por mais tempo do que poderia enquanto nossas respirações permanecessem unidas. Senti quando os meus foram massageados, bem devagar. Cada segundo agravava ainda mais, trazendo uma tensão ainda maior, com suas mãos enlaçadas em volta de mim e as minhas perdidas por ele.

Quando tive a impressão de que tudo ficaria melhor, deixei que o beijo fosse prolongado. Aquelas sensações só cessaram no momento em que ele se afastou, depois de ter passeado com seus lábios tão excitantes pelos arredores do meu pescoço, pelas proximidades da minha clavícula. Foi só então que pude sentir o vazio que deixava quando se afastava.

— Você não precisa... — comecei, mas depois desviei minhas atenções para o teto. Antes de retomar o diálogo, tossi um pouco para que ele tornasse a ouvir. — É que... Freddie, eu nunca mereci tanto ser machucada como mereço agora. Eu mereço mesmo. Eu mereço mais do que isso, pode ter certeza de que não tem por que se importar. Não precisa se importar com uma coisa dessas só pelo fato de... O que eu estou dizendo? Você nunca me machucaria. Nem mesmo se fosse a intenção. E eu garanto que isso não vai mudar nada entre a gente, nada mesmo.

Ele podia me machucar o quanto quisesse, mas não o fez. Simplesmente alisou as mechas do meu cabelo, nem sequer elevando a voz quando achou necessário dizer alguma coisa.

— Meu amor... Eu sempre vou estar aqui. E, se eu estou aqui, é porque nunca quis que você sofresse. Eu não sei o que aconteceu hoje de manhã, eu não quero te pressionar ou dar a entender que precisa ser sincera e direta o tempo todo. Seria mais do que um desafio agir o tempo todo assim, principalmente quando se trata de nós dois. Eu odeio ser direto, odeio não enrolar por horas até encontrar a frase que defina o que você sempre mereceu ouvir.

Dei a mim mesma a liberdade de observar que, sim, ele nunca esteve falando com tanta seriedade e paixão quanto naquele momento. E estava sendo direto e indireto ao mesmo tempo, mesmo que isso contorcesse uma grande parte do que tinha acabado de escutar.

Contorcer não é o mesmo que estragar. Nada que ele dissesse soaria como péssimo.

— Lembra de ontem, quando eu disse que te amava? Eu nunca vou me arrepender de ontem. Eu cometeria qualquer erro, exceto me arrepender disso.

Eu senti uma dor que transbordava felicidade, e um conjunto de emoções esvaiu-se. Porque ele estava ali, me trazendo para perto de novo, sem qualquer motivo para que se afastasse. Uma energia positiva tomou conta do que, inicialmente, aproximava-se de um desastre sem fim.

E eu podia concluir que tinha acabado de encontrar o verdadeiro lado bom de estar machucada: uma hora, você vai acabar esquecendo da dor. Ou vai enterrá-la, deixar de colocá-la em primeiro lugar.

— Achei que estava sonhando quando você disse que me amava, lá no cemitério. Eu pude ver as peças mudarem de lugar: suas pernas cruzadas, você sentada na borda daquele canal que vimos, e depois dizendo que me amava... E agora eu pude ouvir em todos os sons que foi verdade. — Eu assenti. — Só me lembro de ter dito que...

— Você é o meu Universo — completei.


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Notas finais do capítulo

Sabem que podem dizer o que pensam, então nem sempre precisam ser breves. Só quando quiserem, hahaha.

Eu estive exageradamente viciada em escrever Seddie nesse capítulo e no outro e também no anterior ao outro, caso não tenham percebido a intensidade aumentado cada mais... isso também é algo bastante proposital. Tirem suas conclusões.
Meus sinceros beijos!



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