People With Problems escrita por MrsHepburn, loliveira


Capítulo 20
Noite




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Então... É. Me ferrei. De. Verdade.

Quase comecei a chorar quando percebi a besteira que tinha feito, mas não me ajudava em nada. Principalmente quando eu voltei para casa, desviando da vaca morta da estrada e cheguei na residência da senhora Kowki. As luzes estavam acessas, e Chris e a senhora Kowki estavam me esperando sentados no sofá, o que me lembrou pais esperando a filha voltar da festa. 

Acontece que eu não tenho medo de fazer muitas coisas. Não sinto remorso de nada ou algo assim. Eu sou corajosa o suficiente e faço o que for preciso, sem pensar muito nas consequências. Fiz isso com meu pai. Certamente fiz isso com alguns dos meus ex-namorados quando terminei com eles quando percebi que eram babacas. Mas nada me preparou pro medo que eu senti quando cheguei em casa e vi eles acordados. Eu nem sabia se eles estavam bravos ou algo assim (porque obviamente eles estavam), mas eu fiquei com medo. Aquele tipo de medo que te deixa entorpecida demais e te congela no lugar. De desespero. Uma coisa passou rapidamente pela minha cabeça: Eu não quero ir embora.

E aquilo me assustou mais do que tudo. Engolindo meu medo, eu entrei em casa. E o olhar deles quase me queimou.

-Onde você estava? -Contei sobre Liana. Tirei de fora a parte da vaca, mas não durou muito. Quando eles começaram a se acalmar e disseram:

-Tudo bem. Você ajudou uma residente. Não acho que isso seja uma grande infração. Você voltou. E até onde posso ver meu carro está intacto. -Chris não sabia. Eles não sabiam. Então eu tive que contar. Pelo bem da minha consciência. 

Eu sei. 

Eu nem me reconhecia. 

-Tem um problema. -Eles estreitaram os olhos. Me senti ainda mais culpada vendo o olhar cansado da senhora Kowki. Com certeza daria um tapa em Liana mais tarde. 

-O quê, exatamente? 

-Atropelei uma vaca. 

Então AÍ eu percebi que me ferrei. Não me arrependi de ter contado. Por mais que eu não entendesse POR QUE DIABOS uma vaca era tão importante, eu me senti melhor contando e sabia que merecia o castigo que me dessem. Provavelmente me obrigariam a tirar arroz da plantação ou algo assim. Eles ficaram furiosos, e Chris se limitou e dizer:

-Vai pro seu quarto. Amanhã a gente conversa. -Abaixei os olhos, decepcionada comigo mesma. Eles estavam decepcionados também. Fui pro meu quarto e ouvi eles conversando por mais um quinze minutos antes de dormir. Não entendi exatamente o que eles estavam falando. 

Quando eu acordei, me sentia péssima. Mas eles foram bem calmos comigo. Meus amigos não desconfiavam de nada, mas eu duvido que eles ficariam muitos bravos comigo se soubessem. Eu estava certa. Eles não demonstraram reação quando me contaram meu castigo, mas eu sim.

ERA PIOR QUE COLHER ARROZ NO MEIO DO LODO. 

PIOR DO QUE COMER ARANHAS.

EU TINHA QUE ACAMPAR. NA MATA.

Com uma lanterna e barraca. 

Isso era pior. 

Muito pior. 

Meus medos de criança voltaram. 

E se tivesse alguma criatura sobrenatural na floresta esperando pra me comer? Ou sei lá, um sequestrador? Assassino, psicótico, maluco? 

Liana voltou, e não olhei para ela de raiva por causa disso. Culpei ela, mesmo sabendo que a culpa era minha. Se ela não tivesse me chamado nada disso teria acontecido. Era parcialmente a culpa dela. Ela não olhou pra mim também, estava estranha, mas não quis pensar nela. 

Tinha que me concentrar em sobreviver. 

E dezessete anos vivendo na cidade não me prepararam pra isso. 

Estou sozinha, sentada ouvindo as folhas das árvores baterem uma nas outras e mordendo minha boca tão forte que posso sentir o gosto de sangue. Pelo amor de Deus, penso, alguém venha me matar de uma vez. Seria mais fácil se o causador de todo esse barulho pare e venha me matar. Mesmo que eu saiba que é simplesmente a natureza fazendo isso. Tem coisas piores, é verdade. Os mosquitos estão me rodeando. Pequenos sugadores de sangue ou que seja. E eu estou sozinha. Isso é o mais assustador. Estou sozinha com meus pensamentos. As coisas que mais aparecem na minha cabeça são meus pais, Mack, e as coisas que eles já disseram para mim. Principalmente durante o processo da separação. 

O que me leva a pensar no encontro da semana que vem. O que vou fazer quando encontrar meu pai. Pedir desculpas? Não estou arrependida. Esquecer? Eu não quero. Não sei qual a atitude certa a tomar muito menos o que fazer. Mas uma pessoa me dá mais força. Mack. Eu simplesmente SEI que ela vai desabar na frente do juiz. Sei que ela vai escolher ficar com a minha mãe, embora nosso pai tenha direito de ficar com a gente por algum tempo, mas minha irmã odeia tomar partidos. Vai começar a chorar e se sentir culpada, e eu tenho que estar lá pra confortá-la, ou pra confortar minha mãe, porque o emocional das duas não vai estar o melhor. Vou agir civilizadamente perto de Mack, e evitar olhar para o meu pai sem ela. Sinto raiva ainda só de pensar nele. Sinto mais raiva quando penso que todos estamos nessa situação por causa dele. Babaca. 

Mas eu pauso quando penso em minha mãe. As ligações dela são neutras e a gente não fala dele ou de nada do que está acontecendo. Geralmente ela me enche de fofocas de celebridades ou livros do Shopenhauer que comprou pra mim. Não faço a menor ideia de como ela está no meio de tudo isso. Sei que parecer é diferente de estar, e por mais que ela pareça bem não dá pra ter certeza. 

Meus pensamentos mudam de novo quando ouço um barulho. 

-Pelo amor de Deus... -Ligo minha lanterna, mas não saio da barraca. São passos. 

Deus veio me buscar. Vou morrer. 

Ai, meu Deus. Meu coração acelera. Depois desacelera novamente. 

-Emerson? É bom você estar viva ainda. -Ouço a voz de Kristin. 

-Ali, a lanterna dela. -A voz de Rose ecoa e eu abro a barraca, apontando a lanterna para eles.

-QUAL É A PORCARIA DO PROBLEMA DE VOCÊS? -Tenho absoluta certeza de que estou vermelha. De medo. De raiva. De vergonha por eles estarem aqui no meio do meu castigo. 

-Não venha reclamar. A gente está aqui por você. 

-Atropelaram uma vaca em minha homenagem? 

-O nome da minha vítima era Bolinha. -Danny diz, entrando na barraca e eu tenho que conter uma risadinha. Depois, entram Rose, Kristin e Perry. ...Perry?

Ele me olha, acena com a cabeça depois desvia o olhar. Esquisito. Ele é esquisito. 

-A minha era cor de rosa. -Kristin diz. 

-Fofinha era tão boazinha. -Rose entra na brincadeira, e nós rimos. 

-Como você conseguiu atropelar uma vaca Rose? Com a sua carteira de motorista invisível? 

-Com a minha motoca. -Ela retruca, ácida e não conseguimos segurar a risada. Perry senta do meu lado e eu vou instintivamente para o lado oposto, apenas alguns centímetros e não tenho certeza se ele nota. 

Kristin e Danny estão na nossa frente e Rose no fundo da barraca. 

-Um lugar grande que você tem aqui, Emerson. 

-Cala boca. -Aponto a lanterna para Kristin e ela cobre os olhos. Ao que parece, todos estão de bom humor. Ficamos em silêncio por um tempinho. 

-O que você estava fazendo antes da gente chegar? 

-Pensando. A propósito, vocês podem ter problemas por estarem aqui. 

-Até parece que não é permitido. Pensando sobre o quê? 

-Sei lá. No encontro de Nova York semana que vem, Christian dois ponto zero. -Digo, provocando. Quero mudar de assunto, mas Danny insiste. 

-O que é exatamente o encontro em Nova York?

-Tenho que ir pro tribunal atestar que quero ficar com a minha mãe. 

-Mas você vai poder ver o seu pai?

-Infelizmente. 

-Essas coisas não são pra sempre, sabe. Uma hora você pode mudar de ideia. 

-Não quero ver o meu pai. -O vento lá fora e o barulho das árvores que começo a escutar não me assusta mais. 

-Vai se arrepender. -Perry diz e eu o encaro. Ele consegue ver a pena nos meus olhos porque os desvia de novo. Meu coração afunda. Droga. Aqui estou eu falando que não quero mais ver um dos meus parentes por escolha própria enquanto o garoto ao meu lado não teve escolha senão ver sua mãe ir embora. Eu nem sei do que ela morreu. 

-Talvez. -Cedo. Aproveito que Danny, Rose e Kristin entraram em uma conversa e me aproximo de Perry outra vez. -Posso falar com você?

-Não fale dela. 

-Como você...?

-Está escrito na sua cara, Emerson. -Ele diz, gélido. Raiva passa por mim. 

-Quer saber, vai catar coquinho. Não tenho que aguentar seu humor de gente velha. Eu só queria ajudar. -Mas no fundo, não estou com raiva. Estou... magoada. Ficamos escutando a conversa dos três a nossa frente, mas sem prestar atenção. 

-O que você quer saber? -Perry diz, depois de um momento. Me surpreendo, mas logo me recomponho. 

-Quando ela morreu?

-Oito meses atrás. 

-Sinto...

-Não. Termine. Essa. Frase. -Olho brava para ele.

-Eu ia dizer "sinto que você ainda não superou" mas vou falar o que você acha que eu vou falar: sinto muito. Agora me mate, Perry. -Digo, cansada de brigar e olhando para frente. Meus amigos ainda estão absortos a conversa, ou nos ignorando. 

-Ainda não superei. 

-Imaginei. 

-Faz apenas três meses desde que eu vim pra cá. É muito cedo. -Fico realmente surpresa pelo excesso de informação que ele me dá. Vindo dele, algumas palavras já são demais. 

-Como está... hm... sua recuperação?

-Não durmo com ninguém há três meses. Interprete da forma que quiser. 

-Quis dizer sobre a sua mãe. -Ele olha pra mim e por um segundo, penso que vi timidez. Depois, o olhar desapareceu. Só sobra tristeza. 

-Com o tempo melhora. Está melhorando. 

-Você acha que se voltasse pra casa, voltaria aquelas coisas que você fazia antes? 

-Acho. Não. Não sei.  -A resposta é sincera. 

-Ah. 

-E você? -Somos interrompidos por uma risada dos três, mas eles não se viram para nós. Então continuo a falar. 

-Ainda odeio meu pai. -Perry dá um sorrisinho babaca. 

-Então parou de odiar todos os homens da terra?

-Estou tentando não odiar. Mas eu estou melhor agora. A raiva... eu não sei. Não sei mesmo. Mas a tristeza passou eu acho. 

-Então você aceitou que ele traiu sua mãe? -Não respondo. Não sei o que responder. 

-Você devia aceitar. Manter distância piora. Você vai perdê-lo. No fundo, não quer perdê-lo. A morte é uma vadia super acostumada a dar um tapa na sua cara quando ela aparece. Muda tudo. Não espere até ela vir para você se arrepender de não ter falado com ele. 

-Eu... vou tentar. Tudo bem? -Ele não responde. -Você já pensou em se matar depois que ela morreu? Pra... encontrar com ela ou algo assim? 

-...Já. -Ele fiz, tenso. -Mas ela costumava falar uma coisa para mim. E.E. Cummings. "A vida não é um paragrafo e a morte, eu acho, não é um parênteses". 

-O que quer dizer? 

-Não faço a menor ideia. Mas eu penso nisso quando penso em morrer. Talvez isso queira dizer que a vida não é apenas uma fase ou a morte uma exceção. Talvez... eu não sei. -Ele fecha os olhos e balança a cabeça, como se fosse doloroso para ele falar. Talvez seja. Não sei se fico perplexa por ele parafrasear E. E. Cummings ou por estar falando comigo sem agir como um cretino. 

-Você... ficaria triste se morresse? -Não sei porque perguntei. -Sabe, pra aliviar a dor. Mesmo se não se matasse... tipo, alguém matasse você. Ficaria aliviado?

-Quer ouvir um poema? "Drogas viciam, sexo também. Seu pai pode trair, sua mãe com alguém..."

-Isso é horrível. 

-..."Sua vida pode ser uma droga, e você nunca vai saber, mas que belo motivo, para não parar de viver". Fim do poema. Pode aplaudir agora. -Ele diz, mas não está brincando. Nem espera as palmas. Ele está... profundo. Como se estivesse chapado e tendo uma epifania do além... só que tirando a parte das drogas. 

-Retiro o que eu disse. Isso foi bonito.

-Você é bonita. 

-O quê? 

-Que se foda. Estou triste. Eu não penso antes de falar quando estou triste. 

-Claramente. 

-Não torna menos verdade. 

-Pare de falar. 

-Boa ideia. 

-Não vou dormir com você. 

-Sentimento mútuo.

-O.K. Traga o Perry legal de volta. -Ele olha pra mim e eu vejo tristeza. Muita tristeza. Mais do que eu posso aguentar. Aquele tipo que me afunda no mar da tristeza outra vez, onde só há escuridão. 

E a única luz é o ponto de tristeza chamado Perry. Boto minha cabeça em seu ombro, e ele fica tenso, mas não faz nenhum movimento. 

-Você é bonito também. 

-Não vou dormir com você.

-Jesus cristo, para de ser babaca. -Eu digo, mas estou feliz por ele estar brincando. E por eu não estar encarando seus olhos. Kristin olha pra mim surpresa, mas volta a falar com Danny. 

Perry pega na minha mão. Não ajuda elas estarem tão perto uma da outra, elas estavam encostadas, mas ele pega nela mesmo assim. 

Meu corpo tem reações estranhas. Estranhas demais pra eu processar. Danny olha para nossas mãos juntas, surpreso e então Perry separa sua mão da minha. Não olho para cima, continuo com a cabeça em seu ombro, e ele suspira. 

-Você merece ser feliz, Perry. -Eu sussurro, e sei que deixei ele em estado de choque. Mas não tem tempo de reagir, porque eu tiro a cabeça do seu ombro e digo para o grande grupo: -Alguém quer chocolate? 

E a animação é o suficiente para me distrair do que acabou de acontecer. 


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Notas finais do capítulo

o que acharam?