Meu Vampiro De Estimação escrita por Eica


Capítulo 1
Banquete macabro




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Eric recebeu um telefonema na manhã de segunda-feira, informando que um tio distante havia falecido recentemente e, como era seu parente mais próximo, seus pertences foram deixados para ele e para seu irmão mais novo. Como trabalhava a semana toda, só pôde “conhecer” o que herdara no sábado. Dirigiu seu Corsa até a zona norte da cidade, junto com seu irmão, de manhãzinha. Ligaram o rádio e ouviram muitas músicas pelo caminho.

– Essa é a planta da casa? - indagou Caio, ao desligar a música e xeretar na pasta que continha os documentos do falecido tio.

– É.

Desdobrou o enorme papel já bastante amarelado.

– Era uma chácara. - disse Eric. - Ao menos foi o que me contaram lá no tempo de vá lá se saber.

Caio dobrou o papel e o guardou.

– O que vamos fazer com a casa?

– Não sei. Vamos ver como ela é, se está muito velha. De qualquer modo, não teremos dinheiro para fazer nenhuma reforma. Acho que o mais certo é vender.

Andaram muito. A Avenida Itavuvu parecia não ter fim.

– Ah! É ali! Aquele muro! Só pode ser. Já estamos nos aproximando do número 3140. Vou parar ali em frente.

Eric parou o carro um pouco mais a frente, logo após passarem pelo semáforo. Saíram do carro e atravessaram a avenida. Chegaram na calçada. Caio olhou para o muro alto que era cercado por árvores.

– Mas isso é enorme!

– Muito mesmo.

– É do tamanho de um quarteirão.

Chegaram em frente ao portão de ferro. Ao lado dele via-se o número “3145” e também uma caixinha do correio. Eric tirou um maço de chaves do bolso do jeans e procurou a chave certa. Abriu o portão assim que a encontrou. Atravessaram o portão.

– Puxa vida! Puxa vida!

Mais adiante, quase no centro de todo o terreno, havia uma casa, muito antiga. Não lembrava em nada as construções históricas da cidade. Tinha um aspecto diferente. Havia mato por toda parte. Aparentemente ninguém cortava a grama há meses.

– Credo! Um verdadeiro matagal! - exclamou Eric.

– Vou olhar a caixa do correio.

Caio tirou vários panfletos já envelhecidos pelo tempo da caixinha. Jogou todos no chão. Nenhum deles era importante.

– Deve ter muito bicho por aqui. Droga! Odeio insetos.

Caminhou ao lado de Eric em direção a porta frontal da casa.

– Isso aqui realmente não parece em nada com as casas da cidade. - comentou Eric, ao analisar a construção.

O edifício tinha dois andares, telhados de duas águas, fachadas alinhadas, com balaustradas, entablamentos e cornijas, janelas emolduradas por arcos de volta perfeita, e era todo pintado em cor pastel. Chegaram à porta. Eric colocou a chave na fechadura e a abriu. Entraram numa espécie de hall, onde, logo à frente, havia uma escada em espiral. Linda. Antiga e elegante. À esquerda, uma porta. Entraram por ela. O interior da casa estava na mesma situação do jardim. Parecia que ninguém entrava ali há anos. Havia lençóis brancos sobre os móveis. Também quadros nas paredes e candelabros no teto.

– Isso é cristal? – indagou Eric, olhando para um candelabro.

Havia outra porta ao final desta sala. Passaram por ela e entraram num salão cheio de móveis. Havia teias de aranha por todos os lados, sem contar o quilo de pó sobre os lençóis e o chão. O cheiro não era agradável.

– Acho que o tio nunca veio aqui. – disse Eric.

– Por que será? Uma casa enorme dessas... Esses móveis devem valer uma fortuna!

– A casa também.

Sorriram um ao outro. Caio olhou para um quadro na parede. Era o retrato de uma jovem de olhos grandes e luminosos, pele pálida, face corada, lábios vermelhos, vestindo um longo e volumoso vestido com rendas e laços. Chamou seu irmão para que também visse. Repararam que havia outros quadros com a mesma jovem pelo ambiente. Alguns em que estava sozinha, outros em que estava com três crianças, outro em que estava acompanhada por um homem.

– Eu não entendo... Largar uma propriedade dessas... – disse Caio.

Ao voltar-se para o irmão, viu-o abrindo uma das janelas.

– Parece que só as janelas estão em bom estado. E a porta da frente. O resto...

Abriram as outras janelas para arejar o ambiente carregado. Entraram em mais duas salas depois das últimas. Em seguida, voltaram ao hall e conheceram os outros cômodos: a sala de jantar, a cozinha, a despensa, o escritório e a copa. Retornaram ao hall e agora subiram a escada. Conheceram os exatos doze quartos do primeiro andar.

– Felizmente há água encanada aqui. Seria triste se não tivesse. – agradeceu Eric. – Agora, luz elétrica, só nos cômodos debaixo.

Pararam no hall. Enquanto Eric olhava para o corrimão, imaginando de que material fora feito, Caio percebeu que havia um lençol branco pregado na parede embaixo da escada. Chamou o irmão. Conseguiram rasgar o lençol já muito deteriorado pelo tempo. Atrás do lençol havia uma porta, igual às outras portas da casa. Diferentemente das outras, entretanto, esta tinha uma aviso escrito em tinta preta, que dizia: “Não abra”. Os jovens fizeram exatamente o contrário. Eric achou a chave da porta e a abriu. Com a luz que entrava pela porta, foi possível aos irmãos enxergar um interruptor na parede. Eric acendeu a luz que iluminou uma escada que descia em linha reta ao que parecia ser um porão. Desceram por ela. O porão era amplo, mas não guardava nada, exceto uma urna comprida de mármore, sem ornamentos.

Pararam em frente a ela. Eric tirou um crucifixo que estava de pé sobre ela – bastante bonito, por sinal -, e forçou a tampa.

– Acho que dá para abrir. Me ajuda?

Com a ajuda de Caio, Eric conseguiu empurrar a tampa uns quarenta e cinco centímetros. Não empurraram muito, pois algo lhes chamou a atenção.

– Oh, meu Deus! Olha isso!

– Isso é... Isso é...

– É! É sim! É ouro!

A urna estava lotada até a tampa com moedas de ouro. Centenas de milhares delas. Todas iguaizinhas. Amarelinhas reluzentes.

– Estamos ricos? Estamos ricos!

– Aaaah, estamos ricos!

Abraçaram-se, sem conseguir conter a felicidade extrema. Pularam, gritaram, se apertaram. Era bom demais para ser verdade.

– Mas... Espera, não vão achar que roubamos? – indagou Caio.

– Como? Era do nosso tio e ficou para nós dois. Agora nos pertence, lembra?

– Verdade.

Eric comemorou enquanto o irmão pegou uma das moedas e a analisou.

– O que está escrito?

– Espera. – levou a moeda mais para perto do rosto. – Acho que é “LVD XIIII DG PT ET NAV REX”.

De um lado, havia a cabeça de uma pessoa em perfil. Do outro lado, uma cruz com coroas nas suas pontas que eram separadas por lírios. Letras diziam: “CHRS REGN VINC IMP”.

– É muito antiga, Caio. Muito antiga.

Notaram que havia três tipos de moedas na urna. Cada uma com figuras diferentes. Também tiraram quatro crucifixos que estavam escondidos pelas moedas. Puseram-nos no chão.

– Seria loucura contar as moedas?

Eric riu:

– Pode contar. Enquanto eu vou pensar o que poderemos fazer com o dinheiro.

De súbito, Caio deu um grito e recuou alguns passos.

– Que foi?

– Tem alguma coisa aí dentro.

– O que?

Eric inclinou-se e remexeu as moedas, enquanto Caio aproximou-se devagar e agarrou seu braço.

– Droga! O que é isso? – assustou-se Eric.

– Eu não disse?

O mais velho havia se assustado ao ver uma mão cadavérica embaixo de todo aquele ouro. Mesmo achando uma impossibilidade, pegou punhados de moedas e as largou no chão.

– Me ajude aqui.

– De jeito nenhum. – disse Caio, recuando novamente.

Eric continuou tirando mais e mais moedas até conseguir enxergar além de uma mão. Descobriu um braço e um ombro.

– É... É... Uma pessoa.

– O que? Meu Deus! – tremeu Caio.

– Com certeza não é o tio. Enterraram ele semana passada.

– Não tem graça.

Eric riu. Tirou mais moedas. Conseguiu enxergar cabelos negros e logo mais, um rosto pálido.

– Acho... Acho que é uma múmia.

– Múmia? – indagou Caio, sentindo certo alívio.

– Está bem preservada... Deve ser por causa da urna. Acho que não entrava ar por ela. Venha ver. Sem dúvida é uma múmia.

Caio aproximou-se devagarzinho até conseguir olhar outra vez para dentro da urna. Parou ao lado do irmão.

– É um homem. – comentou, ao fitar o rosto.

– Bastante jovem.

– Muito pálido... O que fizeram para deixá-lo assim?

– Sei de uma técnica de embalsamamento extremamente eficiente que impede o corpo de se decompor. Deve ter sido muito amado em vida para quererem deixá-lo aí.

– Não vi nenhum retrato dele na casa.

– Não?

– Eu me lembraria... Apesar de ser uma múmia, ele é muito bonito... O que fazemos com ele?

– Não sei... Vamos ter que fechar a arca. Não podemos deixar o corpo apodrecer, se bem que já até parece podre. Está sentindo esse cheiro? É nojento! Vamos trazer alguém aqui para ver o que podem fazer com ele. Talvez o levem para um museu.

Ambos contornaram a urna e começaram a empurrar a tampa para fechá-la. Ouviram, no entanto, o som de moedas se movendo. Em menos de cinco segundos, a tal múmia pôs-se sentada e virou o rosto para eles, estalando o pescoço. Os irmãos abriram um berreiro ensurdecedor e correram para a escada. A múmia, porém, levantou-se rapidamente da urna e agarrou Caio. Abriu a boca e levou os dentes até seu pescoço. Antes que pudesse mordê-lo, pisou num dos crucifixos no chão. Apavorada, a múmia recuou para um canto do porão e ali ficou. Percebendo a situação, Eric pegou o crucifixo, enquanto Caio escondeu-se atrás dele.

– Para fora, Caio! Para fora!

– Não vou te deixar! – disse, chorando.

– Quem é você?

A múmia usava camiseta, calça, botas e sobrecasaca. Uma roupa que parecia ter sido moda há centenas de anos atrás. Esta começou a farejar de repente, como um cão.

– Qual teu nom?

– M-meu nome?

– Meu Deus! Ele está falando! – exclamou Caio, petrificado de medo.

– Eu me chamo Eric, - disse o rapaz, tentando manter a calma. – E esse atrás de mim é meu irmão, Caio.

– De quale famille vós pertence?

– Beaumont.

A múmia, que de múmia não tinha nada, pareceu pensar um momento.

– La marquesa. Onde está La marquesa de Beaumont?

– Quem?

– La marquesa. Onde está La marquesa?

– Não existe nenhuma marquesa. Não se usa mais esse título em nossa época.

A múmia franziu o sobrolho.

– Époque?

– N-nossa época.

– Em quelle ano estamos?

– 2013.

– Quoi?

– 2013. Estamos no mês, no mês de março. Do ano 2013 do século 21.

– Vint e um?

Surpreendentemente, a múmia começou a rir. No instante em que deu passos para frente, Eric esticou mais o braço que segurava o crucifixo e recuou com o irmão para mais perto da escada.

– O-o que estava fazendo, fazendo na urna?

– Preciso de sang. Sangue. Estou... Faminto.

Recuaram mais um pouco.

– Vampiro! – exclamou Eric. – É um vampiro!... Isso não é possível. Vampiros são apenas história... Ficção... Não existem. Não... Deveriam existir.

De súbito, o vampiro caiu de joelhos.

– Tens sorte, menino. Muita sorte.

– Vamos embora, Eric. Vamos, por favor.

Os dois recuaram aos poucos, sem dar as costas ao vampiro. Assim que chegaram ao final da escada, passaram pela porta e a trancaram, esquecendo-se de apagar a luz. Trancaram também a porta da frente e correram para o jardim.

– Meu Deus! Meu Deus!

Pararam ao chegarem ao portão.

– Foi uma brincadeira do tio, não foi? Não foi?

– Ele... É... Um vampiro? Um vampiro de verdade? – disse Eric, pálido.

– Vamos para casa.

Entraram no carro e chegaram em casa. Tomaram água com açúcar e tentaram se acalmar. Tudo parecia irreal demais. Como era possível? Um vampiro?

Ambos tentaram analisar friamente a situação. Eric xeretou a papelada do tio. Segundo seus documentos e o que foi relatado pelo advogado, seu tio nunca teve filhos. Nunca se casou. Morreu aos setenta e cinco anos de complicações após uma cirurgia no coração. A propriedade na avenida era de sua mãe. Ele foi o último filho dela a falecer, por isso ficou com o casarão. Não tinha amigos conhecidos. Gastava seu dinheiro com remédios e cigarros. Quem poderia ser a tal marquesa de Beaumont? Procurou seu nome na internet e não encontrou nada.

Ao ver o irmão na sala, disse-lhe que talvez o vampiro não lhes fizesse mal por conta de seu sobrenome.

– O que? Que isso importa? Vampiro ou não, aquele homem, aquela coisa, está viva e com certeza é perigosa. Vamos chamar a polícia para tirá-lo de lá. Não vamos conseguir vender a casa com aquela coisa lá dentro.

– Polícia? Vão atirar nele e não vão conseguir matar. Não percebe, Caio? Estamos lidando com um ser sobrenatural. Essa coisa toda existe! É real!

– Eu não quero me envolver. – disse o garoto, agoniado.

– Acho que devemos. Imagine o que não podemos fazer com a criatura?

– Ficou maluco? Ele vai matar a nós dois.

– Acho que não vai. Preciso pensar um pouco. Temos que pensar muito bem no que faremos.

Nenhum dos dois conseguiu dormir. Caio ficou tão apavorado que só fechou os olhos ao cair de exaustão. Já Eric, matutou a noite inteira, pensando em como poderia tirar proveito da situação. Três dias mais tarde, após chegar do trabalho, Eric jantou em casa e foi buscar o irmão no colégio.

– Vou voltar para o casarão. – disse o mais velho, enquanto dirigia o carro.

– O que? De jeito nenhum! É perigoso.

– Não precisa ir comigo se não quiser.

– Não, Eric, por favor.

– Confie em mim. Sei o que estou fazendo.

Caio só consentiu em seguir o irmão porque não queria que nada acontecesse a ele. Voltaram no sábado para a casa na Avenida Itavuvu. Eric estacionou o carro no mesmo local que da última vez. Abriram o portão. Depois a porta da frente. Caio revelou que segurava uma faca grande e afiada debaixo da camiseta. “É precaução”, disse ele. Eric, de mochila nas costas, abriu a porta debaixo da escada. A lâmpada continuava acesa como haviam deixado. Eric foi descendo a escada enquanto Caio permaneceu lá na porta, só a observar. O mais velho viu o vampiro sentado num canto do porão. Seus olhos se cruzaram.

– Você tem algum parentesco com a marquesa de Beaumont? É filho dela?

Não ouviu resposta.

– Eu posso te ajudar... Se prometer não nos fazer mal.

– La marquesa... Está morta?

– Não tenho dúvidas de que esteja.

O vampiro riu. Depois ficou sério.

– Qual seu nome? – indagou o rapaz.

– Tens sangue aí.

Eric tirou a mochila das costas e a colocou no chão.

– Tenho. Vou te dar, se prometer não nos machucar.

– Eric? – disse Caio, de repente, descendo a escada. – Do que está falando?

O rapaz assustou-se ao ver o irmão tirar uma bolsa de sangue da mochila.

– Meu Deus! De onde tirou isso?

– Meu amigo trabalha no... Não interessa. Hei, você. Isto será seu, mas preciso que prometa.

O vampiro não disse nada. Apenas estendeu a mão. Eric, aparentemente confiante, andou até o vampiro e lhe passou a bolsa. Este furou a bolsa com os dentes pontudos, abriu a boca e deixou o sangue cair goela abaixo. Bebeu rapidamente. Depois encostou a cabeça na parede, com expressão de quem acaba de saciar a sede.

– Você conheceu nosso tio? Carlos Beaumont?

– Não.

– Essa casa era dele e agora é nossa. Tudo dentro dela nos pertence. Inclusive você.

O vampiro olhou-o com surpresa irônica e sorriu, mostrando os dentes sujos de vermelho:

– Nunca serei objeto de dois fedelhos.

– Mas é, é nossa propriedade. Você, a casa, o ouro, os móveis... Tudo.

Caio não acreditava nas palavras do irmão. Também não sabia onde ele conseguira tanta segurança para falar. Não estava com medo. Como não estava com medo?

– Menino estúpido. – disse o vampiro, ficando mais sério. – Não sabe com quem está lidando.

– Você é que não sabe com quem está lidando.

Eric tirou o celular do bolso e, bastou apertar um botão para a lanterna dele acender. Mirou a luz forte na direção do vampiro que, aterrorizado, recuou para o canto mais escuro do porão. A luz só lhe atingiu por quatro segundos. Era arriscado demorar-se demais. Assim que o deixou assustado, o rapaz desligou a luz.

– Sou Eric Beaumont e este é meu irmão, Caio Beaumont. Agora você é nosso. A menos que queria morrer queimado. Você decide. O mundo mudou. Não é mais como você se lembra. Não vai sobreviver um dia lá fora sem nossa ajuda. É bom se acostumar.

– O que quer de mim?

– Sua proteção. E você terá a nossa. Faça o que dissermos e te daremos sangue. Estamos de acordo?

Caio não conseguiu compreender rápido. Quando saiu da casa ao lado do irmão, fez-lhe dezenas de perguntas. Queria saber, muito urgentemente, como conseguira o sangue.

– Um amigo meu forneceu. Mas não foi fácil conseguir. Precisou falsificar uns documentos para mim. De acordo com o documento falsificado, temos um parente que está em estado gravíssimo e precisa se alimentar de sonda intravenosa.

– O que? Você bolou a coisa toda? – indagou, chocado.

– Era isso ou matar alguém na rua. Se acalma. Vai dar tudo certo. Vamos dar um trato nos móveis e ver se conseguimos vender alguma coisa.

– E quanto ao vampiro?

– Não se preocupe. Ele não nos fará mal. Está mais assustado que nós.

Ambos voltaram no domingo, trazendo produtos de limpeza e um cortador de grama recentemente comprado. Caio se dispôs a cortar o matagal do jardim. Tudo para ficar o mais longe possível do interior da casa, pois sabia que o vampiro jamais passaria da porta. Eric abriu as janelas dos cômodos do andar térreo e começou a tirar pó de tudo, além de tirar as teias de aranha dos cantos das paredes. Mais tarde, entrou no porão e deixou uma bolsa de sangue para o vampiro. Caio levou a manhã inteira para cortar um quinto de toda a grama. De tarde, foi com o irmão a uma lanchonete para almoçar.

– Escute isso: - disse Eric, tirando um pedaço de papel do bolso da calça. – segundo minha pesquisa, uma moeda daquela que está na urna, uma ÚNICA moeda, vale até doze mil euros.

– Doze?? Sério?

Balançou a cabeça positivamente.

– Aquelas moedas são do século 18. Muito raras. Por isso valem tanto. Agora, se uma moeda vale até doze mil euros, multiplique esse valor pela quantidade de moedas que você acha que tem dentro daquela urna.

De repente, os olhos de Caio brilharam:

– Muito... Muito dinheiro.

– Sim. Muito dinheiro.

Voltaram para o casarão e continuaram a limpeza. Precisaram de exatos dois finais de semana para terminar razoavelmente o serviço, sem ainda chegarem a limpar totalmente o primeiro andar. Apareceram na casa outra vez, no terceiro final de semana de limpezas. Abriram a porta do porão e deram-se com o vampiro sentado no chão, num canto que lhe pareceu ser seu preferido.

– Quanto tempo me deixarão aqui? – disse a criatura, com sua voz grave.

– Você quer sair?

– É claro que quero sair.

– Tudo bem.

Eric e Caio subiram a escada primeiro. Deixaram a porta aberta e aguardaram o vampiro. Este subiu a escada logo depois. Piscou os olhos algumas vezes, pois o hall estava mais claro que o porão.

– Está muito diferente do que você lembrava? – indagou Eric.

– Muito.

Todas as janelas estavam fechadas, de modo que o vampiro pôde caminhar pela sala sem preocupação. Quando pararam na segunda sala, Eric recolheu sua mochila deixada sobre um canapé e aproximou-se do vampiro.

– Escute: eu trouxe uma toalha e um sabonete. Tem um chuveiro no quarto lá de cima. Que tal tomar um banho?

O vampiro fitou-o como se sua boca tivesse dito algo absurdo.

– Banho? Já tomei banho.

– Quando?

– Não preciso de outro. Um já foi o bastante.

– Um? Só tomou um banho? Não sabe que é muito importante para nossa saúde tomar banho todos os dias?

– Não preciso de saúde. Estou morto.

– Não me leve a mal, mas... Você realmente cheira como alguém morto.

Pela primeira vez, Caio sentiu vontade de rir. Só o vampiro não entendeu o que o rapaz quis dizer.

– Não tomarei banho.

– Por favor, me escute. Você está cheiro mal. Ficou naquela urna durante todo esse tempo... Precisa tomar banho e trocar de roupa.

Caio admirou-se com a ousadia do irmão em dizer aquelas coisas ao vampiro. Isso também lhe causou muito medo. Medo de o vampiro se enfurecer e machucá-lo. Contudo, para seu espanto, a criatura deixou ser levada para o quarto do primeiro andar. O único da casa que tinha um chuveiro. Caio não entrou no banheiro com o irmão. Ficou na porta, espiando atrás dela. Eric girou o registro do chuveiro e a água caiu. O vampiro recuou na mesma hora.

– Vem. Pode vir.

– O que é isso? Como...

A criatura aproximou-se devagar, ainda incerta.

– Onde está a água? Como ela cai?

– Bom, ela cai por causa da gravidade. E está nos encanamentos. É só água. Não tem perigo. Põe a mão. Olha. É só água, viu?

Depois que Eric molhou a ponta dos dedos, o vampiro estendeu sua mão e molhou-a também.

– Está quente... Como?... Vocês são bruxos?

Eric riu. Caio riu discretamente.

– Não é bruxaria. É só o chuveiro. Está vendo?

Enquanto o vampiro observava o chuveiro e a água caindo, Eric tirou xampu e condicionador da mochila que deixara dentro do banheiro. Também uma bucha e um sabonete. Pendurou uma toalha num ganchinho pregado na parede. Explicou ao vampiro como deveria tomar banho. Depois, qual produto deveria ser usado para lavar o cabelo. Terminada a explicação, saiu do banheiro e ficou ao lado da porta, junto com Caio.

A cada minuto perguntava ao vampiro se estava tudo dando certo. Num primeiro momento em que o espreitou pela porta, viu-o sem camiseta. Na segunda vez em que espiou, viu-o nu. Ambos os irmãos o olharam. Realmente o sangue que ele tomou nos dias anteriores devolveu toda a sua juventude e beleza de como quando era vivo. O vampiro não era feio. Ainda era jovem. Sem dúvida não chegara aos trinta anos quando transformou-se em vampiro. Por mais pálida que fosse sua pele, esta contrastava perfeitamente com o negro de seus cabelos. Um homem atraente, na opinião dos dois irmãos.

Aos poucos a criatura pegou confiança e foi entrando cada vez mais embaixo do chuveiro. Primeiro molhou os braços, as pernas e depois todo o resto.

– Aaaaaaah! Isso arde!

– Que foi? – indagou Eric.

Ao entrar no banheiro, viu o vampiro esfregar as mãos nos olhos. O cabelo estava cheio de espuma e uma grande quantidade de espuma estava em frente aos olhos. Acorreu a ele e pediu que ficasse debaixo da água, para que a espuma escorresse. Como o vampiro não cooperou de forma adequada, a solução foi secar seu rosto com a toalha.

– Não usarei essa gosma laranja. Quer me deixar cego?

– Era só não derrubar nos olhos. Isso não deixa ninguém cego. Tudo bem, tudo bem. Tire a espuma, mas com cuidado. Incline a cabeça debaixo do chuveiro para a água não cair na frente dos olhos de novo. E não abra os olhos quando estiver fazendo isso.

“Sinceramente”, pensou Eric, “seria mais fácil dar banho em criança. Ao menos elas não amaldiçoam o chuveiro e nem você quando tenta ajudá-las”.

O vampiro já estava no banho há mais de trinta e cinco minutos. Caio até sentou numa cadeira do quarto para esperar. Eric, mais impaciente, entrou no banheiro perguntando se já havia terminado.

– Como se pára essa água? – indagou a criatura. – Faça parar.

Eric meteu a mão no registro e o girou.

– Viu só? É só girar para lá ou para cá. Até você pode fazer a água cair. Não é nada demais.

O vampiro não deu muita atenção. Eric passou-lhe a toalha e ele se secou. O próximo desafio dos irmãos foi tentar convencer o vampiro a usar a roupa que eles haviam comprado.

– Vamos lá, experimente.

– Não gostei dessa roupa. Usarei a minha.

– A sua está velha e gasta. Sem contar que está suja. Use esta camisa. Tenho certeza de que é o seu tamanho.

– Como sabe? – perguntou Caio, ainda escondido atrás da porta.

– Acho que ele tem o tamanho do Renan.

– Ah.

– Odiei essa roupa. É estranha e feia.

– Vista essa roupa. – disse Eric, com firmeza.

Vampiro e rapaz se enfrentaram com os olhares. Eric saiu vitorioso. Passou-lhe uma camisa social preta, uma calça jeans e uma cueca boxer. Deixou o vampiro sozinho no banheiro. Chegou a perguntar se a cueca apertava. O vampiro disse que não, mas que não havia gostado dela. Eric teve ainda que ajudar o vampiro com o zíper da calça. Ajeitou os botões da camisa e pediu a ele que secasse melhor os cabelos.

– Ficou perfeito. – disse, feliz. – Não ficou, Caio?

Caio deu uma espiadela e concordou.

– Não estou confortável. – disse o vampiro, sem quase se mexer.

– Eu sinto muito, mas as roupas que você usava nem existem mais. Ninguém usa aquele tipo de camiseta hoje em dia.

Naquele momento, a expressão do vampiro fez o rapaz sentir pena.

– Vem, vamos lá pra baixo.

Os três foram para a sala. O vampiro sentou-se num dos sofás e ali ficou, parado, como estátua. Não penteara os cabelos e nem calçara o chinelo que Eric ofereceu.



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