ANTES

                Olhando aqueles olhos vi toda a inocência, que à tanto tempo perdi, se é que algum dia tive. Pequena, com toda uma vida pela frente, escolhas e erros, suas bochechas rosadas e suas mãozinhas pequenas tentando segurar meu dedo tornavam o trabalho que eu iria fazer cada vez mais difícil. A lamina fria que ficava mais pesada a cada segundo em minha mão mirava seu delicado pescoço.

                - Cada dia mais parecido com ele. – Dando-me um susto Hades apareceu no pequeno quarto de criança sentando em uma poltrona rosa aveludada – Deixe-me olhar bem para os seus olhos querido irmão, para me lembrar do papai.

                Sua voz carregada de desgosto e um toque de ironia enfureceram-me quase imediatamente.

                - O que está falando?

                - Uma criança não desejada nasce. O pai para não se encrencar a mata com as próprias mãos, parece uma história familiar Zeus?

                - Não me compare a nosso pai! – apontei a lamina para Hades – Ele era perverso, ambicioso e mereceu a morte que teve, foi um rei horrível e cruel, não sou como ele.

                Com a calma e lerdeza proposital que tanto me irrita Hades caminha para o outro lado do berço.

                - Para não se encrencar, para continuar no poder nosso pai tentou nos matar, porque está matando essa pequena? Alguma profecia, medo de Hera, manter a aparência do senhor certinho?

Encarávamos agora aqueles olhos do qual já comentei.

- É preciso fazer isso. Não devo explicações, você nem deveria estar aqui.

- Não deveria, mas estou então ficarei para aproveitar o show e ver o filho se transformar no pai.

Desci a lamina para perto de seu pescoço novamente, juntei forçar, isso não deveria ser tão difícil, apenas faça o que tem que ser feito, mate-a e volte para o olimpo, faça, faça, agora.

Não pude continuar.

- Não é bom com plateia, precisa que eu me vire?

- Sua voz está me deixando enojado, retire-se junto com esse odor de morte. – Afastei-me do berço, não poderia fazer isso. – Ela morrerá de qualquer forma sem minha proteção, não precisa ser pelas minhas mãos, acabou o ‘show’, vai se danar Hades.

- Interessante, prefere que um monstro qualquer venha e a mate de forma devagar e dolorosa. – Sua cara de nojo se misturou com irritação e voltou para o olimpo.

Não sei por que Zeus quer tanto você morta logo, isso é no mínimo interessante minha pequena. Hades limpou da menina um pouco de baba escorrida pela boquinha que brincava de mordiscar a língua.

- Tem minha proteção até poder cuidar de si mesma. – e o quarto voltou a ficar quieto após Hades sumir também, deixando apenas um bebe de colo deitado no berço brincando de mastigar os dedinhos.