De Volta Ao País Das Maravilhas escrita por Kremer
A estrada roxa, Mary Ann percebeu, era muito inconveniente: às vezes, fazia-os espremerem-se por uma passagem muito estreita, e às vezes alargava-se tanto que quase os fazia perder o rumo, pois onde quer que olhassem, tudo era formado por pedras roxas, e seguir em frente ficava cada vez mais difícil; compartilhou sua opinião com os seus novos amigos, o Cavaleiro negou com a cabeça, porém disse:
- Depende do ângulo. Por exemplo, se olhar de cima, verá que a estrada é totalmente estreita. Se observar do leste, verá que a estrada alarga-se um pouco no sul, e se olhar do oeste, ela tem muitas ondulações. Porém, como estamos no meio dos pontos de observação, a vemos de todos os ângulos, sem nenhum específico, o que torna difícil determinar como ela realmente é.
O pônei concordou com a cabeça, mas comentou com total discordância:
- Ora, a estrada nunca muda, quem mudou fomos nós, é lógico.
Mary Ann não achou nada lógico, nem de longe compreendia a bipolaridade da estrada – e muito menos dos companheiros de viagem. Porém, para seu alívio, a forma de uma casa começou a aparecer, e de lá ouvia-se vozes cantando, gritando, assovios, um tremendo alvoroço.
Aquela deve ser a casa do Chapeleiro, pensou. Não sabia exatamente como tinha tanta certeza, já que nunca vira o Chapeleiro na vida, mas uma estranha familiaridade a tocou.
Sob uma árvore na frente da casa, havia uma grande mesa posta, com muitos, mas muitos bules de chá, de todas as formas e cores. A mesa era muito grande, poderia caber, tranquilamente, vinte pessoas. Portanto, Mary Ann não compreendeu porque as pessoas de lá amontoavam-se no canto, nem porque um deles, que parecia ser o Chapeleiro, correu em disparada em sua direção, passando por cima da mesa e atropelando xícaras – quase pisando num caxinguelê que repousava -, e gritando:
- Alice! Alice! Não há lugar. Está lotado.
- Meu nome é Mary Ann, e eu acho que há muito, mas muito lugar. - Defendeu Mary Ann, enquanto o pônei e o cavaleiro acomodavam-se nas cadeiras à mesa. Mary Ann decidiu seguir o exemplo, e sentou-se ao lado do pônei. Todos ali pareciam a ignorar, exceto o Chapeleiro, que foi se sentar resmungando sobre “a falta de educação nos dias atuais que faz com que as pessoas sentem-se sem serem convidadas”.
- Alice, conte-nos uma charada. - Disse a Lebre de Março, apoiando a cabeça peluda em suas patinhas.
- Charada? Ora... sinto muito, mas creio não conhecer nenhuma. - Mary Ann não sabia porque estava sendo chamada de Alice. Se pensasse um pouco a fundo sobre isto, poderia lembrar-se vagamente de um certo caderno azul, de um redemoinho de letras, e então, de mais nada.
- E você já descobriu por que um corvo se parece com uma escrivaninha? - Perguntou de repente o Chapeleiro, que colocava torrões de açúcar em seu chá.
- Parece? Bem, não tive tempo para pensar a respeito... - começou Mary Ann, muito confusa. E então, o Dodô surgiu na mesa, correndo em direção ao chapeleiro aos solavancos e sussurrou ao seu ouvido. O que foi sussurrado Mary Ann não soube dizer, porém, o que quer que tenha sido, provocou tal impacto que o Chapeleiro cuspiu todo seu chá sobre a mesa.
- Você não pode dizer esta palavra aqui, Alice. - Disse o Chapeleiro, em tom de repreensão.
- Qual palavra? - Perguntou a garota, que já havia se acostumado a ser chamada assim.
- ... Tempo! - murmurou o Chapeleiro.
- Por que não se pode dizer "tempo"? - Perguntou, confusa.
- É terminantemente proibido dizer TEMPO nesta mesa de chá. - Grasnou o Chapeleiro, com o rosto fervendo de fúria.
- Mas você acabou de dizer. Duas vezes. - Defendeu Mary Ann.
- Quem disse? - o Chapeleiro recomeçou a beber o chá, como se nada tivesse acontecido.
- Você disse! - esganiçou a menina, frustrada.
- Disse o que? - Perguntou o Chapeleiro, de uma forma irritantemente inocente.
- Disse... disse... ora, que coisa! - Mary Ann afundou em sua cadeira, cruzando os braços sobre o peito, sentindo-se frustrada como o quê.
- Menina tola, não se recorda de que o Tempo está zangado conosco? Por isso é sempre hora do chá. - Falou a Lebre, em tom melancólico. Mary Ann resmungou, rabugenta, em sua cadeira, e recusou-se a fazer parte de mais alguma conversa.
- Creio que algo poderia ser feito a este respeito, meus caros. - Disse o Cavaleiro, que nada tinha feito aquele tempo todo senão esquivar-se dos torrões de açúcar que eram arremessados de um bule de chá, como um canhão. Ele somente falou porque havia conseguido enfiar uma rolha na boca do bule, o que cessou os tiros.
- E qual seria sua sugestão, nobre companheiro? - Perguntou muito solenemente o Dodô, empoleirado no braço de sua cadeira.
- Bem, nós aqui estamos atrás de um tesouro, e nossa última pista nos trouxe até sua... sua... vossa... adorável mesa de chá. - Disse o Pônei, que trazia um ar muito sério em seu semblante. - Se falarmos com o senhor Tempo, ele concordará em fazer as pazes com os senhores. Precisamos dos senhores para continuar nossa busca.
- Mas para falar com o tempo, você precisará... - começou o Dodô, que foi interrompido quando uma vozinha fez-se ouvir, dizendo: Ai, ai! É tarde, é tão tarde! Estou atrasado!
- De um coelho de colete e de relógio, é, sim, isto. - Conclui o Dodô, pois era exatamente o que havia atravessado o jardim e vinha se juntar a eles: um coelho de colete e de relógio de bolso.
- Você não está atrasado, é este relógio que está. - Disse o Chapeleiro, tomando o relógio do pobre Coelho Branco. - Está atrasado dois dias!
- Ó, não, dois dias? - Perguntou o Coelho, desolado.
- Ah, mas não se preocupe, há conserto! Lebre, me passe a manteiga, por favor. - Disse o Chapeleiro. Mary Ann, subitamente esquecendo-se de que não iria dizer uma palavra, alarmou-se e disse:
- Não! A manteiga não fará bem para o maquinismo, da última vez não fez. Tome, pegue a geleia, e não use a faca de pão. - Disse a menina, passando a geleia para o Chapeleiro. Aquilo simplesmente saiu de sua boca, não havia nem sido pensado, mas ainda assim parecia ser a coisa certa a se dizer.
- Pelos céus, tem razão. Ando tão desatento! Obrigado, menina, agora, vamos ver...
O Chapeleiro pôs-se a trabalhar no relógio, usando a geleia de uva e uma faca limpa, e até uma gota de limão. A Lebre olhou para aquilo, e resmungou algo sobre a manteiga ser da melhor qualidade. Por fim, o Chapeleiro terminou.
- Está novo em folha! - o Coelho pegou seu relógio e o analisou bem, desconfiado de que a qualquer momento as molas e as rodas iriam saltar dele. Porém, nada aconteceu.
Na verdade, muita coisa aconteceu. Pois o relógio marcou o dia certo, e subitamente não era mais a hora do chá.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
Olá meus queridos, como estão? Desculpem a demora, sério mesmo, me sinto péssima por ter demorado tanto. Mas, a inspiração finalmente retornou - e como o Chapeleiro neste capítulo, fiz as pazes com o tempo. Até a próxima, espero que tenham gostado!