Naya: Crônicas de Atlas escrita por Antonio Filho


Capítulo 7
Capítulo IV: Alec.




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Deitada sob a sombra de uma das inúmeras sempre-verdes, a grama se mostrava um bom lugar para olhar o céu ou simplesmente desvanecer a vista e pensar, sentir. A brisa tocava a pele, o som das canções chegavam aos seus ouvidos, o gato peludo e macio ao seu lado. Momentos assim eram ótimos para pensar em coisas mundanas. Por exemplo, o lapso temporal que o teletransporte de Sinandrin criara durante a viagem até aqui.

O que naquela dimensão de transporte pareceu segundos, na realidade deveria ter durado horas. Essa assimetria, característica de feitiços temporais imperfeitos, inviabilizava a magia para muitas situações, como batalhas. “Com certeza ela deve ter usado um Pulo Espaço-Temporal para que não chegássemos no meio da noite. Ou talvez a distância não tenha deixado ela usar algo melhor...”.

‒ Então, Floquinho. Eu já te contei sobre Valerian. Você vai ver depois, mas já dá pra ter uma ideia, né? Então, você acha que meus pais vão ficar com raiva por eu ter vindo aqui?

O gato miou mexendo as orelhas de um lado para o outro.

‒ Eu sei. Eu devia ter avisado. Mas eles não iriam deixar nunca se eu pedisse. Mas eu precisava disso! Ver o mundo por de trás daquelas muralhas. E não, não conta as viagens diplomáticas. Os castelos são todos iguais! Entende?

Floquinho a olhava. Se fosse um ser inteligente, Naya diria que ele estava julgando.

‒ Ah. Esquece. Até hoje você andava por ai, livre. Aposto que não deve ter a menor ideia do que é passar sua Primeira Juventude, décadas, numa propriedade real.

Naya desistiu de conversar com o gato, ele se recusava a entender a situação.

Após refletir sobre feitiços, o calor e o bate-papo, Naya estava pronta para se levantar. O lugar em que estava era bom. Isolado e calmo. Uma pequena clareira longe da vista das multidões. Mas chegara a hora de enfrentar o mundo, encontrar o Anfiteatro ou Ariel, pois sem dinheiro não conseguiria achar algum lugar para ficar.

Naya teria feito isso imediatamente, se não tivesse sido atingida por algo enquanto estava erguendo o corpo. O peso de outra pessoa jogara os dois violentamente sobre o gramado num tombo feio, desengonçado e doloroso. Não tivera tempo de sequer abrir os olhos para ver o projétil veloz que a atingira ou abrir a boca para gritar. Quando os fez, viu um rapaz caído sobre si, humano pelo cheiro característico. “O que raios está acontecendo?”.

– Você é cego?! Saia de cima de mim seu idiota! – Rosnou Naya, irada com a situação, empurrando o corpo do garoto.

– Segure esse ladrãozinho de merda! – Gritou um homem, acompanhado por outros três. Todos armados com porretes, parando frente a Naya e ao indivíduo caído.

A fada olhara para ele, encarando-o. Sujo e maltrapido, o rapaz tentava esconder um pão bengala dentre as vestes. Pelo cenário, deveria ter roubado um dos comerciantes a sua frente. Ele tentou se levantar para correr mais uma vez, mas o tombo torcera um de seus tornozelos, incapacitando-o. Contudo, a situação não parecia desesperá-lo tanto quanto Naya estaria se estivesse em seu lugar. O moreno de sorriso malandro encontrara os olhos da garota a sua frente, sussurrando:

– Me ajude, por favor.

Ela cerrou os olhos, ainda mais desconfiada. Seria errado ajudar um mão-leve de mercado, mas se não fizesse nada, com certeza ele seria espancado pelos homens que não pareciam nada felizes. Um troll, dois humanos e outro ogro contra uma pessoa machucada. Não era o que se podia chamar de luta justa.

– Pode deixar ele com a gente agora garota, você já ajudou o bastante. – Disse o ogro, batendo o porrete contra a mão. – Esse miserável vem atormentando as lojas do bairro há semanas!

– Deixem ele em paz, ele já se machucou. Garanto que não irá mais causar problemas. – Prometeu ela, enquanto se levanta. – Vocês me parecem boas pessoas, acho que vão me escutar, não é mesmo?

– Ou o quê? Saia daqui agora ou vai acabar sobrando pra você, pirralha. – Resmungou o troll pele azul. Deveria ser o padeiro roubado, pois estava mais enfurecido que todos ali.

Naya pendeu o pescoço para o lado, sorrindo. Aquelas palavras soavam como desafios. Os comerciantes não deveriam ter a menor ideia do tamanho do vulcão que estavam tentando provocar a erupção. Com certeza o corpo feminino e pequeno de Naya não deveriam inflamar nenhum receio nos adversários. Mas quando a princesa os desafiou, chamando-os com o dedo como se fossem cães, os quatro partiram para o combate.

Com a mesma mão que estava apontada para os inimigos, a maga espalmou-a para frente, fazendo-os hesitar. Todos os seis ali parados, esperando para ver o que aconteceria. Nesse instante, os oponentes já deveriam ter sido derrubados por um raio de energia arcana forte o suficiente para atordoa-los por tempo o suficiente para fugirem. “O que está acontecendo?”. Nada. Absolutamente nada acontecera. “...eu bloqueei suas habilidades...”. Memórias. Calafrios. Naya esqueceu que estava sem poder.

Ela nunca havia ficado tão nervosa em toda sua vida. Conseguia sentir o sangue latejando no peito e o suor descendo o pescoço. Acabara de provocar quatro homens e não tinha sequer poder para lutar contra o mais fraco. Pensou em correr, mas nem suas pernas, que estavam paralisadas, nem sua consciência, que a mandava ficar e proteger o rapaz, a deixavam. “Pense, pense, pense, pense... Algum feitiço simples, qualquer coisa”.

Gargalhadas. Os humanos riam desesperadamente da garota ao mesmo tempo que o ogro a empurrava para longe, capturando o fugitivo entre os braços amarelados e musculosos. Segurando firme, o troll espancava-o, esmurrando seu rosto e sua barriga, descontando o preço de tudo o que ele já havia roubado de sua padaria. A fada, humilhada, não sabia se estava furiosa ou ressentida. Ouvia o pobre rapaz agonizar nas mãos daqueles brutamontes e estava impotente para ajudar. Mesmo que ainda tivesse algum poder para isso, não o fizera a tempo.

– Parem, por favor! – Implorou, engolindo o choro.

Eles a ignoraram. Mesmo apelando várias vezes por misericórdia, ela não recebia nenhuma resposta. Apenas via mais outro soco atingir o sujeito já desmaiado.

Esmurrando o solo, Naya suspirou, deixando uma única lágrima escapar de seus olhos. Vê-la adentrar o chão a fez perceber como não era ninguém sem magia: falhara por ser orgulhosa demais. Poderia não ser questão de poder, mas a prepotência havia sido uma rachadura muito mais grave em sua armadura. Talvez tivesse sido arrogante e estúpida ao achar que poderia vencer.

A fada se recusava. A magia deveria ser parte sua, não o contrário. Naya Elvellon resumia-se apenas nisso? “Não!”. Mirando para a terra abaixo, já sem esperanças, ela percebeu. Não havia acabado. “É isso!”.

Cravando os dedos no chão, a maga sussurrou um feitiço com a voz raivosa e soluçante. Ao término, o efeito de sua súplica aos espíritos da terra foi imediato. Como se o solo estivesse completamente encharcado por suas lágrimas, a superfície rígida cedeu, imergindo em lama. Mais uma vez, antes mesmo que os inimigos percebessem que estavam atolados no chão, a fada apelou e, logo, as gramíneas e folhas caídas das árvores próximas se uniram num vendaval para prender os homens. Numa orquestra de vento, os vegetais obedeceram a súplica da feiticeira, atordoando ainda mais seus alvos. “É agora ou nunca!”.

O piso da clareira se desfazia sobre os pés dos que estavam lá presentes e Naya aproveitou sua maestria sobre o feitiço para evitar que fosse confundida com um alvo. Correu para segurar o rapaz que já estava inconsciente e ensanguentado. Não havia tempo para mais nada, apenas fugir.

Os comerciantes tentavam se livrar da infinidade de plantas que prendiam seus braços, enquanto a lama os atolava até a cintura. Não representavam mais uma ameaça, pelo menos não pelos próximos segundos de duração da magia. Tempo mais que suficiente para desaparecer dali.

– Nós vamos te pegar sua p... – Berrou o troll, instantaneamente silenciado pelos vegetais comandados com um estalar de dedos.

Alguns hematomas, um olho e o lábio inferior inchados, o tornozelo torcido e com certeza algumas costelas quebradas. Tudo isso em alguns instantes. Naya sequer sabia o nome dele e lá estavam. Depois de correr por alguns minutos para o interior do bosque da entrada, os dois se encontravam na margem de um riacho, longe o suficiente para que não fossem encontrados.

Se ele fosse realmente um ladrão, não seria muito inteligente leva-lo para um posto de saúde: com certeza seria preso, provavelmente os dois. A fada ainda não conseguia pensar no porquê de tê-lo ajudado, mas desconfiava de ter agido assim devido os ensinamentos que obtivera em sua vida. “Ter compaixão pelo próximo é uma virtude de todo bom governante. Compartilhe esse sentimento com qualquer um, seja ele seu súdito ou não”. Titânia dizia, a filha praticava. Talvez não nas circunstâncias que ela aprovaria, mas Naya achava que já poderia considerar um começo.

Mesmo que não tivesse agido corretamente, Naya se sentia orgulhosa. Havia conseguido provar para si mesma que não era apenas sua magia. Naquele cenário, potência mágica resolveria o problema, mas inteligência também.

Com certeza nesse quesito, ainda mais sob pressão, Adna se sobressaía. Porém, comparar intelecto com uma nerd equivalia a pedir para ficar triste. Não importavam comparações. Êxitos, sim. Ainda mais quando essas conquistas coincidiam com seus fundamentos.

Rasgando a borda de seu vestido, a fada o encharcou e limpou o rosto do humano. Ele até poderia ter sido belo em outra época, mas seu estado atual não contribuía em nada. Os cortes na boca e as marcas roxas por todo o corpo denunciavam o tempo de sua vida nas ruas, outras brigas e furtos. O cabelo negro desarrumado parecia tão normal quanto o de um humano qualquer, raça desacostumada com a preservação corpórea. Não por menos: viviam tão pouco que a tarefa se tornava dispensável.

Tocando o rosto dele levemente, o sangue endurecido cedia, revelando mais fielmente a aparência da vítima que não parecia ter mais que vinte anos.

Com a proximidade do contado, Naya encantava suas mãos para que aliviassem a dor que ele sentia, acalmando o corpo e a alma. Assim, poderia retirar as vestes grossas que cobriam o corpo dele sem que parecesse uma sessão de tortura. Menos aqueles trapos, sua magia poderia atingir todo o homem com mais intensidade.

Uma hora havia se passado, ele finalmente acordara. Naya já havia terminado sua “sessão” há vários minutos, sentando-se à beira do lago, criando pequenos bailes na água com a dança de seus dedos. Não sabia se deveria ir embora ou esperar, optando pela segunda opção. Pensava apenas na remota possibilidade dos comerciantes o acharem sozinho e terminarem o que haviam começado.

Ele gemera de dor tentando se levantar, chamando a atenção da garota, fazendo-a correr para impedi-lo:

– Calma. Você não está em condições de...

– Me solte! – Ameaçou ele, erguendo o punho, baixando-o em seguida ao perceber que era a garota de pouco tempo atrás. – Ah, é você... Me desculpe, eu devo ter te assustado.

– Eu não te culpo. – Disse Naya, recuperando-se do susto. – Você está se sentindo melhor?

– Já estive pior. – Respondeu ríspido, tocando o abdômen meio a caretas que sugeriam que os feitiços que ela aplicara estavam com o efeito franzino. Levantando-se para sentar com a ajuda da fada, ele se apoiou em seus próprios braços, encarando-a, exibindo olhos castanhos quase negros. – A propósito, o que você quer mesmo?

Revirando os olhos encontrando os dele novamente, ela retrucou ofendida:

– Eu acho que um agradecimento seria um bom começo.

– Oh, me desculpe pela minha falta de modos. Eu acho que viver nas ruas tira isso da gente, não? – Ironizou ele, com o mesmo sorriso de antes. – Senhor Arguto, ao seu dispor.

Naya olhou desacreditada. Esse não deveria ser o nome dele. Com certeza não. Provavelmente algum apelido de rua. Um sinônimo para sagaz: encaixava-se perfeitamente com o rosto malandro que ele possuía.

– Então você é um mendigo?

– Mendigo não! Isso é um insulto. Gatuno. No máximo, indigente. Algum problema? – Perguntou, em tom desafiante, ciente por sua aparência bem cuidada de que ela deveria ser no mínimo da classe média-alta.

– Não. Apenas lembrei do pão que você tinha... pegado.

O pão. Ao falar dele, Arguto levou a mão até o estômago. Recordou a fome que estava sentindo até antes de ficar desacordado. Agora ela se somava a dor da surra. Já havia passado um dia inteiro sem comer, se não roubasse algo logo, ficaria fraco para fugir depois. Tudo teria dado certo, caso não tivesse caído sobre a garota a sua frente e torcido o tornozelo.

Ele olhou para ela, depois para seu casaco. O pão não estava mais lá. O troll deveria tê-lo tomado de volta, mesmo que fosse para jogar no lixo depois. Sentia-se agora ainda mais fraco, de todo o caminho que havia corrido para tropeçar no final. Mais ainda ao sentir o cheiro dos bolinhos que surgiam a sua frente...

– Você é mesmo uma maga! – Gritou ele, arregalando os olhos para ter certeza de que aquilo não era uma miragem.

– Pode pegar. – Ofereceu um, sorrindo, sabendo não precisaria falar duas vezes.

Conjurando uma mesa de bolinhos, mesmo sem muito recheio, a garota sabia que não haveria problemas em relação a isso para saciá-lo.

Ver o rapaz devorar com toda aquela voracidade um a um oito dos razoavelmente grandes bolinhos invocados, fez ela perceber o quanto poderia fazer com tão pouco. Podia provar a si mesma que a fada aqui presente valia mais que apenas sua magia régia. Um feitiço pífio e imperfeito como esse se mostrava suficiente para atender as necessidades de Arguto.

Os desejos humanos eram fáceis de serem saciados. A fome deles por comida se comparava ao dos feéricos por conhecimento.

Os dois conversaram bobagens durante a refeição. Uma, agressiva, o outro, mais grosso impossível. Se entendiam numa balança inconstante e sarcástica, mas agradável para os dois.

Naya captava bem aquele garoto. Ele não tinha nada, mas detinha essa palavra perfeita. Não em seu melhor significado, mas a um nível que gerava outro vocábulo que ela sempre quis possuir. Liberdade. Coisas como responsabilidades e deveres não o impediam. Ele poderia satisfazer muitos de seus desejos com pouco em mãos, quando comparado com alguém repleto de recursos e privações.

Um pouco de inveja, talvez. Arguto vivia dia após dia preso na mais pura liberdade. Uma aventura constante que transformava a vida num castelo em algo chato. Mesmo que fosse da natureza feérica gostar da “suavidade”, a juventude clamava por descobrimentos. Viver com intensidade e ter histórias para contar e cicatrizes como prova. Viver uma segunda palavra perfeita. Liberdade.

– Muito obrigado, garota. Eu acho que você fez mais por mim hoje do que eu vou poder retribuir. Fico te devendo uma.

– Você me fez refletir, isso já é o suficiente para mim. Mas eu irei cobrar, um dia talvez. Pode esperar!

– Eu vou. – Murmurou ele, deitando-se novamente, sonolento e cansado. Fazia anos que não apanhava tanto. Ou comia até não aguentar mais. Precisaria de algum tempo para poder se mover, mas logo estaria bem. Logo voltaria para quem era sua “casa”. – Até lá, tenho muito trabalho pela frente. Uma irmã para alimentar e uma cidade para conquistar.

Percebendo que ele voltaria a dormir, a fada se levantou, pronta para ir. Naya enxergou-o diferente dessa vez. Passou a admirar o que ele fazia. Não o ato de roubar, mas sua finalidade. Chegava a ser difícil para ela pensar em como seria a vida por trás desse corpo repleto de cicatrizes. Uma vida cheia de espinhos e poucas recompensas. Poderia reclamar do que não tinha em Valerian, mas ver Arguto a lembrou de que haviam ele e outros milhões de pessoas em estado muito pior. Não apenas privados de abundância, mas de oportunidades.

O posto de princesa não era exatamente o que Naya chamava de vida perfeita. Mas seria estupidez comparar com a situação de alguém que precisa que agir fora da lei para poder viver mais um dia.

Quando ela já estava a alguns passos de distância, ouviu a voz fraca dele chamando sua atenção:

– Hey... É Tales. Tales Alec.

Espelhando sorrisos, a fada se aproximou do humano. Inclinando-se até próximo de seu rosto, penetrando fundo em seus olhos, deixou sua longa cabeleira cair sobre si.

– Naya Elvellon. – Sussurrou, tocando a testa de Alec com a ponta do indicador, fazendo-o adormecer.

Uma rica cesta de bolinhos e biscoitos era tudo o que podia dispor a ele e sua irmã, além de seu nome. Nada mais. Não havia itens de valor consigo para deixar e poder tirá-lo dessa vida de crimes por algum tempo.

Ela foi embora, voltando para a trilha da cidade ainda com a felicidade estampada no rosto. “Jantem bem”.


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