Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 20
Curses to be broken


Notas iniciais do capítulo

O capítulo antecede uma fase bem nova da fanfic (a fase nova da fanfic antecede o fim, então estamos quase lá, afinal já é o capítulo vinte) e presumo que vão gostar bastante das novidades.
Espero que aprovem, amo vocês.



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Estávamos eu e o pianista, de mãos dadas, deitados numa parte do gramado daquele cemitério. Percebi que ele nem mesmo fazia se importar. Eu também não, decerto não havia lugar melhor para passar a madrugada.

Talvez pensasse em mim enquanto olhava para cima. Eu, sim. Eu estava pensando nele. Estava pensando em nós dois. Estava pensando nos meus pais, também, afinal estariam sempre enterrados ali. E tinha realmente o conhecido andando por aquelas lápides... tão inacreditável. Por isso não conseguia parar de pensar nisso.

— Freddie?

Pude fitar uma parte do céu estrelado acima de nós.

Também era possível vê-lo se virar um pouco para olhar nos meus olhos, então fiz o mesmo, deixando o céu estrelado para trás. As palavras fugiram por algum tempo. Ele parecia ter parado para examinar cada detalhe meu, o que, de alguma forma esquisita, fez com que me sentisse constrangida. Senti minhas maçães do rosto esquentarem.

E eu odiava estar constrangida.

— O que foi? — ele perguntou, pressentindo algo. Era bastante provável que achasse que eu não estava bem.

Mas, ao contrário do que talvez passasse por sua cabeça, eu estava muito bem. Tudo que fazia além de estar bem ao lado dele era pensar. Estava só pensando, ou melhor, lembrando.

— Por que não quis dizer o quanto me amava mais cedo? Por que achou mais conveniente usar o pretexto de que todo amor é um grande amor? — Eu precisava chamar a atenção dele de algum jeito.

E queria notar algo além das estrelas que cintilavam, espalhadas por cada parte da imensidão para a qual eu sempre acabava desviando meus objetivos. Objetivos que, de repente, resumiam-se em ficar ali e observá-la.

Nunca soube por que todos reservavam as noites para dormir, esquecer. São tão bonitas. São tão seguras. São tão... tão diferentes do que costumavam ser.

— Quer saber o quanto eu te amo? — ouvi, mas fingi não ter ouvido e concentrei minha mente naquelas estrelas outra vez.

Nem mesmo assenti.

— Eu te amo o bastante pra saber que você sempre esteve fervendo por dentro, e que está ainda mais agora.

Continuei ali, parada.

— Sam, eu sei que nada que você faz implica nas coisas que você pensa. Você pensa mais do que eu. Você pensa mais do que muita gente. Você deve estar pensando agora no quanto odeia que eu não vá direto ao ponto, porque eu conheço sua ansiedade.

O pianista estava totalmente certo. E aquilo me fez corar. Não podia controlar essa parte do meu corpo, eu acho, mesmo que pudesse controlar meus atos.

— Agora, você meio que corou. Eu sei por quê — ele dizia, baixinho. — É porque você pensa que eu posso ler sua mente, Sam.

— Eu não estava pensando exatamente nisso de você poder ler minha mente — falei num tom nervoso.

— Eu nunca quis invadir sua privacidade — argumentou seriamente. E depois riu. Tive um tipo de coragem ao me permitir rir com ele. — E isso é só uma prova do quanto eu te amo.

— Uma. Uma prova. Não é o suficiente.

Houve um incômodo silêncio, era sua vez de buscar conforto nas estrelas cintilantes.

— Um ano tem, mais ou menos, oito mil e setecentas e sessenta horas. Sabe o que isso significa?

— O quê? — perguntei, olhando fixamente para ele, e depois desviei minhas atenções para uma árvore que se movimentava conforme o vento ia passando.

— Nada.

— Como nada? Quer dizer, você não respondeu minha pergunta inicial, ou respondeu?

— Nada se eu não passar cada uma delas com você.

Eu me sentia idiota por ter ficado arrepiada com a frase, afinal ele persistia em omitir o verdadeiro propósito de todo aquele diálogo.

— E o quanto você me ama, Fredward Karl? — falei, insistindo que prosseguisse.

Ao invés de encarar os céus, ou as árvores, ou os túmulos, ele finalmente encarou a mim por uma segunda vez. Depois, pronunciou cada sílaba como se estivesse contando um segredo a alguém:

— O quanto eu te amo é o infinito triplicado milhares de vezes. São milhões de fins e inícios e extremos.

— Um Universo de Universos? — perguntei. Tinha a intenção de descobrir se era tão vasto assim.

— Um Universo de Universos. Um oceano de oceanos. Um mundo de mundos. Tudo que você quiser.

Mais uma vez, ele sorriu. Eu não pude conter a vontade de sorrir também. Deve ter sido o sorriso mais verdadeiro.

Inclinei meu corpo e nossos lábios se encontraram por algum tempo. Depois, só fez com que eu perdesse o equilíbrio retribuindo o beijo de uma forma mais intensa do que a imaginada.

Assim que o beijo cessou, Freddie uniu mais nossos corpos e me abraçou, passando a mão pelas minhas costas num movimento de vaivém. Fiquei bem ali, o abracei de volta. Senti o cheiro dele. Suspirei um pouco e depois levantei a cabeça para vê-lo admirar as estrelas novamente.

— Elas são mais interessantes do que eu?

Esperei que respondesse, foquei no brilho de seus olhos castanhos que talvez fosse ainda mais reluzente. Mais que o céu. Nunca senti algo tão forte quanto o que estava sentindo ali, no calor dos braços do pianista.

— São, sim. Claro. Porque eu posso abraçá-las e dizer que as amo muito, não posso? E também posso encher cada uma de beijos — respondeu, usando um tom de voz irônico.

— Garanto que você já quis fazer isso, não quis? — Passei a rir de mim mesma. Era propositalmente idiota sentir ciúmes de alguma estrutura astronômica. — E também tem aquele seu piano, não vive sem ele...

— Sempre existirá o insubstituível. Tanto que, agora, eu poderia muito bem estar tocando, mas onde estou?

— Olhando pro céu.

— Olhando pro céu com quem?

— Você que tem de responder, pianista.

— Com quem mais eu estaria às duas da madrugada bem dentro de um cemitério?

Eu ri. Mas voltei a pensar nos meus pais, e ele viu minha feição mudar.

— O que houve, meu amor? — perguntou, franzindo o cenho.

— Meus pais.

— O que têm eles?

Eu pensava em tantas coisas numa única fração de segundos que seria praticamente impossível ao menos tentar contá-lo parte do que acontecia. Eu sentia medo por estar ali. Passei a sentir tanto medo que o agarrei, o trouxe para mais perto. Eu nunca tinha pensado nisso tão repentinamente e muito menos acompanhada.

— Quando me apaixonei por você — comecei, tentando não ficar tensa —, eu disse a eles. Quer dizer, não bem na hora... sei que entendeu. Eu disse quando estava começando a aceitar.

— Sei que seus pais são muito importantes. Eu sei.

— Você por acaso ouviu alguma parte da conversa que eu tive com eles naquele dia? — Vi que ele balançou a cabeça negativamente. Senti um alívio descomunal. — Está bem. Mas, quando nos conhecemos, eu expliquei do trauma e disse que eles tinham brigado por causa da mansão, não disse?

— Sim. Foi o que você disse.

Ele nunca repetiria, porque seria doloroso. Ele nunca quis que fosse doloroso.

— Meus pais se amavam. Tenho certeza de que se amavam, mas comecei a perceber que talvez o amor deles tivesse esgotado por causa daquilo tudo da venda da casa. Estavam cegos, os dois.

— Mas por que pensa assim? O que tudo tem a ver?

— Não sei... pensei que... nós...

— Como assim nós?

— Era só uma casa, Freddie. Ela pegou fogo. Tudo pegou fogo. Eles pegaram fogo... e eu também.

— Mas você sobreviveu. E tenho certeza de que sobreviveria de novo.

Os segundos passaram através de nós, ao redor de nós. Simplesmente passaram.

— Ao menos pegaram fogo juntos, não é? — eu disse na intenção de amenizar a discussão. E tudo que me derrubava.

— Sam... isso não vai acontecer com nós dois — afirmou, como se tivesse toda a certeza do mundo.

— Promete?

— Quantas vezes você quiser.

— Prometido — finalizei.

Voltei a me aconchegar ali, sentindo o calor de volta. O calor dele.

Ele acariciou meu rosto com os dedos, olhando bem para mim. Depois, fechou os olhos. Estava cansado. Deixei que adormecesse um pouco.

E o observei durante um bom tempo.

Eu senti como se houvesse algo a ser mudado, porque, de fato, não parecia realmente acontecer. Não parecia uma realidade acontecida. Faltava muito, muito em mim. E eram tantas peças por consertar. Tantos pedaços por remendar. Tantas feridas por cicatrizar.

— Eu te amo — sussurrei.

Involuntariamente, lembrei das palavras de Carly. Tudo aquilo, todo aquele papo cansativo do amor acontecer de tal forma, de poesia... e era realmente diferente de qualquer coisa escrita em qualquer livro dela, para mim. Não era automático, não era algo que acontecia o tempo todo com qualquer pessoa. Tinha surgido, e não importa se foi rápido ou devagar demais. Não, não existe um padrão. É variável. Não é algo para ser devidamente escrito. Não é algo como, sei lá, álgebra.

Amar era bom na mesma intensidade que era mau. Ainda é.

E ele tinha ouvido. Em seguida, escutei sua voz rouca, que deixou de dizer um "boa noite" para dizer tudo que eu gostaria de ouvir:

— Você é meu Universo.

[...]

Levantei às seis da manhã, a temperatura era amena. Eu tinha deixado um bilhete ao lado do pianista — sem esquecer de dar um beijo de bom-dia — avisando que sairia.

Na verdade, nem sequer consegui dormir.

Não era por medo.

Andei e admirei a aurora, como no dia em que tinha ido visitar a mansão, e o sol já estava bastante quente lá fora. Olhei para os comércios e tudo em volta, lembrei que fazia algum tempo que não comparecia às aulas da Ridgeway. Naquela altura, estava acostumada a só assinalar as questões dos exames e ir embora.

Faltava pouco para que o ano letivo acabasse, mesmo. Desde que minhas médias compensassem, o número de faltas pouco importava.

Instantaneamente, pensei em como Carly agiria caso soubesse que eu não frequentava mais o colégio, caso sua saúde mental fosse parcialmente estável... provavelmente surtaria. Não, ela faria mais do que apenas surtar. Muito mais. E eu continuaria não frequentando, já que me permiti ignorá-la quase sempre, quer dizer, antes de me sentir tão culpada. Mas parei de pensar nela assim que toda a movimentação de Seattle pareceu mais atraente.

Não tratava-se exatamente dos arredores movimentados da cidade, pelo contrário. Nem mesmo dos novos adornos que os estabelecimentos próximos exibiam. Na realidade, tratava-se de uma pessoa só, de pé na calçada localizada bem no fim do quarteirão.

A última pessoa que gostaria de encontrar: a senhora que oferecera brownies quando minha antiga companheira de quarto estava desaparecida. E, nas mãos, ela segurava o panfleto. O panfleto que eu, por acaso, havia feito a gentileza de entregar para que me ajudasse na busca. E não ajudou.

Meu estômago, com certeza, desejava que eu fosse lá cumprimentá-la, tudo pelos brownies. São só brownies, não são? O que teria de mal ser convidada a entrar pela segunda vez e comer alguns?

— Senhora dos bolinhos! — exclamei. Nunca soube o nome dela, então que aguentasse ser chamada assim.

— Menina dos panfletos! — revidou, lançando um sorriso patético.

— Então, ainda caminha com os panfletos nas horas vagas? Não são mais necessários. Carly foi internada numa clínica, ela está bem melhor agora. — Esforçava-me para acreditar nas minhas próprias palavras.

— É que... — hesitou — estava pensando na moça hoje cedo. Soube do abuso, lamento muito, de verdade, e imagino o quão difícil deve ter sido encarar toda a situação. Sei que meu filho, em qualquer lugar que esteja, lamenta do mesmo jeito.

— O que tem o seu filho, mesmo? — perguntei, o que gerou bastante arrependimento depois.

Arrependimento por ter perguntado.

— Eu não sei o que tem o meu filho, todo o problema é esse — pegou um lenço e limpou as lágrimas nos cantos dos olhos. — Ele anda muito ausente. Não sei se está bem, se está gostando da instituição para a qual foi mandado... Ouvi dizer que muitos incidentes acontecem por lá. Seria eternamente grata se recebesse alguma notícia, por mínima que seja.

— Lamento.

— Não lamente. É a vida, concorda? — indagou, como se eu fosse realmente a mais indicada a respondê-la. Pensei que aquilo não era vida coisa nenhuma. Alguma coisa próxima de forças superiores, mas não a vida.

— Acho que sim. Não existe outra explicação.

Depois de alguns segundos em que evitei olhar na direção da mulher, estava pensando em me virar e ir embora, mas ouvi sua voz:

— O que acha de entrar, e conversamos sobre por que eu ando com isso lá dentro? — apontou para a fachada da casa e para o panfleto.

Era tudo exatamente como havia visto da primeira vez.

Pensei em recusar, mas parecia cruel ter lembrado daquilo tudo e sair sem dar explicações. Não que eu fosse gentil e escutasse os lamentos e toda a conversa sobre o filho recentemente perdido, mas pelo menos daria minha presença e comeria alguns brownies. Acabaria sendo compensada, de todo jeito.

Concordei com um gesto de cabeça, o sorriso patético ainda morava no rosto da senhora.

Me surpreendi ao ver que, no interior da casa, tudo parecia mudado. Não pela nova luminária ou pintura mais gasta, e sim pelos retratos espalhados em cada extremidade, cada centímetro daquela sala de estar humilde. Tentei chegar perto para dar uma olhada em alguns deles, que estavam posicionados sobre a cômoda, mas meu braço foi segurado quase no mesmo instante.

Tudo que podia reconhecer, ao longe, era uma mulher usando vestido de noiva. O outro da foto parecia ser o noivo.

Quando nos assentamos na cozinha, pude vê-la de pé outra vez. Fez menção de ligar o som. E ligou. Pude vê-la selecionar a rádio a ser ouvida, bem devagar.

E, depois, a música. As notas. O som.

Tudo aquilo tinha voltado. Era música clássica, na verdade, bem específica para alguém como eu. Não porque gostava muito de ouvi-las ou porque meu namorado tocava, e sim porque, anos atrás, aquela foi a primeira. A primeira de todas elas, a mais lenta, a que ninguém ouvia, a que tocava casualmente.

A que eu nunca, nem por um milagre, saberia nomear.

E isso não quer dizer que não houve um nome.

Levantei da cadeira, sendo escandalosa demais e até mesmo arrastando-a no assoalho. Mas disfarcei ao máximo o que tanto me incomodava, só precisava sair dali com urgência. Seria fácil enrolá-la, não seria? Era só uma mulher solitária, provavelmente viúva, provavelmente emotiva. Eu estava ali só por estar, não me importava em sair. E não cabia ao momento explicar por quê.

Aproveitei que não estava sendo observada, que ela estava de costas e bem distraída.

A música parou, o trauma não.

Quando dobrei para a esquerda no corredor, estive na sala de estar por uma segunda vez. Os retratos enfileirados em cima da cômoda reluziam, agora já era mais fácil reconhecer as faces do casal.

A mulher tinha o cabelo louro escuro preso num penteado festivo, em decorrência da cerimônia. Também segurava um buquê de rosas brancas, como o vestido, nas mãos. Nos lábios, um sorriso verdadeiro, um tom claro e calmo. Seus traços eram singelos e os olhos exibiam um azul escuro. Eram parecidos com os meus. Qualquer um diria que sou idêntica à mulher das fotos.

O homem ao lado demonstrava uma felicidade fora do comum, segurando a mão de sua mulher. Ele tinha um cabelo bem arrumado, também louro, e vestia um terno preto. Os olhos eram de um azul esverdeado, e quando os encontrei pude entender.

Parecia o momento mais inesquecível da vida de ambos. E era.

Meus pais estavam emoldurados por todas as partes da modesta sala. Eu também, quando criança.

Poderia ter pensado no porquê de estarem ali, de todas as nossas fotos, ao invés de guardadas, encontrarem-se na casa de uma desconhecida. E haveria uma explicação, soube que haveria. Ignorando qualquer possibilidade, apenas desmaiei. Caí. Foi mais que qualquer queda, foi o nada me encarando, e outros sentimentos colidindo de uma forma que dominou cada célula minha. E estava tudo, tudo mesmo, caminhando em direção às chamas. Chamas intermináveis demais para que fossem brevemente esquecidas.


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Notas finais do capítulo

Desculpem os erros e a demora, terminei de escrevê-lo hoje mesmo (na verdade, ainda agora).



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