Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 39
De Considerações Finais


Notas iniciais do capítulo

Tá, sei que esse parece mais um título de uma dissertação do que o nome de um capítulo, mas é disso que trata essa parte do texto. São as considerações dos personagens sobre o acontecido. Quando reli a história inteira, fiquei com receio de que os leitores só acompanhassem a história até a conclusão das cenas de ação, mas estes capítulos finais são tão preciosos para mim que eu faço questão de que todos leiam, porque é o fim da história, né... e eu não escrevi pensando em postar; tinha pensado que isto seria um livro, e a gente sempre lê aquelas páginas depois do clímax. Não dá pra simplesmente abandonar... então espero que acompanhem até o epílogo, que será postado amanhã. Garanto que vocês vão gostar de rever o rei por aqui. Boa leitura!



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Nigel sentia mais de uma centena de pares de olhos sobre si, enquanto lutava para se manter em pé. Alonzo estava curvado sobre seu peso; era mais alto e mais forte que o amigo, tendo que flexionar levemente os joelhos para que o rapaz não precisasse ficar nas pontas dos pés.

— Acho que não tem condições de permanecer aqui — Hermes tocou-lhe o ombro levemente — Posso representa-lo, se não se incomodar.

— Eu quero ficar — ele afirmou, mas a careta de dor em seu rosto dizia o contrário. A perna latejava, os curativos estavam manchados de sangue, e sentia dolorosamente a presença de sua orelha inchada ou, pelo menos, da parte que sobrara dela. — Posso arranjar uma cadeira e me sentar.

Nina havia encostado a harpa a um canto, e se levantara, encarando-o com ar desafiador. Nigel baixou o olhar, como se estivesse realmente se sentindo culpado. Tampouco tinha coragem de encarar os pais da esposa falecida. Miguel torceu a boca, com desprezo.

— Não acredito que vai ficar deprimido por causa das palavras dela ­— sempre se referia a Nina daquela forma, depois de um desentendimento ocorrido quando a condessa ainda morava no castelo com Alonzo — Você não teve culpa. Ela foi assassinada. Que vá para o inferno quem disser que as coisas não aconteceram desta forma. Não fique de cabeça baixa. Não fique de cabeça baixa!

— Majestade — ele assentiu, forçando-se a erguer o olhar, mas fitava apenas o pedestal onde o caixão jazia.

Fazia aquilo somente por que havia sido ordenado a fazê-lo, mas não se sentia à vontade. Acabou suplicando a Alonzo que o levasse para algum lugar em que pudesse descansar de todos aqueles rostos que pareciam repreendê-lo.

— Não se preocupe — o conde lhe disse, enquanto caminhava devagar. Vicente apoiava Nigel do outro lado, deixando-o ligeiramente torto, visto que o escudeiro não era muito alto — Hermes vai remediar o que a condessa disse. Não pense que todos sairão de lá pensando que você é um assassino.

Ele nem mesmo se importava com aquilo. Mais cedo, achara que tinha obrigação de estar presente ao enterro, por ser o viúvo, mas naquele instante sentiu-se quase aliviado por ter uma desculpa perfeita para se ausentar do sepultamento. Flagrou-se pensando no que seria feito com os corpos de Wilhem e Claire, se alguém os prantearia, se haveria mais alguém que o perseguiria, para vingar suas mortes. Uma pena... em outra vida, poderíamos ter sido amigos. Sentiu um arrepio quando imaginou seus corpos balançando levemente ao vento, pendurados em cordas pelo pescoço.

A carruagem que o levou para o castelo avançava com lentidão pela estrada. O rei assim o ordenara, para que os solavancos do veículo não prejudicassem o rapaz ferido. Nigel jamais percorria qualquer trecho de estrada em uma carruagem. Simplesmente odiava aquelas janelas cobertas com cortinas, as almofadas aveludadas e toda aquela frescura. Preferia cavalgar, ou até mesmo caminhar, se a distância não fosse muito longa. Sentiu-se ainda mais doente quando percebeu que aquele seria o único jeito de conseguir ser transportado.

— Pode chorar agora — disse-lhe Miguel — Não tem ninguém olhando.

Você está olhando — ele observou.

— Então acha que o rei é “ninguém”?

Mas Nigel não queria chorar. Tudo o que queria era ficar sozinho, mas não podia simplesmente colocar o rei para fora da carruagem. Não que não apreciasse sua companhia, mas não queria ser consolado, nem ouvir palavras de conforto, tampouco ser incentivado a desabafar.

— Vou voltar para Frills — decidiu tão subitamente que as palavras jorraram de sua boca antes que tivesse tempo de pensar sobre o assunto.

— Não vai — disse-lhe Miguel, calmamente — É membro da guarda. Não tem a minha autorização para ir embora.

— Pedirei dispensa — um membro da guarda de nada servia, se não conseguisse manter os seus próprios familiares a salvo.

O jovem rei foi inflexível.

— Tampouco tem minha autorização para ser dispensado. Não permitirei que tome decisões impensadas. Pode descansar, se recuperar dos ferimentos, até estar pronto para voltar a servir à Coroa e ao seu rei.

Não era o que queria. Desejava afastar-se de tudo que lhe lembrasse Lionor, para que tivesse tempo de se acostumar à ideia de não tê-la. Quando chegara na corte, nem mesmo a conhecia, mas agora era impossível que as coisas voltassem a ser como eram antes dela. Se pudesse arrancar a memória dela à força com as mãos nuas, o teria feito de bom grado. Já não tinha certeza de que os momentos bons que haviam passado juntos compensavam a dor que ele sentia naquele instante.

— Como quiser, Majestade. — era sempre como ele queria, de qualquer forma. Súbito, lembrou-se de uma dúvida — Por que os enforcou? Pensei que mereciam mais que isso.

Em qualquer outra ocasião, Miguel teria respondido algo como “se pensa qual é o melhor castigo para eles, talvez pudesse também governar em meu lugar”, mas seria inapropriado repreendê-lo. E quanto a Nigel, compreendia que Lionor era importante somente para ele, e que o rei não se importaria se ela morresse ou vivesse, mas considerou fraqueza ver Sua Majestade mudar de ideia mais de uma vez.

— Quando Hermes os enviou ao castelo, vi que eram apenas crianças.

— Apenas crianças! — Nigel não acreditou — e fizeram isso comigo. Faz com que eu pareça ainda mais fraco. Se tivesse me dado autorização para cortar-lhes as cabeças...

— ... você teria hesitado. Hermes falou que tinha um fraco pela garota. Claire.

— Como pode saber? — o rapaz retrucou, irritado — eu tentei matar Wilhem quando ele estava na enfermaria, e Hermes me repreendeu, começando a me vigiar para que me mantivesse afastado dos prisioneiros, como se os quisesse protege-lo.

O rei não se abalou com a irritação de Nigel. Apenas pôs no rosto uma expressão de surpresa, como se desejasse descobrir por que motivo o rapaz simplesmente pensava que podia gritar com Sua Majestade.

— Acha que matar um garoto de quinze anos ferido e desacordado em uma enfermaria — Hermes lhe havia dado detalhes do acontecimento — não seria covardia?

— Eu não me importo em ser chamado de covarde, ou do que quer que seja. Já fui chamado de coisas muito piores desde que cheguei à corte e estive em sua companhia. Se eu o houvesse matado, a minha mulher estaria viva. Não foi uma troca justa, já que ambos estão mortos.

Passavam em frente á praça das execuções, e Nigel ergueu uma das mãos com dificuldade para afastar as cortinas da janela da carruagem. Por um momento, pensou que veria os corpos de Wilhem e Claire pendendo do cadafalso, com aves negras beliscando suas carnes putrefatas, balançando levemente de um lado para o outro. Mas viu apenas as cordas, duas delas, mal cortadas e encardidas. Uma para cada um dos irmãos de Curvavento. Duas crianças: um assassino e sua cúmplice. Nigel não se considerava mais inocente que nenhum dos dois. Quando tinha a idade deles, já havia matado alguém em um torneio, e o fato havia sido considerado como um acidente corriqueiro, próprio do esporte. Lutou bravamente, como um homem adulto o faria, diziam, foi uma fatalidade. Seus treinadores até o consolaram quando ele se sentiu culpado, convencendo-o de que ele não fizera nada de mal. Também arrancara a cabeça da feiticeira que Hermes procurara, e não recebera nenhum castigo por isso. Na realidade, depois disso ganhara o título de Condestável. Sendo um garoto estrangeiro de baixo nascimento, poderia ter pagado por suas mortes naquela mesma forca, caso não fosse próximo do próprio rei. Tinha sorte de estar do lado certo da balança da justiça.

— Uma pena — a voz do rei interrompeu seus pensamentos — Queria ter escutado A Balada para Lionor inteira. Pareceu-me uma música bastante interessante. Vou mandar que alguém copie a partitura para tocá-la para nós algum dia.

Não podia convidar a própria Nina para tocar para ele, já que a condessa estava banida da corte até o fim da vida. É uma sorte que não tenha letra, pensou Nigel, ou então iriam saber que Lionor não tem nenhum feito heroico, que não era uma heroína, mas apenas uma garotinha teimosa que pensou que não podia morrer.

— Daqui a alguns anos pensarão que Lionor Klein foi alguma heroína da nossa época — comentou, com a voz vazia de emoção — Quem irá desmentir, se a música é instrumental?

— Posso contar a minha versão da história ao meu filho, na hora de dormir — Miguel sorriu levemente — E minha versão da história será como eu quero que ela seja. Lionor pode ser uma heroína, se me permitir que o faça.

Pela primeira vez desde o ocorrido na estrada, Nigel conseguiu esboçar algo que lembrava, de longe, um sorriso.

— Eu pensei ter ouvido o rei pedindo permissão! — teria até deixado escapar uma risada, se estivesse em um de seus melhores dias — Foi a coisa mais hilária que escutei desde que te conheci.

A carruagem passou pelos portões do castelo. Miguel cruzou os braços.

— Escutou errado. Eu quis dizer que ela pode ser uma heroína, se te agradar — parecia aborrecido em ter deixado escapar aquele “se me permitir”. Mas, afinal de contas, a história pertencia a Nigel — Acha que em Curvavento podem escrever uma canção sobre Wilhem e Claire?

— Só se o vento o fizer — respondeu Nigel, reclinando-se sobre as almofadas enquanto atravessavam o jardim — Quando Hermes reconstruir o local, não vai haver ninguém morando lá. Apenas casas vazias. Todo mundo que não morreu foi embora.

— E se o fizerem — prosseguiu Miguel, quando a carruagem finalmente parou — Serão eles os heróis, defendendo sua família e seu povo, e você, Hermes e Lionor, os vilões. E eu, o rei injusto e impiedoso que os mandou assassinar. Quer saber? Estou satisfeito por não haver ninguém para cantar esta canção. Estou farto de historias que começam com vou-me-vingar-por-que-você-ateou-fogo-à-merda-do-meu-vilarejo. Quando pegar o próximo livro que começa assim, vou jogá-lo na lareira com gosto.


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Notas finais do capítulo

Muito fofo esse Miguel, só ele mesmo para conseguir fazer Nigel ficar descontraído, nem que seja por um segundinho.
Se eu fosse realmente musicista, eu escreveria mesmo essa Balada para Lionor! Sou capaz até de cantarolá-la. Imagino-a como uma música bastante triste, e penso que a tocaria num violoncelo ou contrabaixo...
Nos vemos no epílogo, obrigada por continuar acompanhando!