Naya: Crônicas de Atlas escrita por Antonio Filho


Capítulo 10
Capítulo VI: Talentos parte 2




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Ariel, acostumado a acordar com o sol, despertou primeiro que Naya. Após tomar um banho de água fria para despertar o corpo, o elfo vasculhou as estantes da cozinha em busca de algo para preparar o café da manhã. Vazias. Havia esquecido que há três dias a reunião do sindicato dos alquimistas havia sido em sua casa. Os convidados haviam devorado todo o estoque sem a menor cerimônia. “Anões e gnomos são sempre uns mortos de fome...”.

Decidido a ir num mercado próximo para comprar produtos para aprontar um bom café da manhã, Ariel planejava deixar uma boa impressão de Lunara na memória da visitante.

Trajes simples, despreocupado com o frio da matina. Ele foi até o grande Mercado Camerino, um ótimo ponto de vendas. Mesmo tão cedo, já estava cheio de comerciantes preparando suas barracas naquela praça do Bairro das Camélias, prontos para atender a demanda alucinante do festival. Percorrendo o caminho rotineiro que fazia todas as semanas, entre uma barraca e outra cumprimentava um conhecido, o elfo foi até a tenda de uma velha amiga de seu pai:

‒ Oi tia Lúcia! Por acaso a senhora teria isso aqui? – Perguntou esperançoso, mostrando uma lista com o que queria, fazendo a elfa idosa levar um susto com a quantidade enorme de coisas.

‒ Nossa! Você vai cozinhar pra rainha garoto?!

Ariel riu:

‒ É só uma amiga, Naya.

‒ Pela deusa, garoto. Não tenho tudo isso aqui. Vou pegar essas massas e doces com o Lavo.

Vibrante, com toda sua jovialidade, Ariel contava tudo o que havia acontecido no dia anterior, enquanto a senhora apenas ouvia, esboçando um sorriso sereno no rosto enrugado, mas completamente lúcido.

‒ Essa Naya, é alguém... Especial? – Perguntou ela, enquanto procurava entre galpões e estantes de sua barraca o que ele havia pedido.

Percebendo o tom de Lúcia, Ariel corou, respondendo nervoso:

‒ Não, não! Ela é uma amiga.

A comerciante não respondeu, apenas empacotou o pedido enquanto lembrava-se de sua juventude. As histórias contadas por seus ancestrais para ela e, agora eram transmitidas para seus filhos e netos. Tudo isso a fim de manter viva a história daqueles que vieram antes dos atuais.

‒ Eu entendo. Amizades. Mantenha as suas com todas as forças, filho.

Como as coisas aconteciam simples atualmente, em tempos de paz. As crianças podiam viver suas vidas sem medo... Reconfortava pensar que a inocência dessa juventude não havia sido roubada como as das pessoas durante a 1ª Guerra Mundial 2000 anos atrás. “Vimos a ordem do mundo esfacelar-se como um barco de papel na chuva”.

As raças de vida longa que ainda podiam presenciar os tempos atuais e contar as histórias da tragédia o faziam. Uns para inspirar o heroísmo no coração dos jovens, outros para transmitir o conhecimento de que a guerra não tem sequer uma gota do romantismo das lendas. Os embates e conflagrações representavam apenas dor. Perder pessoas amadas e ser esquecido nas entrelinhas de Atlas.

Entregando o pacote para o elfo, ele procurava o dinheiro nos bolsos para pagar, quando a senhora balançou a cabeça lentamente em negativa:

‒ É por conta da casa meu jovem, vá pra casa, filho. – Disse em ultimato, sorrindo.

‒ O-Obrigado tia Lúcia!

Ariel foi, sem entender, carregando a montanha de suprimentos, grato pela gentileza da senhora. Com certeza retribuiria depois.

Chegando em casa, andando sorrateiramente, viu que Naya ainda estava dormindo no sofá. Ela havia recusado o empréstimo de sua cama ou da seu pai. Precisou negar algumas... dezenas de vezes até convencê-lo. “Ao menos ela é pequena o suficiente para caber toda nesse sofázinho...”.

Aliviado por chegar antes do despertar da fada, ele começou a preparar panquecas cobertas com caudas de mel importadas de Metrópolis. Fez também uma jarra de suco frutas vermelhas, espumando quase um terço dos copos. Enquanto arrumava a mesa, viu a figura da fada surgindo. Desarrumada, coberta por um lençol do anfitrião, Ariel ria com o desmantelo da garota a e personificação da preguiça que via diante de si, sonolenta e descabelada.

‒ Que cheiro bom é esse? – Ela perguntava coçando os olhos, bocejando, mas claramente se deliciando com o aroma.

O elfo ficou feliz com o comentário e mostrou o que estava preparando num grande tour visual. Pães frescos, cupcakes, frutas e queijo. A mesa, deslumbrante e multicolorida, dava impressão de ser um banquete para pelo menos dez pessoas. Talvez realmente tivesse comida suficiente para alimentar uma ou duas família. Naya arqueou as sobrancelhas, surpresa:

‒ Em Valerian é raro achar um homem disposto a cozinhar, ainda mais que faça algo tão perfeito sem nem ao menos pedir. É bom saber que aqui é diferente. Vou me arrumar para comermos, esse cheiro me deixou faminta!

Ela voltou poucos minutos depois, agora bem trajada num simples vestido rosa conjurado. Ambos se sentaram à mesa. Naya comia e experimentava todas as coberturas, fazendo também as combinações que o elfo aconselhava. A cada mordida expressava escandalosamente o quanto estava gostando. Sentia como se pequenos pedaços da primavera derretessem em sua boca. Ele não apenas cozinhava, mas o fazia com esplendidamente bem.

‒ Então, essa Competição de Dança é legal?

‒ Com certeza! É a abertura do festival.

‒ Ah, mas ele não já começou?

‒ Sim, mas não. Quero dizer, oficialmente o início é com a competição, entende? Coisas ritualísticas. ‒ Acrescentou ele, mimicando no ar, insólito, tentando explicar da melhor maneira possível.

‒ Certo. Você vai ficar para assistir? Acho que minha prima vai querer ficar um pouco lá. ‒ Indagou, com a paixão pelas artes que Adna tinha. A capacidade dela de suportar qualquer coisa irritava Naya, no fundo. Ela ria disso, mentalmente.

‒ Na verdade, eu ia participar. Mas minha parceira quebrou a perna num acidente de trânsito há uma semana e mesmo com os cuidados de um sacerdote ainda vai demorar alguns dias para ela melhorar...

Enquanto falava, o modo como Ariel entristecia a cada palavra dita deixou Naya desolada. Seu tom decrescia numa curva acentuada de tristeza. Era angustiante ver o rapaz que esbanjava felicidade com aquele sorriso tão iluminado ficar deprimido por algo banal como isso.

‒ Sabe, pode ser que eu não seja a melhor dançarina do mundo, mas se quiser posso te acompanhar no campeonato.

‒ Sério?! Seria ótimo! Você não tem ideia de quantas horas de ensaio você acabou de salvar! O que você acha de depois de comer eu te mostrar alguns passos da dança que eu estava treinando com a Jasmine?

‒ Muito bem!

Naya ficou feliz ao ver o entusiasmo do amigo renascer e continuou a desfrutar daquela refeição espetacular até não aguentar mais.

Ela frequentava aulas de dança há anos em Valerian e, modéstia parte, dançava excepcionalmente. Instruída por professores renomados, especialistas em diversos estilos musicais nacionais e internacionais, a arte do movimento era uma sabedoria que recepcionara bem.

Dança não a seduzia como a magia, mas com certeza relaxava muito mais que as insuportáveis aulas de etiqueta. E, a família Elvellon sempre foi muito conhecida por sua proficiência nas artes. Por isso, seus integrantes mais jovens aprendiam desde cedo a manter esse legado milenar. Finalmente esse “talento” teria alguma utilidade que não fosse para dançar em bailes ou nas tediosas festas da realeza.

A casa não era muito grande. Ariel teve que afastar a mobília da sala de estar para terem um pouco mais de espaço para se movimentarem. Colocando um disco no aparelho de som, uma melodia suave começou a ressoar.

No início, quando deram as mãos, completamente desajeitados, ambos ficaram um pouco constrangidos: nunca haviam ficado tão próximos um do outro por tanto tempo. Na verdade, nenhum dos dois conseguia se lembrar quanto tempo fazia que não ficavam próximos de alguém dessa forma.

Um passo para lá, outro para cá. Ariel sentia a fragrância sutil e delicada que emanava do corpo da fada, parecia um perfume natural. Naya, mais baixa, mirava seus olhos nos do elfo, e às vezes os voltava para baixo a fim de acompanhar o ritmo de seus passos, tornando a dança cada vez mais harmônica com o passar do tempo. O recato inicial havia passado com as música. Ambos se sentiam confortáveis naquele momento, sorrindo involuntariamente. A fada o espelhava, indo e vindo, para lá, para cá.

‒ Você aprende muito rápido! – Disse Ariel, realmente surpreendido, após cerca de uma hora de treino.

‒ Com um professor como você fica fácil.

Os dois estavam tão perto um do outro que Naya sentia a respiração dele, quente e compassada. Por um momento, pensamentos bobos passaram pela sua cabeça: o elfo tinha alguma intenção? Mas, da mesma velocidade que essa ideia veio, ela se foi. O sino da loja tocara. Alguém estava chamando.

‒ E... Eu tenho que atender...

Ariel engoliu a seco antes de se virar em direção à porta com certa velocidade, abandonando-a na sala. Naya não sabia o que fazer. Decidiu esperar sentada numa das poltronas. Pensou em descer, mas seria muito rude caso fosse uma visita particular. Mudou a posição das pernas, dos braços. Invocou Floquinho para não ficar sozinha. Esperou, acariciando o pescoço do bichinho em seu colo, que preguiçoso, dormia.

Pouco tempo depois, ouviu sem nitidez alguma devido à música ainda tocando, os passos do elfo a subir. As escadarias faziam um barulho característico de madeira envelhecida reconhecível em qualquer lugar do mundo. Ao ver a porta abrindo, surpreendeu-se, mas não deixou esse sentimento transparecer. Ariel havia voltado acompanhado de outro elfo, muito diferente dele por sinal.

‒ Naya, esse é Adan Dirwen, meu melhor amigo. Ele é responsável por uma loja de ferraria aqui no bairro.

‒ Olá!

O elfo visitante havia se aproximado lentamente, ou pelo menos foi o que pareceu. Seu andar era suave e o olhar estranhamente penetrante, fazendo Naya se sentir mentalmente aturdida naquele momento. No tempo que lhe coube para observar o rapaz, a fada percebeu que a afirmação de Ariel fazia sentido. Seu corpo, forte como o de quem é acostumado ao trabalho braçal, tinha a pele ligeiramente queimada. Provavelmente pelo calor das forjas e constante força física exigida nas ferrarias. Diferente de Ariel, ele deixava uma rala barba em seu rosto, aumentando sua idade aparente em alguns anos, não fosse seu estilo de roupa. Mais leve e praieiro, como o de quem não tem vergonha de exibir o corpo. Ele não deveria ter e, com certeza, não tinha motivos para isso.

‒ Prazer em conhecê-la. – Falou Adan, com a voz rouca de um verdadeiro cavalheiro, enquanto beijava a palma da mão da fada, fazendo-a se sentir um pouco desconcertada.

‒ Ele também vai participar do campeonato. Cuidado então! ‒ Ariel ria, alertando Naya ‒ Aliás, foi o vencedor do ano passado. Pode não parecer à primeira vista, mas ele é um artista incrível! – Adan gargalhava, negando com a cabeça.

‒ Então Naya... Conte-me sobre você.

Os três conversaram por um bom tempo. Embora Adan fosse muito amistoso em suas palavras, Naya não sentiu muita empatia pelo rapaz, principalmente por sua expressão quando a olhava. Era uma simples repulsa que sua mente usava como proteção sem motivos aparentes, como o corpo fazia com anticorpos quando infectado por uma doença silenciosa que, mesmo sem ciência da injúria, os sintomas apareciam. Um sorriso que ela julgava ser “levemente dissimulado” surgia no rosto dele sempre que desviava o olhar em sua direção, mas em nenhum momento encarava Ariel dessa maneira, fazendo-a perguntar se estava fazendo algo errado, ou se estava suja talvez.

Os olhos verdes do rapaz faziam com que ela tivesse a sensação de estar perdida numa floresta escura caso os encarasse por mais de alguns segundos. Beleza não os faltava. Nem no olhar, muito menos no corpo escultural. Talvez fosse tudo imaginação sua, podia não haver nada de errado com o ele, como acontecera com Anthor. Acreditou que ele fosse apenas mais um nobre esnobe e tedioso, mas ele provara ser um ótimo comediante. Mas de uma coisa ela estava certa: não havia sido uma boa primeira impressão.

Algum tempo depois, Ariel sugeriu:

‒ Que tal depois do almoço irmos logo para o Anfiteatro? Podemos ficar nos camarins praticando e, além disso, o trânsito daqui a algumas horas vai estar terrível.

‒ Boa ideia, Ari. Eu já havia combinado de encontrar a Alice lá uma hora antes do início da competição. Posso aproveitar para resolver alguns problemas.


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