O caso de Tresh era grave. Katniss percebeu isso assim que começaram a limpar sua ferida. A bala havia atingido o pulmão. Ele respirava com dificuldade e era difícil estancar o sangue que surgia quando ele expirava. Katniss já tinha visto inúmeros casos como aqueles para saber que a recuperação era quase impossível.

No entanto, as coisas são bem diferentes quando se trata de alguém que amamos. Mesmo sabendo que era inútil, elas retiraram a bala e ficaram o dia inteiro com Tresh na tenda, esperando que a febre cedesse. Mais feridos chegaram, mas as duas não tinham a menor condição de atendê-los. Naquele momento, Tresh era tudo o que existia. E elas passaram o dia inteiro costurando, limpando e consolando o amigo.

–Rue, vá descansar, você acabou de chegar e ainda não descansou nada.- Disse Katniss assim que as duas tinham acabado de colocar mais um pano úmido na cabeça de Tresh. A noite tinha caído rápido e não parecia trazer nenhum consolo.

Katniss viu que a amiga queria protestar, provavelmente não conseguiria dormir. O cansaço acabou vencendo Rue que dormiu numa cama de cobertores improvisados. Katniss sentiu o coração apertar ao ver seus dois melhores amigos assim tão frágeis.

–Você sabe que não pode ficar cuidando dele a noite inteira.

Katniss teve um sobressalto ao ouvir aquela voz no meio da madrugada. Coin estava na tenda, parecia absolutamente cansada, mas diferente do resto das meninas, parecia bem mais disposta.

–Eu sei, mas ele é meu amigo. Não tenho como evitar.

Coin lançou um olhar raivoso a Katniss, a garota não se importou. Se Coin achava que ela estava sendo mimada ou não estava fazendo sua parte o problema era dela, Katniss já fizera mais pelos soldados da união ou os abolicionistas do que qualquer um ali.

–Preciso que você venha comigo- disse Coin friamente- Tenho um assunto importante a tratar, agora que os confederados deram uma trégua.

Katniss não queria sair dali, deixar Tresh era mais do que suas forças poderiam aguentar. Ela mordeu o lábio e ficou segurando a mão do amigo que estava em um sono agitado, cheio de dor e pesadelos. A febre nunca cedia. Coin olhou para a figura de peito enfaixado com desgosto. Katniss não pode deixar de notar o desprezo .

–Katniss, você sabe que ele não vai morrer. Pelo menos não agora.

Uma onda de raiva invadiu a garota. Tresh aparentemente não significava nada para Coin. Quer dizer, não que Katniss não soubesse disso, mas achou que a mulher poderia ser mais sensível. Mesmo contra a vontade, Katniss resolveu que o melhor era seguir Coin.

Enquanto saia da tenda, observou as suas colegas. Todas elas pareciam exaustas, determinadas e extremamente concentradas. Cada uma parecia lidar com dois ou mais feridos ao mesmo tempo. Uma pontada de culpa a atingiu, mas ela evitou pensar nisso. Tresh era o que importava.

No final da tenda ela observou Johanna e Anne que tentavam salvar dois soldados. Johanna dava um gole de conhaque para um enquanto se preparava para retirar sua perna gangrenada. Anne fazia suturas em outro que dava gritos viscerais. Katniss tentou afastar os olhos, sabia que nunca iria se acostumar com aquilo, por mais tempo que passasse ali.

O ar frio da madrugada pegou Katniss de jeito. Era impossível de acreditar que menos de 24 horas atrás Rue não estava com ela e Tresh não estava ferido. De repente ela ficou maravilhada com o jeito com que as coisas podiam mudar em apenas um piscar de olhos.

–Olha, eu sei o quanto aquele garoto significa para você. Você pode ter escondido dos outros, mas não de mim. Sei que ele morava com você e Peeta Mellark.

Katniss anuiu com a cabeça. Não fazia sentido mentir para Coin.

–Só quero que seja mais profissional. Estamos numa guerra. Ele sabia quando se alistou e você também quando veio para cá.

Katniss sentiu um arrepio ao ouvir Coin falando de Tresh no passado.

–Ele sabe, não fale dele como se ele tivesse morrido.

Coin não deu atenção ao comentário e seguiu em frente, então Katniss não teve outra alternativa senão segui-la. As duas acabaram no local mais afastado do acampamento, onde os soldados guardavam seus suprimentos. Ao que parece, pensou Katniss, Coin não tinha o menor medo de ser pega em lugares que seriam proibidos para ela.

– Não se preocupe, eles não nos pegarão aqui?- Disse Coin lendo os pensamentos de Katniss.

–Se você diz. Alguma noticia dos abolicionistas? Desde de que vim para cá não tenho tido contato com eles.

–As coisas tem andado difíceis você sabe. E não é muito seguro receber noticias deles aqui. Mesmo entre os soldados da União existem escravagistas.

Katniss sabia que isso era verdade. Era só observar o olhar de desprezo deles para os colegas negros.

–Entendo. Mas você me chamou aqui. Acredito que tenha uma tarefa para mim.

Coin observou Katniss intensamente como se estivesse medindo o quanto ela estava disposta a se entregar pela causa.

–Na livraria, naquela primeira reunião dos abolicionistas da cidade, você disse que estava disposta a se aproximar de Snow.

O estômago de Katniss deu uma volta. Ela odiava Snow com todas as suas forças. Não havia ninguém que ela detestasse mais do que ele. Snow representava tudo que ela mais abominava. Um homem que se julgava superior a todos, tratava negros e mulheres como propriedades e criaturas de segunda categoria. No entanto...

– Eu disse. Estou aqui, não estou? Perto dele.

–Sim, mas não o suficiente.

– O que você quer dizer com isso?

–Quero dizer que você tem que ganhar a confiança dele. Tem que se aproximar e conseguir um jeito de descobrir tudo o que ele esconde.

–Como vou fazer isso?

–Não precisa ser do jeito que você imagina. Apenas, seja amiga dele- Falou Coin num tom conspiratório- Apenas mostre que está disposta a cair em suas graças. Homens obcecados podem ser muito burros. Ele vai querer te contar tudo, apenas para manter a ilusão de que um dia poderá tocar em você.

Se Katniss estava com raiva pelo modo como Coin tratara Tresh, agora ela estava furiosa. Coin estava simplesmente dizendo para ela agir como aquelas garotinhas afetadas que achavam que podiam conseguir tudo dos homens usando sexo. Pior ainda é quando elas os faziam acreditar em possibilidades que nunca se realizariam. Katniss as desprezava. E, se tivesse que agir desse jeito, seria apenas com uma medida desesperada.

– Se você acha que vou flertar com Snow está muito enganada.

–Então você não está dentro?

–Estou. Mas se for fazer isso, vou fazer do meu jeito.

Coin olhou para Katniss com um misto de descrença e divertimento.

–E como você pretende fazer? – Perguntou Coin, mal contendo um sorriso.

Katniss não tinha a menor ideia, mas sabia que não seria dessa forma.

–Isso é comigo, não se preocupe.

Coin levantou uma sobrancelha.

–Muito bem, não estrague tudo. Ele voltará para cá com o restante das tropas na semana que vem. Esteja preparada.

Assim que Coin saiu do local, Katniss teve que se esforçar para conseguir controlar a respiração e se acalmar. Ela tinha certeza de uma coisa, não gostava de Coin, muito menos confiava nela. Na carta, Peeta mencionara que Haymitch também não. Como ela queria falar com o velho bêbado. Sentia tanta saudades. Se ao menos tivesse como enviar uma carta para ele. Uma carta. Katniss teria que conseguir fazer isso.

Essa decisão a acalmou e ela resolveu voltar para o lado de Tresh. Enquanto caminhava de volta , ela percebeu que a movimentação dentro do acampamento estava ficando cada vez maior e barulhenta. Soldados novos chegavam a todo o momento e os velhos passavam os momentos de trégua, lamentando pelos amigos mortos, ou se preparando para novas batalhas. Era sempre assim.

Eles brincavam uns com os outros, riam, muitas vezes agindo como se nada estivesse acontecendo, como se fosse apenas meninos brincando de soldados. No fundo pensou Katniss, crescer é uma ilusão. Não passamos de crianças tentando encontrar nosso caminho de volta para casa. É duro saber que ele não existe.

O cheiro na tenda fez Katniss retornar a realidade. Era fácil esquecer o cheiro de sangue, morte e dor quando se ficava fora por cinco minutos. Rue ainda estava dormindo, o que deixou Katniss aliviada. Anne verificava a temperatura de Tresh.

– Alguma melhora?

– Infelizmente não ainda - A voz de Anne deixava claro que ela sabia que não haveria melhoras e que ela sentia muito por isso. De alguma forma Katniss odiou isso. Não há nada mais difícil do que encarar uma verdade que não se quer aceitar. Quando essa verdade vinha recheada de gentileza se tornava insuportavelmente irritante.

–Obrigada, deixe comigo- disse mais rude do que pretendia.

Anne apenas saiu, deixando Katniss com Tresh. Katniss resolveu que era uma boa hora para tentar escrever para Haymitch. Ela não sabia bem o que escrever, mas precisava partilhar suas preocupações com alguém. Enquanto velava o sono de Tresh ela pegou um papel e começou a escrever.

Querido Haymitch

Espero que você esteja bem. As coisas por aqui como você deve imaginar estão agitadas. Não tenho tido noticias dos abolicionistas, Snow viajou para o norte para encontrar outras tropas da União e os soldados continuam sua luta árdua. É difícil dizer quem ganhará essa guerra. Às vezes acho que não haverá nenhum lado vitorioso.

Como andam as coisas dentro da cidade? Os boatos que ouvi não tem sido os melhores. Os novos soldados que chegam da cidade relatam coisas horríveis acontecendo em São Francisco. Rue quando veio para cá me contou que a vida tem sido mais difícil ainda para os negros.

Snow voltará na próxima semana e Coin deu- me a incumbência de me aproximar dele. Pretendo fazer isso, mas não dá maneira que ela imagina. A verdade é que isso me apavora. Não sei como chegar até ele. Sei que tenho que fazer isso, mas mesmo assim, essa é uma tarefa que tenho medo de não conseguir cumprir. Sei que você pode me dar algum conselho, você melhor do que ninguém sabe quem ele é e como é ter que lutar contra ele.

Quanto a Coin, sinto que não posso confiar nela. Há algo de maligno, se me perdoa a inocência da palavra, em sua personalidade . Sei disso. Você também sabe. Pelo que Peeta me contou em sua ultima carta, você deixou isso em claro para ele.

Espero receber noticias suas em breve. Não se preocupe comigo. Sei que tenho tornado o fardo da sua promessa para meu pai muito mais pesado, no entanto, a vida às vezes não nos deixa escolha não é mesmo? E Haymitch, por favor, não beba tanto. Odiaria pensar em você dando trabalho a Peeta, ou caindo por ai como se fosse um trapo. Não concordamos quanto a isso, eu sei, mas você vale a pena, é alguém digno. Então, pare de fugir um pouco da realidade. Obrigada por ser um apoio para Peeta como sei que você está sendo. Espero estar com vocês o mais breve possível.

Com amor Katniss

Aproveitando que ainda era muito cedo e os soldados estavam todos consumidos pelo seus próprios afazeres, Katniss foi diretamente para um local aonde meninos de rua costumavam ficar, esperando para roubar soldados ou fazer pequenos serviços como entrega de cartas, medicamentos, qualquer coisa.

– Você - disse Katniss a um dos meninos que estava examinando um objeto recém adquirido- Preciso que leve uma carta para São Francisco.

–E o que você vai me dar em troca? – o menino tinha cabelos ruivos que necessitavam urgentemente serem cortados, era quase do tamanho de Katniss e deveria ter entre 11 e 14 anos. Os olhos eram espertos, de uma esperteza adquirida pela dura vida nas ruas.

–50 doláres e uma corrente de ouro para que traga a resposta.

O menino pareceu espantado, ninguém nunca tinha lhe feito uma oferta tão generosa. Katniss tinha vendido um anel e uma pulseira que usava quando tinha saído da casa de sua mãe. E o colar, odiava. A mãe sempre a obrigava a usar, dizendo que ela se sentiria mais bonita com um pouco de ouro. No entanto, a única coisa que Katniss sentia era um peso enorme em seu pescoço. E não teria que se preocupar com o restante das postagens, ainda tinha mais algum dinheiro guardado caso precisasse enviar outra carta.

Ele prontamente aceitou a missão e saiu correndo rumo a cidade com a carta de Haymitch. Tomara que tenha uma resposta logo, pensou Katniss. Tudo o que ela precisava era dos bons e velhos conselhos do amigo.

Assim que voltou para o lugar em que Tresh estava Katniss achou que estava entrando dentro de um pesadelo. As coisas aconteceram em câmera lenta. Ela não sabia se pressentiu a morte ou ela já estava tão entranhada nela que as duas já se reconheciam como amigas antigas. Quando encontrou novamente com Tresh percebeu que sua cor morena fora substituída por uma palidez mortal. Ele parecia estar dormindo. Katniss sentiu o coração falhar uma batida ao perceber que ele não estava mais com febre. Estava gelado como o mais profundo dos infernos.

–Tresh!- Sussurrou Katniss- Por favor.

–Katniss- Rue se levantou e ao ver a cara apavorada da amiga foi correndo até o irmão.

Ao ver que Tresh já não tinha pulso Rue se debruçou sobre ele. Sem pensar começou a cantar para o irmão, como se ele apenas tivesse com dificuldade de dormir. Ninguém tentou tirá-la dali. Todas já sabiam que ele estava morto e que não havia nada mais a fazer. Os feridos estavam dormindo e o restante das garotas resolveu se retirar da tenda deixando as duas sozinhas ali com Tresh, pela última vez.

– Rue- disse Katniss depois de um tempo- precisamos... precisamos.

Mas o que elas precisavam nem mesmo Katniss sabia. A única coisa em que ela podia pensar era que precisavam de Tresh. Precisavam de suas brincadeiras, do seu jeito alegre e protetor e acima de tudo, de sua nobreza, que mesmo uma vida como escravo não conseguira arrancar.

Mas elas não podiam mais contar com isso. Tinham perdido Tresh. A Guerra acabara de levar o melhor amigo que Katniss já tivera na vida. E enquanto ela se ajoelhou para arrumar o corpo, Rue continuou cantando.