Catarina de Navarro escrita por slytherina, jessica varela


Capítulo 8
Capítulo 8




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Dom Emanuel de Aragão estava possesso. Caminhava com as mãos às costas percorrendo o perímetro de seu amplo gabinete. A notícia de que haviam sido feitas detenções na pequena aldeia, chocou-o. A ordem viera de um colega seu, clérigo, que atuaria como fiscal no Auto de Fé daquele povoado. Pessoas haviam sido arrebatadas de suas casas, e algumas já estavam padecendo os horrores da tortura inquisitorial. Todos os suspeitos de crime de superstição e bruxaria haviam sido presos.

- Catarina! - Um suspiro escapou como um lamento.

Dom Bolaños, seu secretário em assuntos da inquisição, o informara que Catarina de Navarro não havia sido apanhada ainda. Suspeitava-se que ela havia fugido para outro país, quiçá para outro continente. Talvez até para uma terra anglicana, o que apenas confirmaria as suspeitas de que ela trabalhava contra a igreja.

Dom Emanuel ao passar próximo a pesada porta de madeira de lei, esmurrou-a com a fúria dos homens passionais dominados por violenta emoção. "Ela estava tão próxima, ao alcance da mão... como posso tê-la perdido?" Ele pensava e remoía no íntimo o desejo pela jovem que já considerava sua propriedade. Cansado de sua impotência e por não poder decidir o destino de Catarina como queria, resolveu ele mesmo obter informações dos presos sobre o paradeiro de sua amada.

Passou rapidamente pelos longos e estreitos corredores do prédio que abrigava os trabalhos da inquisição naquela cidade. Enquanto tentava ir o mais ligeiro possível, sua mente divagou e ficou acusando-o de um crime imaginário. Ele realmente pensara em Catarina como sua amada? "Não! eu não estou enamorado dessa jovem. Estou apenas preocupado com ela e quero protegê-la dos meus colegas inquisidores, que não serão tão benevolentes quanto eu. Quando eles virem àqueles olhos doces e inocentes... quando virem aquele corpo de sílfide... quando ouvirem sua voz cristalina e pueril... Catarina estará perdida. Eles a tomarão nos braços sem maiores cerimônias. Arrancarão suas vestes como se retira panos imundos de uma imagem de santa..." Dom Emanuel estacou e fechou os olhos, tomado por um langor súbito. O pensamento de tomar uma desnuda Catarina nos braços o encheu de volúpia.

Ele controlou-se e voltou a caminhar, como um bêbado que tenta dominar o entorpecimento alcoólico. Passou pelo primeiro portal com sentinelas. A luz foi diminuindo à medida que adentrava o âmago das câmaras inquisitoriais de tortura. Ao aproximar-se do segundo portal com sentinelas já podia escutar silvos, roncos, grasnados e um som agudo persistente, que dobrava o tom, mas não esmorecia, nem acabava, como um órgão de tubos danificado, que persistia em tocar a mesma nota eternamente. Não havia janelas. O corredor era escuro, apenas visível pela luz mortiça de tochas nas paredes. O som, este agora estava bem forte. Ele poderia facilmente se amedrontar, caso já não tivesse passado por corredores semelhantes nos últimos anos. Um visitante incauto poderia achar que estava em plena selva, cercado por bestas-feras ruidosas, a urrar e resfolegar. E aquele silvo interminável? Quanto mais perto ele chegava das câmaras de tortura, mas ele conseguia distinguir o som. Eram vários sons parecidos, entoados ao mesmo tempo, como um coral. Um coro de mulheres gritando.

O terceiro portal tinha o batente manchado. Ele ficou imaginando porque não ordenaram que um serviçal limpasse aquela mácula, afinal de contas a igreja representava a ordem e os bons costumes. O chão manchado não combinava e até falava contra a pureza da igreja. Ao passar pelo terceiro e último portal, o cheiro invadiu suas narinas. Um cheiro intenso e nauseante que o pegou desprevenido. O manjar que saboreara no jantar subiu até sua garganta. Ele não teve opção a não ser abaixar a cabeça e vomitar tudo, inclusive pelo nariz.

Quando conseguiu se recompor xingou aquele maldito cheiro que impregnava aquele lugar. Ele estava no alto de um palanque. Havia uma escadaria de pedra que levava ao salão principal, cuja visão aérea e completa ele tinha agora. Logo ali embaixo, alguns soldados, clérigos, e outros homens ilustres e influentes perante a igreja, estavam observando o trabalho dos torturadores. Estes senhores estavam impassíveis. Frios, calmos e controlados. Os torturadores de quando em vez olhavam para eles, como a perguntar se o serviço estava ao seu contento. Os nobres homens limitavam-se a assentir com a cabeça, sem emitir palavra, mesmo porque o berreiro, a gritaria e os urros guturais eram ensurdecedores. A acústica daquele lugar amplificava os gritos, fazendo com que fossem escutados nos outros andares.

Dom Emanuel desceu a escadaria e dirigiu-se ao chefe dos soldados para pedir informações. Seus pés deslizaram. Olhou para baixo e viu que sujara a borda de sua batina. O chão estava meloso e grudento. Algo refletia a fraca luz dos candelabros, tochas e fogueiras do lugar. Era como se o chão tivesse vida própria, retorcendo-se, extravasando seiva e agonizando sob seus pés. Dom Emanuel foi tomado de nojo. Aproximou-se do Chefe da guarda e desferiu-lhe violento tapa no rosto, fazendo o outro ir ao chão. Os outros soldados desembainharam suas espadas e já iam usá-las em Dom Emanuel, quando o reconheceram. Limitaram-se a ajudar seu superior a levantar-se do chão imundo.
O Chefe da guarda estava com as vestes sujas de sangue, e seu rosto tinha restos de lodo vermelho. O homem estava furioso, mas conseguiu se controlar, em respeito e temor pela posição hierárquica de Dom Emanuel, mas prometeu a si mesmo se vingar pela afronta.

- Você é o responsável por essa podridão? - Dom Emanuel perguntou sem delongas.

O chefe da guarda franziu o cenho e já ia retrucar que a inquisição era a responsável por tudo, quando uma idéia clareou seus pensamentos.

- O reverendo está se referindo à sujeira da câmara de tortura?

- É claro! Isso aqui cheira a carniça, e a... fezes e urina de animais. Olhe esse chão! Isso parece um esgoto. Eu ordeno que limpe essa imundície imediatamente. - Dom Emanuel gritou encolerizado. Estava com os olhos esbugalhados e suas vestes estavam sujas e imundas, não só da sujeira do lugar, mas do seu próprio vômito.

O Chefe da guarda continuou encarando-o. Ele apenas virou o corpo e olhou para o clérigo que fiscalizava a tortura. Este saiu da sua inércia e aproximou-se de Dom Emanuel. Era Dom Villagrán, o mesmo inquisidor impaciente e audacioso que ordenara a apreensão de toda a população do povoado de Catarina, sem sua aprovação. Dom Emanuel arrependeu-se de não ter desferido o tapa na cara de seu colega religioso, em vez do Chefe da guarda. Entretanto, as sanções pela agressão contra um inquisidor eram severas, sendo muito comum que os próprios sacerdotes acusassem uns aos outros de heresia, apenas para ver seu desafeto ser martirizado.

- Alegro-me em ver que decidiu descer às masmorras da inquisição, caro Dom Emanuel. Como está? - Dom Villagrán o cumprimentou com um movimento da cabeça, sem oferecer-lhe a mão, permanecendo de braços cruzados o tempo todo.

- Eu não estou bem, uma vez que o senhor intrometeu-se em minha alçada, mas não vim para discutir isso. - Dom Emanuel respondeu entre dentes.

- Oh, sim. Veio para reclamar da sujeira do local do Santo Ofício. Observe reverendo que se a câmara fosse um primor de limpeza seria menos torturante. Este ambiente pútrido e hediondo serve bem aos propósitos da inquisição. Veja bem, a maioria das pessoas que aqui chegam não suportam esse lugar, e por vontade própria, acabam colaborando com a igreja. Por isso, esta câmara continuará com sua degradação e repugnância. - Dom Villagrán virou então as costas para Dom Emanuel, encerrando o assunto.

Dom Emanuel inflou o próprio rosto, e ficou mordendo os lábios enquanto tentava controlar a própria cólera. Ele nunca havia sido tão afrontado e desrespeitado. O outro era um inquisidor assim como ele. Era quase intocável, e sabia-se que qualquer que atentasse contra sua vida estaria assinando a própria sentença de morte. Mesmo assim, ele jurou a si mesmo que aquele assunto não estava encerrado. Dom Emanuel suspirou fundo para acalmar seus ímpetos, e se arrependeu tarde demais pelo gesto. Logo mais estava em um canto funesto, vomitando as tripas. O Chefe da guarda deu-lhe as costas também.

Dom Villagrán tratou de concentrar-se no prisioneiro a sua frente que estava sendo torturado com um torno que lhe esmagava os ossos dos pés. O velho homem já havia desmaiado várias vezes durante aquele procedimento, sendo necessária a presença de um médico para fazê-lo acordar e resistir um pouco mais.

O Chefe da guarda interrogou o prisioneiro.

- Então, Dom Juan Del Valle, tem alguma coisa para nos dizer?

O velho homem tinha olheiras profundas, seus lábios estavam pálidos e meio azulados. Sua respiração era curta e difícil. Ele sabia que não duraria muito e que não tinha nada a ser dito àqueles demônios do inferno, mas toda vez que ele lhes dizia não ter nada a contar, as dores nos pés tornavam-se insuportáveis, a ponto de desejar que cortassem seus pés fora, só para não senti-los serem esmagados. O velho homem passou a língua áspera e ressecada nos lábios engelhados. Resolveu falar qualquer coisa, uma besteira, para que o deixassem em paz.

- Dom Ortiz, isso... Dom Ortiz. Ele era... não, ele é... ele é o grão-duque, o chefe supremo...o senhor de todos os comandantes. É isso.

- Chefe? Chefe do que, velho? - O soldado perguntou algo entediado.

- Chefe dos... dos mulçumanos... não é isso que vocês estão atrás...? não é?

- As cruzadas são em Jerusalém, velho caduco. Diga o que queremos saber. Não estamos procurando mulçumanos. - O soldado colocou as mãos na cintura, enquanto mudava sua posição, postando-se diante de Dom Juan.

- Ai, chefe... chefe dos sodomitas bígamos,... heréticos e blasfemos... é o que ele é...

- Seu velho ordinário, você nem ao menos sabe o que está falando, não é? Estamos atrás de bruxas, seu mentiroso asqueroso. Dê-nos os nomes das bruxas. Dê-nos ou iremos queimá-lo vivo como chefe dos bruxos. - O chefe da guarda falou em um tom normal, tentando não forçar demais o prisioneiro, mesmo porque o velho homem estava no fim. Se o aterrorizassem um pouco mais ele sucumbiria de exaustão. Ele ficou mesmo tentado em chamar o médico para ver o preso naquele momento.

- B-Bruxas... Zugarramurdi... Santa Lucía... Michaela... Clariana... - Dom Juan Del Valle ia pronunciar mais um nome "Catarina", não porque quisesse incriminá-la, mas porque sua linha de raciocínio o levou até aquele dia em que contara sobre a inquisição a Catarina. Uma sede terrível o acometeu. Ele precisava de água. Fechou os olhos e comprimiu os lábios, enquanto tentava engolir a saliva. Suores frios o acometeram dando origem a calafrios violentos, que o faziam chacoalhar os pobres ossos esmagados. Dom Juan uivou de dor.

- Carrasco, aperte o torno novamente, ou este bruxo vai tentar usar sua magia para fugir daqui. - Dom Villagrán gritou enérgico.

O carrasco, agente da tortura física, com a cabeça encapuzada, não tanto para preservar sua identidade, como para aumentar o terror no prisioneiro, pois assim não enxergaria sua humanidade, e se suporia sendo torturado por um monstro, abaixou-se para acionar o torno novamente, mas o chefe da guarda segurou sua mão. O carrasco ergueu a cabeça para ele, como a perguntar o porquê daquilo.

- Este prisioneiro está morrendo, ele não vai resistir mais. É melhor chamar o médico. - O chefe da guarda explicou-lhe em voz pausada.

- Obedeça minha ordem, carrasco. Eu sou a lei aqui. - Dom Villagrán manifestou-se imponente e enérgico.

O carrasco obedeceu e acionou o torno que esmagou mais ainda os pés de Dom Juan, a ponto dos ossos quebrados rasgarem as carnes e ficar a mostra, enquanto o sangue jorrava no chão da câmara. Dom Juan deu um urro rouco, que lhe consumiu as últimas forças. Seu peito apertou-se com mais aquela dor excruciante, até sua língua projetar-se para fora da boca. Seus olhos esbugalhados ficaram parados olhando o vazio, enquanto a vida se esvaía do seu corpo.

- Vamos! Reanime-o! - Dom Villagrán vociferou.

O carrasco procurou um balde com água e a atirou com força na cara do prisioneiro azulado e imóvel. Ao ver que não obtivera resultado, o inquisidor virou-se para o chefe da guarda e ordenou.

- Você disse que queria chamar o médico. Vá! Chame-o para reanimar este prisioneiro.

- Agora é tarde demais. Ele já está morto. - O soldado limitou-se a dizer.

- Que excelente inquisidor você é. Matou o prisioneiro quando ele começava a confessar o crime. - Dom Emanuel aproveitou a deixa para alfinetar Dom Villagrán. Acompanhara a sucessão de fatos, e por pouco temeu que aquele velho homem viesse a delatar Catarina. Sim, ele estava a par do parentesco de Catarina com as bruxas de Santa Lucía, mas Catarina era sua, ele não permitiria jamais que Dom Villagrán encostasse as mãos nela.

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