Naya: Crônicas de Atlas escrita por Antonio Filho


Capítulo 8
Capítulo V: Maelthor




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Andando pelas ruas infinitas e idênticas da cidade, carregando Floquinho nos braços, Naya procurava o endereço dado por Ariel horas atrás, quando o sol ainda não queimava sua pele. Estava escrito numa caligrafia legível até para cegos: “Bairro das Camélias, Loja de Alquimia Maelthor”. Naya não tinha a mínima ideia de onde ficava.

Não havia referencial algum que ligasse o local ao cartão. Por sorte, muitas pessoas compartilhavam o mesmo caminho que o seu pela rua, indo e vindo, algumas mais apressadas que outras. Juntas ocupavam completamente as calçadas, já lotadas de bancas e feirantes. Não faria mal obter um pouco de orientação com alguém.

‒ Você já está no Bairro das Camélias mocinha. A loja dos Maelthor fica no próximo cruzamento dobrando a direita. – Disse um senhor gordo, ao ser indagado pela inocência da forasteira. O ogro verde apontou e movimentou os dedos simulando o caminho que deveria ser percorrido, compensando o sotaque forte e áspero que faziam suas vogais ressoarem completamente anasaladas.

Seguindo o trajeto mimicado, ela não demorou muito para perceber. Chegara ao local. Enganou-se completamente em relação ao referencial. As letras exageradamente grandes, coloridas e cintilantes deixavam claro como o dia o endereço do lugar depois de visto pela primeira vez. Naya havia ficado um pouco envergonhada por se dirigir ao local mais escandaloso da rua, se não do bairro. Ao se aproximar, escondia o rosto com uma das mãos sobre a testa, como se o sol estivesse incomodando, mas era apenas o vexame.

Ao tomar coragem para girar a maçaneta, um sino soou suavemente com o toque da porta, anunciando sua entrada. A fada ficou apenas surpresa por não ter sido recebida por uma banda de corneteiros e chuvas de confete.

Deparou-se com um local maior do que imaginara, impressionantemente menos enfeitado que no exterior, repleto de estantes quase vazias. Seus pés tocavam a madeira brilhante e encerada, mas todo o resto se revestia de grandes pedras alaranjados. Sob o teto, com o pouco da visão que não tinha sido roubada pelas luzes multicoloridas, Naya suspeitou que o forro dava suporte a um andar superior. Um depósito para estoque, talvez.

Ariel estava lá, atendendo um homenzinho minúsculo. Com certeza se tratava de um gnomo. Mesmo com uma cartola na cabeça, ele não alcançava muito mais alto que o busto da fada. Isso a deixava feliz: sempre sorria ao encontrar alguém menor que ela.

Desviando seu olhar para a porta ao ouvir o sino, os olhos do elfo tomaram uma pequena pausa quando viram a imagem de Naya. Aquela garota misteriosa que encontrara no meio do nada. Com certeza ela despertava dúvidas. Valerianos não costumavam vir ao sul, a não ser que tivessem uma boa razão. Isso o deixava curioso. Todo viajante possuía uma história. Qual era a dela?

Concluindo o atendimento do cliente ranzinza que insistia que numa loja de alquimia deveria vender armas encantadas, ele dirigiu-se até Naya, animado por vê-la novamente:

‒ Estava me perguntando se você viria! – Confessou enquanto limpava as mãos com uma toalhinha já suja, pousando-a sobre o ombro.

A fada não respondeu, apenas retribuiu inclinando a cabeça para o lado, sorrindo acanhada. Palavras e assuntos para falar não lhe faltavam, mas saber o que se adequaria para o pouco conhecimento mútuo não lhe permitia iniciar a conversação.

‒ Encontrou sua prima?

‒ Não. Vamos nos encontrar só amanhã no Festival de Dança, quer ir comigo? – Depois de indagar, a fada percebeu o quão abrupto e relâmpago havia sido o convite. Morria de vergonha por dentro, tentando não transparecer esse sentimento com bochechas já rubras. Contudo, sabia que o tiro seria necessário: ela precisava de alguém para guiá-la até o Anfiteatro e Ariel era única pessoa que provara seu caráter.

‒ Cla...Claro! Seria uma honra.

‒ Ariel... Seria incomodo demais pedir para dormir na sua casa? É só por uma noite, eu juro! É que eu e o Floquinho não temos onde ficar. – Naya falava enquanto colocava-o no chão, já com os braços cansados e ciente de que o volume do gato não vinha só de seu pelo. ‒ Eu não trouxe nenhum dinheiro, mas posso ajudar a limpar a loja ou algo do tipo!

O elfo até agora não tinha notado. O felino não estava com ela na primeira vez. Sorrindo, carismático, respondeu:

‒ Claro que pode! Não precisa se incomodar! Eu moro aqui no segundo andar da loja, não tem nenhum luxo, mas pelo menos é pertinho do trabalho. Meu pai voltou para Sael pra comprar mais reagentes, estávamos voltando de lá quando te buscamos. Os que colocamos na loja hoje já estão acabando! – Disse Ariel, orgulhoso do trabalho duro que rendera ao seu sobrenome a fama regional de mercador.

Naya ficou impressionada, reparando bem mais admirada o quão vazio estava o lugar. Realmente a loja estava sem mais nada que pudesse gerar algum lucro e eles haviam descarregado uma carroça cheia no mesmo dia!

A vida de um comerciante deveria ser bem agitada, pensou ela. Conhecer pessoas de diversas raças todos os dias, comprar e vender fazendo o próprio dinheiro. Talvez não envolvesse tanto o uso de magia nem viajar pelo mundo quanto a princesa aspirava em seus sonhos, por isso não tinha muito interesse pessoal em praticar esse empreendimento. Mas ainda assim ainda parecia divertido!

‒ Vou fechar a loja. Se não tem mais o que vender, não precisamos ficar abertos o resto da tarde, não é mesmo? Vamos aproveitar o tempo para comer alguma coisa, podemos ir ao meu restaurante favorito!

Naya asseverou com a cabeça, procurando o gato que já deveria ter se entocado em algum lugar das estantes, quando ouviu novamente o sino da porta.

‒ Sinto muito senhor, mas estamos fechados.

Um cliente havia entrado. Ele cambaleava, como se estivesse bêbado desde o início da manhã. Ariel não estava surpreso: cena corriqueira ver alcoólatras e foliões completamente embriagados durante o festival. O preço das bebidas baixava e as variedades aumentavam com as produções próprias da época. Só terminaria num resultado.

Repetiu mais uma vez. O humano parecia ignorar seus avisos, aproximando-se ainda mais. Ele o desafiava, fétido e coberto por mantos, como os mendigos que os guardas locais tratavam de expulsar das praças todos os dias.

‒ Garota, fique quietinha aí se gosta mesmo de viver, e você – gritou puxando uma faca de açougueiro por dentre as camadas da roupa, apontando-a para o elfo. Um capuz escondia seu rosto, mas ele virou-se em sua direção - passe todo o dinheiro que tiver e é bom que tenha muito se também se não quiser morrer!

Suando frio, Ariel estava com medo. Achou melhor fazer o que o homem havia ordenado não apenas para sua própria segurança, mas a fim de evitar que algo acontecesse com sua companheira. O mendigo estava claramente sob o efeito de drogas. Com certeza não discernia sobre o mal que estava cometendo, apenas daria tudo o que seu corpo em ruína saciasse seus vícios, que pediam cada vez maiores quantidades de drogas. Naya não tinha nada a ver com isso, reagir só pioraria a situação para os dois...

Trêmulo, o rapaz enchia uma bolsa com o dinheiro que encontrava nos caixas. Já havia passado por isso antes, mas nunca com um assaltante fora de si. Não daria para saber o que estava passando em sua mente. Isso o deixava ainda mais angustiado.

Naya nunca havia sido assaltada, mas sabia por histórias de amigos das cidades que era perigoso reagir.

Como se uma eternidade passasse a cada piscar de olhos, o coração da fada acelerava a cada metro que aquela pessoa desprezível se aproximava. Não se comparava com os comerciantes ou mesmo com Tales Alec de horas atrás: esse homem parecia realmente perigoso.

A posição em que se encontrava não lhe permitia ver o rosto do assaltante, mas conseguia perceber que sua mão coberta tentava esconder outra faca no casaco. A lâmina suja de sangue seco a preocupou ainda mais. No entanto, vê-lo mover o braço em direção a Ariel a fez agir sem pensar.

Por impulso, sem recitar encantamento algum, a maga lançou uma bola de fogo na mão do assaltante, fazendo-o soltar a lâmina, pois havia ficado instantaneamente quente como brasa.

‒ Argh! Vadia imunda! ‒ Gritou o humano, colérico e enxergando a morte daquela garota mais cedo do que planejara.

Furioso, o rosto grotesco de olhos saltados do oponente a advertiram de que se não fizesse nada nos próximos milésimos de segundo ela estaria morta com certeza.

Jogando-se em disparada na direção de Naya após sacar outra faca de seu cinto, maior e, pelo odor, que havia provado carne hoje mais cedo, a evisceração parecia certa: a agilidade causada pela abstinência era absurda. No mesmo instante, a fada ainda de sangue quente e mais rápida por possuir um corpo muito menor, conseguiu se jogar para trás. Ao mesmo tempo, disparou um relâmpago fulminante e ensurdecedor.

Paralisando o inimigos e queimando seu peito, sua pele fundia com o tecido derretido pelo calor da corrente elétrica. Os gritos ecoavam tão aterrorizantes quanto os olhos avermelhados e o rosto deformado. Ambos revelados após o impacto brutal do ataque. “Sim, eu sinto correndo pelas minhas veias. Essa sensação, essa adrenalina... Me faz sentir... Viva”.

Naya não tinha intenção de matá-lo. Não havia aprendido magia para assassinar, mas para buscar a balança entre a paz e a justiça. Sua geração desconhecia a guerra: a necessidade de machucar os outros não a agradava, mas o faria se fosse para defender o que julgava correto. “A magia é uma arma diferente das outras. Ela pode agir de acordo com nossas intenções, nossos sentimentos. Moldar a realidade como desejarmos. Destruir é uma opção. De todas, a mais covarde”. Uma das filosofias que Thargon ensinava, e a maga concordava plenamente com esse pensamento.

Por um momento, Naya sentiu seu poder fluindo novamente, como se o bloqueio de Sinandrin houvesse se rompido com a explosão de perigo. E essa era a hora.

Agachou-se rapidamente, tocando o chão com a palma das mãos, encantando-o com um grande círculo mágico pré-formado imaginado por sua mente. O ar pesou como aço e em questão de segundos, a magia estava lá. Uma dúzia de pilares de gelo surgiram do chão, rompendo violentamente o piso de madeira, aprisionando o humano que lutava freneticamente para se soltar. Uma luta inútil: o gelo verde era forte como concreto.

Mesmo sem sentir seu poder completo, Naya ainda se sentia uma inimiga em potencial: havia treinado com os professores reais, os mestres mais poderosos de Valerian. Não permitiria jamais que machucassem seus amigos.

Aproveitando para conjurar uma magia mais elaborada e que pudesse encerrar essa batalha de uma vez por todas, a princesa estendeu seus braços. Um para cada lado, num grande crucifixo de mana reluzente. Recitou o feitiço numa velocidade impressionante e língua desconhecida por Ariel, que assistia tudo, pasmo, sem conseguir acreditar no que estava vendo.

Instantaneamente, após o termino da última palavra, uma grande explosão de luz tomou conta da sala, brilhando muito mais intensamente que o relâmpago rútilo. A magia se concretizava escondida pelo manto luminoso, misteriosa e indecifrável. Ambos protegeram os olhos reflexivamente com os braços e quando puderam abri-los, após a lenta dissipação da radiação, o ladrão não estava mais lá. Pelo menos não em sua forma original.

‒ U... Uau! Você o transformou nu-numa ovelha! – Ariel exprimia as palavras alvoroçado, ainda mais boquiaberto com o que via.

‒ Sim, mas a polimorfia é apenas temporária. Temos que fazer alguma coisa rápido!

‒ Vou chamar os guardas civis do bairro para prendê-lo, volto rápido!

Ariel saiu correndo, tombando nas prateleiras destroçadas, ainda em estado de choque. Claro que já havia sido assaltado e visto magos em ação, mas a garota pela idade que tinha, ou aparentava ter, não deveria conjurar magias como aquelas tão rapidamente. Mesmo sendo uma fada. Muito menos conjurar raios e rajadas de fogo como se não fosse nada demais.

Ele não era um mago, longe disso. Mas conhecia vários clientes e amigos praticantes do arcano. Sabia que conjurar círculos pré-formados não consistia num trabalho para amadores: requeria memória e disciplina que dificilmente adolescentes possuíam. Sabia também que usar magias de alto nível sem equipamentos de suporte e concentração, como amuletos, cetros ou cajados, tratava-se duma característica magos muito experientes. Não havia dúvidas: ela era realmente incrível.

Quando o elfo voltou com dois guardas minotauros ao seu lado, fazendo-o parecer minúsculo mesmo para um elfo, Naya desfez o encanto. Trouxe o assaltante de volta ao normal, cambaleante e tonto, caindo inconsciente com um soco impiedoso de um dos guardas. Desarmado, foi preso e arrastado sem a menor cerimônia pelos homens-touro, que desculpavam o inconveniente em nome da polícia da cidade.

Estavam a sós novamente. Ariel parecia aliviado, suspirando fundo e vagarosamente, deixando suas preocupações serem levadas pelo vento que corria pela porta. Seus olhos miravam a rua, mas entrelaçavam o nada a sua frente com uma concentração tão profunda que o fazia parecer estar pensando em algo importante. Mas apenas um confortável vazio preenchia sua mente.

Naya permanecia calada, observando seu amigo de costas para ela. Completamente envergonhada, percebeu que havia se deixado levar pelo calor da batalha e praticamente destruído a loja dos Maelthor. Não tinha a menor condição de pagar os reparos sem entrar em apuros com seus pais, mas tentaria ajudar de alguma maneira que ainda estava pensando. Talvez conhecesse alguma magia pudesse consertar o estrago horrendo.

Quando ela pensou em abrir a boca para se desculpar, Ariel tornou-se em sua direção, aproximando-se:

‒ Eu não sei o que dizer Naya. Só tenho a agradecer, você arriscou sua vida por mim. Muito obrigado!

Antes mesmo que pudesse responder qualquer coisa ou desculpar-se pela bagunça que ele claramente ainda não havia notado, Ariel a abraçou, apertado. E ela retribuiu. Era um abraço bom, quente e resguardado.

Subitamente, após alguns segundos relaxantes e merecidos, um pensamento veio à cabeça da garota, lembrando-a:

‒ Ainda vamos comer né? Tô morrendo de fome!

Eles riram, ainda abraçados.


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