A luz que entrava pelo quarto fez Katniss perceber que o sol já ia alto quando ela se acordou. Já devia ser umas nove horas da manhã. A garota então se apressou em se arrumar para começar o dia, não queria que Peeta pensasse que ela era uma preguiçosa, ele estava sendo demasiado gentil.  Infelizmente, ela se deu conta, teria que permanecer com o mesmo vestido, já que não trouxera mais nenhuma roupa.

A essa altura sua mãe já deveria saber que ela tinha fugido. Katniss sentiu uma pontada no estômago ao imaginar a fúria da mãe.  O que ela faria a seguir, no entanto, Katniss mal se atrevia a prever. Agnes era uma mulher imprevisível.

 Enquanto descia para encontrar o resto das pessoas da casa, Katniss não pode deixar de lembrar a conversa que tivera com Peeta.   O jeito como ele falava ás vezes encantava Katniss e a lembrava do pai.  Não que os dois fossem parecidos. Peter Everdeen era um homem prático, de ação, não de palavras, mas tinha o mesmo sentido de justiça de Peeta.  

Peeta era idealista, inocente até, de um jeito que fizera Katniss duvidar dele desde o inicio.  Mas, por incrível que pareça, a garota estava percebendo que ele era verdadeiro. E isso era uma coisa boa. Não há muitas coisas boas nesse mundo, como Katniss sabia muito bem, por isso, quando encontramos algo assim, devemos nos agarrar com todas as nossas forças nesta pequena centelha de esperança.

  Assim que desceu, percebeu que Peeta estava com um homem do qual Katniss vagamente se lembrava. Haymitch, um dos bêbados mais notáveis da cidade, estava sentado no sofá conversando animadamente com Peeta. Pelo que deu para perceber o assunto era sério. 

Katniss conhecia Haymitch claro. Não é que ela não gostasse do homem. Ela assim como a maioria das pessoas, achava que ele se entusiasmava demais quando bebia. E para ser um pouco sincera consigo mesma, Katniss achava que o homem era um pouco rude demais.   A garota gostaria de entender como um homem, forte e inteligente como Haymitch, poderia ter caído tão rápido na vida.  Mas diferente dos outros, Katniss não lhe dava muita atenção nem o julgava.  Afinal de contas, ela percebera, julgamentos quase nunca são verdadeiros.

Assim que viu Katniss, os dois pararam a conversa e saudaram a jovem.

-Então, a moça já está morando com você é? Rápido assim? – perguntou Haymitch

-Haymitch, por favor, controle-se. Katniss é uma dama. E não, ela não está morando aqui.  Está aqui apenas até acertamos sua... hum, condição.

- Não Peeta, Haymitch tem razão.  Isso é o que todas as pessoas vão pensar quando me virem aqui. Preciso dar um jeito de arrumar algum lugar para ficar, arranjar algum emprego ou voltar para casa.

Haymitch assentiu aprovadoramente para a garota.

- A moça tem coragem, isso se nota.

- Katniss você ficou louca? Como vai voltar para sua casa? Depois do que sua mãe fez com você? Ela provavelmente vai dar carta branca para Snow fazer o que quiser.

- Bom, eu não vou deixar. Pode apostar.

- Katniss...

-Ah vocês são tão bonitinhos, adoro a impetuosidade da juventude. Mas vocês estão se esquecendo de uma coisa. Estamos à beira de uma guerra. Lembra Peeta? Era sobre isso que conversávamos. Desculpe Katniss, mas não podemos perder tempo com sua “situação”

Peeta olha para Haymitch parecendo atordoado. Katniss sabia que o assunto que trazia Haymitch aqui era sério, mas ela estava começando a achar que a coisa poderia ser mais séria do que imaginava.

-O que você quer dizer Haymitch?

- Bom, alguns lideres sulistas estão pedindo a separação dos Estados Unidos caso Lincoln seja eleito.  Parece que eles acreditam que Lincoln, o candidato do partido Republicano, tem carinho demais pelos negros, se é que você me entende.

- Mas a Califórnia... Qual é a posição da Califórnia? –diz Katniss se sentindo atordoada. Ela sabia que poderia haver guerra. Mas essa possibilidade nunca fora tão real como agora.

-Neutra, por enquanto. Mas escute o que lhe digo, a Califórnia vai lutar ao lado do Norte.  Ela não vai se desfazer de um país, não agora que acabou de ser anexada a ele. Além disso, por incrível que pareça, a Califórnia é um dos estados que estão na vanguarda quando o assunto é abolição. Não que isso agrade a aristocracia californiana, claro.

-Então- diz Katniss se virando para Peeta- quando você disse que dessa vez estaríamos do mesmo lado você não estava falando apenas da minha situação não é?

- Não- diz Peeta- Eu estou por dentro de política tanto quanto você.  No entanto, logo depois de chegar de Nova York, estive conversando com alguns lideres da cidade.  Pelo que pude perceber, todos eles estão inclinados a respeitar a decisão de Washington.

-Sim, isso é verdade. Os rebeldes estão se chamando de Confederados. Bom, vamos ver como a situação vai ficar.  Se Lincoln se eleger, e eu realmente torço para que isso aconteça, vai haver uma guerra.

- É melhor estarmos preparados não é mesmo? –diz Peeta olhando apreensivo para os dois.

-Com certeza. E eu vim exatamente falar sobre isso com vocês- diz Haymitch olhando intensamente para os dois -Se antes agíamos na surdina, dessa vez a coisa vai ficar muito pior. Por isso, todo o cuidado é pouco.  

- Sim, faremos o possível.

- Sei. É bom, por que vocês não são muito bons em passar despercebidos não é mesmo?

- O que você quer dizer com isso Haymitch? - Perguntou Katniss olhando intrigada para Haymitch.

-Quero dizer que não devem sair por ai ameaçando capatazes como você fez- A censura nas palavras do bêbado era visível.

-O que?  Haymitch eu não podia deixar Tresh ser surrado daquela maneira- diz Katniss começando a se enfurecer.

Ela estava cansada de ser censurada todo o tempo. Primeiro sua mãe, agora Haymitch.

-Ah bom. E o que adiantou? Agora você está aqui sem ter para onde ir não é mesmo?

-Haymitch, Katniss tem razão. O capataz estava quase matando Tresh.

-Olha, você eu entendo Peeta. Veio do Norte, onde as coisas são diferentes. Mas eu esperava que Katniss soubesse mais sobre sobreviver em São Francisco do que mostrou naquele dia. Katniss, você sabe que se der um passo em falso pode se dar muito mal.

- Eu sei Haymitch. Passei a vida inteira fazendo isso.  Mas se quer saber, uma hora você cansa de fugir.

Haymitch dá um suspiro.

-Ok, tentem ser discretos por favor. Sugiro que treinem tiro. Como você sabe arco-flecha Katniss, treine isso também.  

-Tiro Haymitch? Para que iríamos precisar treinar... Usar essas armas... Quero dizer, não precisamos chegar a tanto não é?

Haymitch tem quase um ar zombeteiro quando responde a Peeta.

-Claro, e quando os Confederados chegarem vamos matá-los com palavras bonitas. Você pretende usar um livro de Jane Austen para convencê-los a aceitar Lincoln como presidente?

- Não se preocupe Haymitch. Eu sei atirar.

Os dois ficaram olhando para Katniss pasmos. Se a situação não fosse séria, Katniss riria da cara de espanto que os dois fizeram.

-Você...sabe atirar?-perguntou Peeta espantado.

Katniss sentiu uma pontada de embaraço. Peeta com certeza achava que ela era uma aberração.

- Eu... bem, aprendi observando.

-Uau! Garota, sério. Se você não fosse mais velha eu juro que pedia para casar comigo agora- Haymitch parecia não caber em si de tanta excitação- Ok, ainda temos algum tempo. Que tal treinarmos um pouco e observamos o que nossa garota das armas pode fazer?

 15 minutos depois estavam os três no pequeno jardim, na companhia de Tresh que se juntara para o treino.  Peeta pegara algumas latas de feijão velhas da dispensa e colocara como alvo.  Haymitch, como veterano de guerra, era quem iria comandar o treino. 

Haymitch emprestou a Katniss sua velha Colt calibre 45.

-Ok, agora se posicione. Deixe sua cabeça levemente inclinada para frente, suas pernas retas e relaxadas, seus braços...

Antes que ele pudesse terminar de falar ouve-se um estampido. A bala atingira o alvo.   Os três homens olhavam abobalhados para Katniss.

-Como você...-Pergunta Peeta meio assustado.

-Sorte eu acho...-  A garota deu de ombros- Você dizia Haymitch?

E o treino se passou assim. Uma hora depois todos perceberam que Katniss não era nenhuma principiante no quesito tiro.  Ela prometeu que ajudaria Peeta com sua pontaria. Tresh por sua vez ficaria responsável pelo arco e flecha. O que Katniss sabia que seria perfeito, já que ele era um homem de porte alto e pesado.  Para alguém como Katniss, pequena e magra, arco e flecha só se tornara uma espacialidade por que ela passava horas treinando e seu arco se ajustava perfeitamente a seu tamanho.

-Então- perguntou Katniss a Peeta no fim da manhã, quando já haviam se cansado de treinar- Se arrependeu de ter uma mulher que sabe atirar na sua casa?

-Está brincando? Quer dizer, no inicio me assustei, mas acho que posso me acostumar com isso.

Katniss riu.  Peeta estava se tornando realmente um grande amigo. O que para ela, era algo muito difícil de encontrar.  

-Ok, garota das armas, Acho que está na hora de comermos alguma coisa.

Mas antes que Katniss possa se levantar, antes que ela pudesse processar qualquer coisa,a  sensação de liberdade que ela tivera a pouco se evapora como num passe de mágica.  A felicidade de Katniss vai embora assim que a figura de uma mulher alta e loira entra como um furacão pela sala de Peeta.

-Então, é aqui que você está Katniss.

Ao ouvir a voz da mãe Katniss se deu conta de que ainda teria uma guerra para travar, talvez mais feroz do que a que estava por vir. Ela ainda teria que vencer sua própria guerra.