Premonição 6: Inferno escrita por Lerd


Capítulo 9
Estigma


Notas iniciais do capítulo

Capítulo novo postado! Demorou, eu sei, mas aqui está. Com sorte o próximo não demorará, mas não posso prometer nada... Esse capítulo está polêmico, mas eu explicarei as coisas nas notas finais, ok? Espero que gostem! ^^



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            Babe entrou na sala do tatuador como se estivesse entrando em sua própria casa. Sugar estava devidamente escondido atrás de seus cabelos cor de cobre. O homem inicialmente estranhou a atitude, mas então a garota retirou sua jaqueta de couro e ficou apenas com o corpete que deixava a mostra todas as suas tatuagens do busto, ombro e braços.

            — Mais uma tattoo, gatinha? — O homem falou. Ele então reparou no rosto dela e não conseguiu esconder a surpresa. Babe estava com vergões em toda a sua face, e falava tapando a boca, para que ele não percebesse que alguns de seus dentes estavam quebrados. Droga, disfarça Babe.

            A ruiva riu.

            — Ainda bem que você fala inglês. Eu não estava com paciência pra falar espanhol hoje. — E após ver que ele tinha aberto um sorriso: — Sim, outra tattoo.

            O tatuador era bastante jovem, e atraente à sua maneira. Era careca e tinha tatuagens por cada centímetro do seu corpo, e isso não era exagero. Havia desenhos inclusive em seu rosto: dois acima das sobrancelhas e mais dois nas maçãs do rosto. Babe leu o nome no crachá dele: Sean. Apesar de todas as características positivas, o tal Sean não parecia lá muito saudável. Seu olhar vagava por todos os lados, inquieto, e ele estava mais pálido do que deveria. Além disso, a garota notou que havia algum sangue seco em seu nariz, sinal de que ele havia sangrado pelas narinas há pouco tempo.

            — Diga-me... Sean... Em quantas sessões você conseguiria desenhar isto? — A ruiva então retirou um papel dobrado de seu bolso. Era uma fotografia de quando Zane tinha quatro anos. Ela mesma tirara, e orgulhava-se de seu trabalho.

            O tal Sean verificou a foto por vários segundos, e então disse:

            — Poucas. Se você quiser um desenho mais simples eu acho que consigo fazer tudo hoje.

            — Simples? Perfeito. Eu não tenho muito tempo, sabe?

            — Precisa voltar para casa?

            — Quase isso. — A garota falou, liberando um sorriso irônico e melancólico.

            O rapaz então começou a mexer em seus equipamentos, e o silêncio tomou conta do ambiente. Ao fundo ouvia-se uma música qualquer, mas Babe não estava prestando atenção. Ela tremia. De medo, de frio. O estúdio era gelado, e ficar apenas de corpete era desconfortável. Suas pernas estavam protegidas, pelo menos: ela trocara os shorts por um par de calças de vinil vermelhas. O motivo, claro, fora a quantidade imensurável de sangue que ele acumulara. Dela, de Quentin.

            E então Sugar surgiu de trás de seus cabelos. O tal Sean deu um pulo para o lado, de susto, e quase derrubou os equipamentos.

            — Oh, desculpa! — Babe falou. — Esse é o meu sagui de estimação, o Sugar. Tem problema se ele ficar aqui?

            Sean estava bastante envergonhado pelo susto que levara, e falou, meio gaguejando:

            — N-Não. Desde q-que eu n-não tenha que fazer uma tattoo n-nele.

            Babe concordou com um aceno. Mais calma, começou a prestar atenção na música de fundo. Ela achava que conhecia aquele ritmo e aquela letra, mas não tinha certeza.

[...]

If you like Piña Colada

And getting caught in the rain

If you're not into yoga

If you have half a brain

If you'd like making love at midnight

In the dunes on the Cape

Then I'm the love that you've looked for

Write to me and escape

[...]

            — Podemos começar? — Sean perguntou.

            Babe respondeu prontamente:

            — Claro.

            E deitou-se na maca, desejando que o zumbido da máquina pudesse afastar quaisquer pensamentos negativos da sua cabeça. Acima dela havia diversas barras de ferro pontudas, dando a impressão de que a sala era uma jaula e que podia fechar-se, esmagando-a. Bela inspiração. Realmente bastante depressivo. Babe sabia que o pior ainda estava por vir, mas estava disposta a enfrentar tudo de frente, com a cabeça erguida. Como sempre.

x-x-x-x-x

            A casa da oficial Marina era bem atípica para uma mulher solteira com pouco mais de trinta anos. Era grande e ampla, com um enorme jardim e bastante espaço para crianças brincarem. Quem a visse de fora com certeza julgaria que era a casa onde vivia uma família toda, não apenas uma única mulher.

            — Você será instalado no quarto de hóspedes, René. É o último à direita daquele corredor ali. Já você Jill, fica no meu quarto. — Marina disse logo que eles entraram na casa.

            — Não existem outros quartos de hóspedes? Essa casa parece... Enorme. — Jill comentou um pouco receosa.

            A detetive sorriu de canto de rosto, e respondeu:

            — Existem sim. Três quartos de hóspede. Mas eles são exatamente uns ao lado dos outros. E eu não posso correr o risco de ter dois adolescentes menores de idade fazendo sua lua de mel na minha casa. Compreendem?

            Jill corou no mesmo momento, sentindo-se ofendida, e René deixou escapar um risinho nervoso. Marina ignorou ambas as reações e foi até a cozinha. Abriu a geladeira e tirou alguns potes e ingredientes.

            — Como cozinheira eu sou uma ótima policial, então vocês terão de se contentar com alguns sanduíches. Depois, cama. Eu acordo vocês as nove para irmos até o hotel procurar seu outro amigo. Se ele quiser ficar aqui com vocês, ótimo, é bem vindo. Do contrário eu não posso obrigá-lo, ele é maior de idade. Fora isso... Acho que o furacão terá passado em dois dias. Vocês poderão voltar para casa e esquecer todo esse pesadelo.

            René rapidamente sentou-se numa cadeira em frente ao balcão onde Marina preparava o lanche. Apesar de as palavras da detetive serem reconfortantes, ele sabia que sair de Cancun não faria o pesadelo ter fim. Na verdade, iria piorar tudo: ele ainda estaria na lista, e sozinho. Tremeu só de imaginar.

            Jill pediu licença e foi até o banheiro. O ruivo sentiu-se estranho sem ela ali, sozinho com a oficial. Ele precisaria quebrar o gelo se quisesse ter um pouco de paz, um pouco de calma.

            — Eu sinto falta da minha mãe. Do meu pai. Dos meus irmãos. — O rapaz comentou de repente.

            Marina ergueu um olhar, e então voltou a lidar com os sanduíches, dizendo:

            — Eu tenho certeza que sente. Vocês estão aqui há poucos dias, mas muitas coisas ruins aconteceram. É natural que você queira estar com a sua família.

            — É, eu acho que sim... — O ruivo concordou. E continuou: — Eu sou adotado, sabia? Eu e todos os meus irmãos.

            A oficial surpreendeu-se com aquilo.

            — Adotado? Isso é interessante.

            — Por quê?

            — Porque eu também sou. — Marina comentou, com um largo sorriso no rosto. — Meus pais adotivos me pegaram quando eu tinha quatro anos. Aparentemente minha mãe biológica era viciada em craque, e meu pai... Era também meu avô. Mas claro que tudo isso são coisas que eu ouvi da boca das irmãs do convento onde eu fiquei até ser adotada. Pode ser tudo mentira.

            René não sabia direito o que dizer. Arriscou:

            — Você gostaria de ter conhecido a sua mãe biológica? Se pudesse?

            Marina não ergueu o olhar ao responder:

            — Não. Eu geralmente não penso nisso, mas eu acho que não faria diferença. Eu amo a minha mãe adotiva, ela é a única mãe que tive, e ela me ama o suficiente para que eu não pense na mulher que me gerou e me abandonou. — E então olhou nos olhos de René. — E você?

            O rapaz estava pronto para responder, quando sentiu algo estranho. Era a mesma sensação que tivera quando desenhou as pistas das mortes de Aaron, Chrissie e Amanda. Droga. René pegou o primeiro objeto que encontrou, uma faca, e começou a arranhar o balcão de mogno da cozinha de Marina.

            — Ei, para! — A mulher exclamou. Jill entrou no cômodo na mesma hora.

            — Deixa, por favor! — A garota falou. — Eu te explico tudo depois, mas não o impeça. Por favor...

            — Ele está estragando o meu balcão!

            — Por favor! — Jill insistiu.

            René fazia riscos estranhos para ele, mas para as duas mulheres, eram letras. Letras e mais letras. Uma frase. Várias frases.

            A letra de uma música.

            — Piña Colada? Mas o quê...?

            O rapaz abaixou a cabeça e começou a chorar. Eu estou tão exausto...

            — Eu explico tudo. — Jill garantiu. — Acho que a senhorita vai querer se sentar.

x-x-x-x-x

            — Está decidido. Eu vou atrás da Babe. — Melissa disse, tentando não fazer daquilo uma afronta à Pam. Ela sabia a opinião da mulher, mas não podia ficar de braços cruzados.

            Marsellus levantou a mão, pedindo licença para falar. Pam fez um aceno, concordando, e ele disse:

             — Quem é Babe?

            Hank bufou e sentou em um sofá do quarto. Aquela tarefa de ficar explicando a mesma história várias vezes estava se tornando exaustiva. Por favor, que não haja mais ninguém na lista. Eu não aguentaria ter de contar tudo isso de novo.

            — Babe é a próxima da lista. — Pam falou. — A próxima da lista da morte.

            — Ah, a lista! — Marsellus comentou de maneira irônica. — A tão famosa lista da morte...

            Helena tremeu com o comentário do homem, como se tivesse tido um pressentimento ruim.

            — Eu não... Sei... — A mulher começou a falar. — Como? Eu quero dizer... Por quê?

            — Eu te contei, Helena, que a morte precisa aparar as arestas e... — Hank disse, mas foi interrompido:

            — Isso eu entendi. Mas é cruel. É cruel sabermos que nós vamos morrer em breve e não podermos fazer nada.

            Melissa aproximou-se da mulher e disse:

            — Mas nós podemos. Nós podemos deter a lista.

            Hank não aguentou aquele comentário:

            — E como? Eu posso saber? Nós estamos nos reunindo desde o acidente nas ruínas, e até agora nenhuma de vocês falou uma palavra sobre deter a lista. Cada vez que o assunto esteve perto de ser tocado, vocês vinham com um papo de que precisávamos avisar alguém. Agora que todo mundo sabe dessa maldita história, vocês podem, por favor, nos contar como saímos dessa?

            A loira surpreendeu-se com a maneira ríspida com a qual Hank a tratou.

            — Calma aí, cara, ela está tentando ajudar. — Brody comentou, tocando de leve o ombro de Hank. O outro rapaz não gostou do gesto e deu um empurrão no filho de Pam.

            — Ei! — A mãe do rapaz reclamou.

            — Tentando ajudar? — Hank devolveu. — Do jeito que vocês ajudaram a Amanda?

            — Isso não é justo! — Melissa exclamou. — Nós fizemos o que pudemos para ajudá-la. Mas não... Foi possível.

            — Então porque você quer ir atrás dessa Babe se você é tão inútil assim? Não salvou a primeira, o que te faz acreditar que salvará a segunda?

            Brody estava começando a ficar alterado com as coisas que Hank dizia. Era difícil que ele fosse tirado do sério, mas o mágico estava conseguindo.

            — Cara, eu já te disse, fica frio. A Melissa não é nossa inimiga. Ela só está tentando nos ajudar.

            Hank abaixou a cabeça e então começou a rir de maneira diabólica. Disse:

            — Sabe o que eu acho? — E diante do silêncio que se instalou no quarto, ele continuou: — Eu acho que você é a culpada. É. Você, Melissa. Pelo que eu entendi você também sobreviveu a uma porcaria dessas. Tô certo? E se... Prestem bem atenção no que vou dizer... E se... Você for amaldiçoada? É uma boa teoria, diz aí. Aparentemente seu irmão sofreu com isso...

            — Não ouse falar do meu irmão.

            — Tudo bem. — O rapaz se desculpou, de maneira ainda irônica. — Mas aconteceu com ele. E depois aconteceu com os seus amigos. E agora conosco. Me diz: qual a única ligação entre todos esses eventos? Hein?

            Melissa abaixou a cabeça. Ela sabia que nada daquilo era sua culpa, ela sabia sobre a lista, sobre a lógica dela, sobre tudo. Então por que ela sentia o peso do mundo em seus ombros? Ela não olhava para os outros, mas sentia os olhares acusatórios de cada pessoa naquele quarto. Ironicamente a única pessoa que provavelmente não estava a acusando mentalmente, era aquela com a qual ela tinha uma grande divergência de ideais: Pam.

            — Eu não preciso ficar aqui ouvindo essas coisas. Eu vou atrás da Babe. — A loira disse, saindo rapidamente do quarto.

            Brody parecia triste. Sua fúria se abrandara por poucos segundos, quando o discurso de Hank começou a ecoar em sua cabeça. Ele não acreditava naquilo, mas era difícil não pensar na possibilidade de as coisas melhorarem com o afastamento de Melissa.

            — Você foi gratuitamente rude com ela. — Pam comentou. — Isso foi desnecessário. A garota só está tentando nos ajudar.

            Hank sabia que Pam tinha certa razão, mas não poderia dar o braço a torcer:

            — Nós não precisamos dela. Nós temos... Você. Você também é uma sobrevivente.

            Dessa parte da história Helena e Marsellus não sabiam. Pam então fez um rápido resumo para eles, e o homem ficou interessado.

            — Então você deteve essa lista. Há trinta anos. Você venceu a lista da morte. Oh! — E para si mesmo: — Isso é fascinante...

            — Realmente. — Hank concordou. — Fascinante. Intrigante. Temos aqui uma sobrevivente, uma vencedora. Alguém que conseguiu realizar o que nós estamos tentando e não conseguimos. Nos dê uma luz, Pam. O que devemos fazer?

            — Eu não... Não é o momento certo. Não com a Babe em perigo.

            — Mas você não queria ir ajudar a Babe, mãe. — Brody comentou.

            — Eu estava errada, tá legal?! Essa garota precisa de ajuda, eu vou atrás dela. Eu vou atrás de Melissa e nós vamos...

            Pam deu dois passos antes de Brody segurá-la pelo braço. O rapaz falou:

            — Para de fugir, mãe. Para de correr, para de se esconder. Abre o jogo.

            A mulher então abaixou a cabeça e começou a chorar. O momento que ela mais temera, o momento que a aterrorizara desde que Brody nascera, finalmente chegara. O momento em que ela precisaria confessar a pessoa que mais amava no mundo, seu segredo mais obscuro. Confessar ao garotinho que a olhara com admiração e respeito por dezoito anos, que ela não era exatamente quem dissera ser. Que havia uma mácula em seu passado, uma ferida, uma cicatriz que ela escondera de tudo e de todos. Confessar que uma vida fora tirada, que uma pessoa parara de respirar e fora levada desse mundo...

            Por ela.

            — O nome dele era Petit. — Pam começou, e já sabia exatamente onde aquela conversa daria. Oh, Deus, que o meu menino me perdoe...

x-x-x-x-x

            René já estava dormindo no quarto de hóspedes quando Marina esgueirou-se para a cozinha, onde o notebook estava, em cima da bancada. Não demorou mais de dez minutos até que a mulher tivesse contato com a história da lista da morte através de outras pessoas além de René. Se ele estava mentindo, havia toda uma quadrilha de mentirosos crônicos atrás dele.

            Mas Marina realmente achava que o rapaz falava a verdade.

            Apesar de ser uma policial, e acreditar somente em fatos concretos, a oficial tinha um lado espiritual bastante sensível. Ela podia crer em coisas que fugiam do convencional, desde que houvesse base para aquilo. E, aparentemente, havia. Pessoas haviam morrido. Isso era fato. O voo 180, por exemplo, era um fato bastante conhecido, inclusive dela própria. Ver que ele estava relacionado a algum tipo de maldição da qual René estava refém, dava credibilidade à história.

            Mas se isso for verdade, como eu posso ajudá-lo?

            A mulher não sabia direito. Mas o que ela tinha certeza era que não podia ficar esperando algo acontecer à René. Afinal, era seu trabalho protegê-lo. Fosse através de uma causalidade ou uma maldição, vê-lo morto seria uma mácula em sua carreira. Algo que ela não poderia permitir em hipótese alguma.

x-x-x-x-x

            Sean fazia a tatuagem com cautela, mas Babe conseguia ver o nervosismo no rosto dele. O olhar que continuava vagando pelo cômodo, a euforia, o suor, o sangue seco em seu nariz. O lugar que ela escolhera para o desenho era delicado, seu pescoço. Mas o rapaz deveria ser mais experiente, mais profissional. Diabos, eu vim fazer a tatuagem mais importante da minha vida numa espelunca no meio do México com um maldito viciado em cocaína. Isso não pode ficar pior.

            Mas então ficou.

            — Sean?

            O rapaz largou o objeto com a agulha para o desenho com displicência. E então começou a tremer. Babe entendeu rapidamente que o rapaz estava tendo uma convulsão por overdose. A ruiva gritou de desespero, nervosa, e abriu os braços instintivamente. Quando Sean caiu no chão, produziu um baque que fez as barras de ferro do teto caírem. A estrutura estava toda enferrujada, caindo aos pedaços. Como era de se esperar, quando se está na lista da morte. As causalidades sempre se acumulam... Eu devia ter previsto isso.

            Sugar gritou. Babe teve tempo somente de jogá-lo pela janela, antes que uma das barras o acertasse fatalmente. O bicho escapou por pouco. Eles estavam no primeiro andar, ele sobreviveria. Pelo menos ele...

            As barras caíram em quatro lugares: nos dois pulsos e nos dois pés de Babe. As de cima prenderam os membros da ruiva na maca, com os braços abertos. As barras de baixo, por sua vez, prenderam os pés dela lado a lado, com as pernas fechadas. Babe gritou alto ao perceber a quantidade imensurável de sangue que escorria, e viu uma figura conhecida presa no teto, em cima do batente da porta.

            Jesus Cristo.

            A cena seria poética se não fosse trágica. Babe estava literalmente crucificada à mesa de um tatuador, enquanto ele morria aos seus pés, vítima de uma convulsão. A ruiva gritava, chorava, se desesperava.

            — Alguém me ajuda, por favor... Eu não quero morrer.

            E então, quando o barulho dos movimentos frenéticos de Sean cessou, Babe notou o zumbido.

            A máquina com a agulha de desenho ainda estava ligada.

            Sean fez um último movimento, um último espasmo.

            E derrubou a agulha de cima da bandeja de metal no rosto de Babe.

            O objeto foi direto no olho da ruiva. O zumbido então pareceu vir de dentro de sua cabeça, enquanto a máquina perfurava seu olho esquerdo com violência, fazendo muito sangue jorrar. Babe tentava gritar da melhor maneira que podia, mas a dor era lancinante. A garota instintivamente puxou as duas mãos, mas não conseguiu libertá-las. Pior: fez dois rasgos enormes abrirem-se nelas, e mais sangue jorrava.

            — Por favor!

            Babe puxou sua mão esquerda com força, de uma vez só, e abriu-a do centro até o espaço entre o indicador e o polegar. Ela tentou levar seu membro em direção à agulha em seu rosto, mas a mão doía demais, ela não conseguiria erguer qualquer coisa que fosse. Babe imaginava que algum tendão tivesse se rompido, algo que impossibilitasse seu movimento. E então, nos seus momentos finais, uma aula de biologia que ela tivera quando era pequena, veio em sua mente.

            O polegar opositor. Aquele que, juntamente com o dedo indicador, permite o movimento de pinça, responsável por boa parte das atividades manuais do ser humano. Uma das duas coisas que diferencia a raça humana dos animais.

            Babe havia perdido a capacidade de realizar tal movimento, e, pouco a pouco, de maneira dolorosa, tornava-se nada além de um corpo para apodrecer.

            Os movimentos da garota cessaram quando a máquina havia perfurado seu crânio de tal forma que estava atingindo a parte interna, tudo que havia atrás do globo ocular. Seu outro olho permaneceu aberto, cheio de lágrimas. Uma última acabou por escorrer, indo parar em seu queixo.

            E Babe ficou assim para sempre.

            Crucificada.

x-x-x-x-x

            Marsellus esperava na varanda. Dentro do quarto acontecia uma ceninha da qual ele não queria tomar partido. Aparentemente Pam havia matado alguém para recuperar sua vida, e todo um dilema moral se desenvolvera, com Brody questionando a atitude da mãe e Hank fazendo o papel de advogado do diabo. Tudo aquilo era demais para a cabeça do homem. A lista da morte, saber que estava marcado para morrer... Tudo. Ele não conseguiria aguentar. Não sem explodir e acabar por ferir algum inocente. O homem agradecia a Deus (sim, a Deus!) por René não estar ali, ou do contrário Marsellus com certeza já teria descontado sua raiva e frustração nele. Querendo ou não esse merdinha condenou a todos nós.

            Melissa estava na varanda do quarto ao lado. Marsellus tomou um susto quando a viu, mas logo se recompôs. Disse:

            — Não foi atrás da Babe?

            A loira abaixou a cabeça, aparentemente segurando o choro. Falou:

            — Eu não sei onde ela está. Eu não... Tenho ideia.

            Marsellus concordou com um aceno. Ele estava apoiado na beirada da varanda, olhando o céu. Estava quase amanhecendo, e a visão era belíssima. Em baixo dele não havia uma alma viva: todos estavam dormindo. Mesmo que houvesse, as pessoas pareceriam formigas àquela distância. Pelas contas do homem aquele era o décimo quinto andar do prédio.

            — Eu não costumo fazer essas coisas, mas... Não é culpa sua. — O loiro falou, de repente. Melissa virou o rosto, surpresa. Marsellus então continuou: — Olha, não faz essa carinha de mártir, eu tenho nojo disso. Ergue a cabeça. Para de chorar. Se recomponha. Você não é responsável por nenhuma dessas merdas que estão acontecendo. Se você tem um passado fodido ou algo assim, eu não posso fazer nada, mas isso não tem relação com a... Nossa situação. Nós estamos na merda, como você esteve. Mas a culpa não é sua. Então para de dar chilique que isso está me irritando.

            Melissa não soube direito o que dizer. Na verdade, ela não precisou. Como por um golpe do destino, ela percebeu o que aconteceria. A rachadura na sacada começou a subir lentamente, fazendo um zigue-zague, e a loira soube que a estrutura iria cair. Ela estava acostumada a perceber sinais de acidentes. A prática leva à perfeição.

            — Marsellus, sai daí!

            O homem deu um pulo de susto, e então o lugar onde ele estava apoiado ruiu. Hank apareceu na porta da varanda no mesmo segundo, e puxou Marsellus exatamente no momento em que toda a sacada desmoronou. Os dois caíram dentro do quarto de hotel, assustados, e Pam, Helena e Brody olharam para eles com receio. Em seguida foi ouvido um barulho alto de concreto chocando-se contra o chão, quinze andares abaixo. A companheira de Marsellus correu na direção dele e abraçou-o com toda a força do mundo, fazendo carinho em seus cabelos. O coração do homem batia mais forte do que nunca.

            Não demorou muito até que Melissa entrasse no quarto, exasperada. Foi ela quem notou o óbvio:

            — A vez da Babe já passou. Ela não deteve a lista...

            Pam pegou seu celular e discou o número da ruiva com rapidez. Demorou alguns segundos até que o objeto fosse atendido. Do outro lado, a mulher ouviu a voz de um homem:

            — Alô?

            — Alô, eu gostaria de falar com a Babe. Esse é o celular dela.

            — E a senhora é...?

            — Pamela Price. Uma amiga.

            O homem do outro lado pigarreou antes de dizer:

            — Senhorita Price, aqui é o detetive Scooly, da polícia de Cancun. Eu sinto informar, mas a sua amiga faleceu. Nós encontramos o corpo dela num estúdio de tatuagem há alguns metros do...

            A mulher desligou o celular sem ouvir o resto da frase do tal detetive. Ela não precisou dizer nada, e todos compreenderam o recado. Helena pegou sua bolsa e saiu, chamando por Marsellus. Hank tentou impedi-la, mas foi severamente repelido:

            — Não toca em mim. — A mulher disse, tentando soar mais severa do que era capaz de ser.

            Pam ficou sozinha com Brody e Hank. O primeiro a renegava, e o segundo era um completo estranho. A morte vinha com rapidez, e a hora de Brody aproximava-se ainda mais. Agora restava apenas um antes dele. Apenas Helena. Babe morrera, e Marsellus fora pulado. Só mais um acidente e meu filho vai estar vulnerável. Só mais um...

x-x-x-x-x

            René não sonhava com nada. Não tinha pesadelos, menos ainda sonhos belíssimos. Seu sono era pesado, escuro, sem qualquer imagem.

            Mas havia sons.

            O som do vento entrando pela janela aberta, o som dos galhos da árvore ao lado do quarto raspando contra a parede, o som do silêncio. Todos os estímulos externos faziam parte do seu sono, dos seus sonhos, e propiciavam uma experiência única de inconsciência.

            De repente, um barulho diferente.

            Um choro, como o de um bebê.

            O choro de um bichinho.

            Um gato, René pensou de imediato, em seu sonho. O gemido vinha de longe, mas aproximava-se. A cada segundo tornava-se mais audível, como se o pobre bichinho indefeso estivesse chegando mais e mais perto dele. Procurando por ajuda. Procurando por uma ajuda que René não podia dar.

            Acordou.

            Sugar estava na beirada de sua cama, sentado. O bichinho fez um barulho estranho, e pulou direto no colo de René. O rapaz pegou-o sem receio, e começou a fazer carinho em seu pelo.

            — Como você veio parar aqui? E a sua dona?

            O sagui nada disse. Apenas emitia seus sons que pareciam uma espécie de choro e lamento. Sugar escalou os ombros de René e tentou esconder-se atrás de seus cabelos, mas eles eram curtos demais. A cor era a mesma dos cabelos de Babe, mas o comprimento não era. O animal rapidamente percebeu o equívoco, e desceu, chorando mais do que nunca.

            Através daquela comunicação primitiva, René percebeu todo um mundo de coisas. Percebeu que ele não estava tão indefeso e perdido como aparentava. Percebeu que havia pessoas que estavam em situações piores do que a dele. Percebeu que havia pessoas que sofriam sem saber a causa. Que tinham seus sentimentos massacrados como se não valessem nada, e que não ouviam explicações. Que sofriam pelo desconhecido, que sofriam em silêncio, que sofriam no escuro.

            Eu tenho uma luz, ele pensou. Por mais desesperadora que sua situação parecesse, ele tinha uma luz no fim do túnel, um caminho a seguir. Ele podia ser guiado, ele podia encontrar a salvação, o arrependimento, a redenção.

            “Eu sou o Alfa e o Omega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro”, René lembrou-se. Era uma frase que ele havia ouvido em uma missa, era uma frase bíblica. Então subitamente tudo fez sentido, e ele percebeu que havia alguém que se importava com ele. Alguém que o protegeria apesar de tudo, que o guiaria em direção ao paraíso, que o salvaria. Alguém que o amava mais do que qualquer pessoa jamais amaria.

            Deus.


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Notas finais do capítulo

Bom, vamos lá. Só leiam essas notas finais se já tiverem lido o capítulo, porque elas tem SPOILERS.
Começando pela parte mais polêmica: morte de Babe. Eu SEI do carinho que alguns leitores criaram por ela. E eu garanto: eu levei SIM isso em consideração. De verdade. O impacto que a morte da "favorita" de muita gente teria. Os prós e os contras. E decidi que, pelo bem da narrativa, ela deveria morrer. Essa foi uma decisão criativa baseada no que eu acho que será melhor para a fanfiction em si. Eu sei que vou receber comentários raivosos e irritados pela morte dela, mas se isso é necessário para que eu consiga construir uma fanfiction da maneira que desejo, que assim seja. Bobby era um favorito também, e matá-lo foi, até hoje, uma das melhores decisões que tomei na história da minha hexalogia. Espero que num futuro breve a morte de Babe também beneficie a trama, como eu acho que beneficiará.
Sobre René e Deus: minha intenção jamais foi de fazer apologia à qualquer tipo de religião. Eu mesmo NÃO tenho religião, e não tenho intenção de induzir meus leitores a nada. Seria uma baita pretensão, aliás. A aproximação de René com Deus no final do capítulo é puramente um elemento narrativo. Algo que planejei desde o princípio. Sempre pensei no porquê de nenhum dos meus personagens (talvez Cassie da fic 3, mas ela era fanática) questionar sua fé quando encontra-se em tal situação. Não no sentido de perdê-la, mas ao contrário: de encontrá-la! Especialmente os visionários, que possuem essa "maldição". Então René "encontrar Deus" abre um leque de possibilidades E preenche uma vontade minha de algum tempo. Minha intenção não é de ofender religiosos ou ateus, longe disso. É apenas uma subtrama que preciso explorar para desenvolver satisfatoriamente meu personagem. Entendem?
Acho que no mais é isso. Vou tentar postar o próximo capítulo mais rapidamente, mas ele pode demorar também. Enfim, espero que comentem XD