Not Today escrita por Ikarus


Capítulo 3
Capítulo 2 — O Crepúsculo de Uma Velha Ordem




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Limpou o suor da testa após jogar os corpos ao fogo, no quintal da casa. A fumaça e o brilho poderiam atrair visitantes indesejados, seja mais zumbis ou outros sobreviventes “oportunistas”, hipocritamente dizendo. Por sorte, as janelas já haviam sido fechadas com tábuas de madeira, e apenas as escadas e, ironicamente, a porta precisavam ser modificadas a fim de tornar a casa uma verdadeira fortaleza à prova de invasões pouco inteligentes. Checou o banheiro e encontrou a banheira e a pia cheios d’água. Quem quer que tivesse acabado de matar realmente sabia o que estava fazendo, estocando água limpa para os próximos dias.

Começou a revirar a casa inteira. Nada de armas, apenas mais pedaços de madeira e um taco de beisebol, que estava em melhores condições do que seu disforme e desgastado pedaço de madeira. Pegou o taco e jogou seu antigo companheiro de porrada ao lado. Já começara a criar afeição pelo taco de metal.

Se optasse por ficar na casa, duraria muito bem uma semana, ou até uma semana e meia se poupasse seus recursos. Entretanto, esconder-se em tocas de madeira diferenciava o homem encapuzado do resto das pessoas que encontrara até então. Onde muitos viam destruição, Gilbert via a edificação de uma Utopia, uma aventura num mundo sem regras e livre de qualquer lei ou restrição medíocre.

Enquanto revirava algumas mochilas em um canto do quarto no qual se instalara, acabou por encontrar um mapa da cidade amassado, com até algumas anotações perdidas num caderno. Setas grossas feitas por canetas hidrocor já quase sem tinta indicavam diversas locações na cidade. Algumas páginas do caderno foram arrancadas, e a letra cursiva e cheia de voltas desnecessárias tornava a leitura impossível em alguns trechos.

Dobrou o mapa e colocou-o no bolso da calça. Encheu algumas garrafas e cantis de água da pia e da banheira, guardando-as na maior mochila. Não sabia se encontraria fontes de água potável. Na banheira, molhou o ferimento no pulso e alguns cortes e arranhões que sofrera no que acabou por ser um pequeno “acidente” minutos atrás. Lavou o cabelo grisalho e o rosto, manchados de sangue. O ferimento no pulso ainda ardia apesar de ter sido desinfetado no Hospital. Resmungou e enfaixou–o novamente.

Das mochilas, tirou mais latas de comida, sopa e refrigerante e transferiu-as para a que escolhera para levar consigo. Tirou os sapatos e meias encardidas e adormeceu sobre seu casaco. A chuva o embalava num sono tranquilo.

Na manhã seguinte, o vento gelado batia contra o desordeiro peito nu. O sol raiava pela primeira vez em doze horas novamente, mas seus raios ainda não eram de todo agressivos à pele clara do albino. Nos subúrbios, onde não havia prédios, o céu podia ser visto com uma mimosa coloração rosa.

A manhã era relativamente mais tranquila que a noite ou o dia, talvez até mais segura. Em seus fones de ouvido, uma voz poderosa cantava o hino de sua liberdade, “Highway To Hell”. Andava confiante; peito estufado, taco à mão, adrenalina no sangue, e o ar fresco da manhã entrando em seus pulmões; enquanto andava pela avenida principal do bairro, em direção ao centro da cidade (onde localizavam-se as marcações no mapa).

Alguns zumbis se arrastavam pelas calçadas e ruas, outros até tentavam alcançá-lo com seus braços e membros já meio decompostos e dependurados, mas nada que um “singelo” chute não resolvesse. Não se incomodava em fazer barulho à toa, ou até provocá-los até que um verdadeiro pelotão se formasse.

§

O albino seguiria a caminho da base militar indicada no mapa em um dia.

— Eu disse que ficar nessa cidade não era uma boa ideia, Emma.

— Fugir e deixar de registrar essa loucura pro jornal? Nem! E, ainda, o Toni tá aqui na cidade. Tenho que achar ele.

Duas mulheres andavam devagar pelas ruas desertas dos subúrbios da cidade. A manhã estava calma e nenhum zumbi à vista. Emma e Erzsébet eram amigas há anos, desde o colegial, pelo menos. Emma Willem, belga, loira, era jornalista. Assim que ouvira que um possível apocalipse zumbi ocorreria na cidade onde passara grande parte de sua infância e adolescência, pegou seu carro e ligou para Erzsébet, que já não se sentia tão eufórica quanto sua amiga.

Ouvira rumores sobre sua cidade, sim. Mas sabia também sobre rumores sobre um vírus ter fugido de controle e ter contaminado o ar no local. Ex-policial, morena, húngara, Erzsébet Héderváry tinha muitas lembranças da velha cidade. Lembranças boas, de começos de amizades, de aniversários, natais e namoros; como também, lembranças ruins, de brigas e rivalidades. Com vinte e cinco anos, já fora casada e divorciada. Morava com Emma havia um ano, na cidade vizinha. Decidira acompanhá-la para ao menos protegê-la, caso algo acontecesse.

Era o segundo dia das mulheres na cidade, e nenhum sinal de sobreviventes, mas também, nenhum sinal de contaminação viral do possível vírus zumbi. Sabiam, entretanto, que era certeza que a contaminação se dava por contato direto. O vírus teria de entrar no corpo por meio da corrente sanguínea, até alcançar o cérebro e “matar” sua vítima, que ressuscitava tempos depois. Mas para tal problema, a húngara já se garantira. Em sua perna esquerda, agarrava-se a ela o coldre de sua pistola.

Até andavam descontraidamente pela calçada de uma das ruas, até que Emma parou.

— O… que é aquilo…? – A belga perguntou, apontando na direção do que parecia uma multidão caminhando ao nascer do Sol.

— Não sou cega, mas que porra é essa…

— Não sei… – murmurou a loira – … Só sei que eu vou lá dar uma olhada e tirar umas fotos! Porque, imagina só, – fez alguns movimentos com a mão – “A Marcha dos Mortos-Vivos”: a manchete do jornal! Ou, quem sabe, já pensou se mandássemos a matéria pra BBC?

— Aterrissa; aterrissa, porque a tua mente decolou legal pra tua Utopia jornalística de novo. – A húngara retrucou, dando leves tapas na cabeça de sua amiga.

Ambas já pensavam em atravessar a rua oposta, a fim de percorrerem uma rota mais segura para vigiarem a horda; até que Emma avista algo.

— Erzsi… Dá uma olhada naquela casa ali. É uma pessoa entrando?

— Sem dúvida. Vamos dar uma olhada.

— Não, pera…! – Apontou para uma outra casa, pichada em preto. – “A horda segue a Morte”… “O fantasma vigia”… São avisos.

— Avisos? Hah, tá vendo alguém por aqui? Quem poderia ter escrito essas coisas? E outra, – aponta para o coldre em sua perna – eu estou armada. Vamo, eu vou te proteger. Aí a gente investiga, tira as fotos, acha o teu namorado e vamos embora.

— Certo!

A porta da casa estava entreaberta. Com cuidado, empurram-na, produzindo um ranger digno de sonoplastia de filmes “thrash” de suspense. Os cômodos estavam escuros, as cortinas estavam fechadas e a casa fedia a algo que não conseguiam deduzir. Ambas cobriram seus narizes.

— Que ideia a sua, entrar nesse chiqueiro…!

— Ssshhh… Quem quer que esteja aqui pode não gostar da nossa presença. A húngara cochichou à belga. – Vamos lá.

Ouviram passos firmes no assoalho do piso superior. Um sobrevivente? Com calma, as duas jovens mulheres andavam na ponta de seus pés. Subiram pelas escadas, não se segurando aos corrimãos já degradados por algum tipo de violência. Estavam agora num corredor, tão escuro quanto o resto da casa. Ao final deste, havia uma única fonte de luz, a janela. De repente, uma silhueta humana para em frente a ela.

A belga estremece e dá um passo atrás, acabando por tropeçar em algo jogado no chão.

— Emma, tudo bem? – A morena pergunta num cochicho.

— … Tem alguma coisa embaixo de mim.

Um gemido ecoa sob a jornalista, que grita. Passos apressados podiam ser ouvidos de fora da casa. Mais gritos e um estrondo, seguidos de um silêncio final.


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Notas finais do capítulo

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