A Vida Secreta Dos Imeros escrita por Kalyla Morat


Capítulo 4
Os Iméros




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Mais um dia se passou pelas minhas contas. Seja lá pra onde estávamos indo era bem longe. Pensei em como estava meu pai. Ele deveria estar furioso e preocupado. Naquele momento me senti culpada, eu deveria ter seguido as regras, mas porque ele não tinha enviado alguém à minha procura? Eles poderiam me encontrar pelo GPS, não poderiam? Ou será que ele só funcionava dentro da fortaleza? Paramos abruptamente. Vozes se aproximaram e alguém abriu a janela:

                - Moça, eu consegui com que você pudesse dar uma volta. Mas escute, você tem que prometer se comportar, se você tentar fugir ou algo assim, não só vai se prejudicar, mas como também vai me prejudicar. Você aceita as condições?

                - Sim. Prometo que não vou fugir.

                - Então escute. Você vai ter um guarda costas. Ele vai com você para todos os lugares.

                - Se você vai me vigiar tudo bem pra mim.

                - Não sou eu quem vou te viajar, é o Vitor.

                - O garoto do mal? – ele riu.

                - É, o garoto do mal, mas ele não é tão mal quanto parece; só dê um tempo pra ele, quando conhecer ele melhor verá que ele tem um bom coração.

                - Acho que posso passar sem isso. Mas, tudo bem, mande o Senhor ranzinza me buscar.

                Bom, minhas tentativas de persuasão não foram assim tão inúteis, eu apostara no bom coração do carinha do bem e tinha saído com a melhor. É verdade que junto com o prêmio vinha um brinde nada agradável, mas o que era um guarda costas perto de passar toda àquela longa viagem trancafiada numa caixa metálica? Era verdade também, que não estávamos falando de qualquer guarda-costas, falávamos dele, do carinha do mal, mas eu podia tentar ganhar sua confiança não podia? Nada que um pouquinho de tempo não resolvesse, na melhor oportunidade eu pegava minhas coisas e fugia de lá.

                  Alguns minutos se passaram enquanto eu conjecturava.  Uma porta que eu nem sabia que existia foi aberta do lado oposto da janela. Nela apareceram dois rostos, os mesmos que eu vira no dia em que fui sequestrada. O mais alto e mais bonito, que eu supunha que fosse com certeza o carinha do bem, começou a falar comigo. Naquele instante eu tive certeza que aquele ditado de que as aparências enganam era verdadeiro:

                - Escuta aqui, se você me causar algum problema, eu acabo com você, esta me ouvindo? Você não vai tentar fugir, não vai tentar nenhuma gracinha, eu acabo com você, entendeu? – Era Victor quem falava, o carinha do mal. Não respondi, apenas acenei um sim com cabeça.

                Eu desci da caixa vagarosamente. Meus ossos faziam crec-crec a cada movimento. Analisei toda a cena diante de meus olhos, fora os dois rapazes que tinham me sequestrado, a caravana contava com mais duas garotas e um homem. Todos eram muito distintos entre si, mas pareciam ter a mesma idade que a minha, por volta dos 16 anos. Perguntei-me como, em tão poucos, conseguiram penetrar na Fortaleza e me tirarem de lá. Ela não recebera esse nome à toa; boa parte da nossa produção tecnológica era destinada a segurança, mas pelo jeito não fora suficiente.

                Todos me olhavam de um jeito estranho como se eu fosse uma aberração da natureza, mas pelo que eu sabia as aberrações ali eram eles. Desde sempre aprendi a temê-los. Eu os imaginava como um dos personagens daquelas lendas antigas que assustavam as aldeias antes da Grande Tragédia. Todos falavam nos Iméros, os habitantes que sobreviveram no mundo exterior, mas ninguém provara sua existência até então. Tudo o que eu sabia era que tinham sobrevivido à guerra, se adaptando à vida do lado de fora e adquirindo com isso poderes especiais. Alguns diziam serem zumbis, outros, aberrações da natureza, pra mim, pareciam com pessoas normais. Talvez fossem vampiros. A verdade é que eles não pareciam se encaixar em nenhuma dessas lendas.

                Estava escuro do lado de fora, mas mesmo assim pude ver a caixa em que eu estivera presa: era um daqueles furgões que serviam antigamente para transporte das mais variadas cargas, me espantava que ele fosse tão silencioso, não era assim que eu os vira na aerotv. Ele estava estacionado em uma planície árida, não havia árvores perto de nós, e nenhum lugar pra onde eu pudesse fugir e me esconder. Algo me dizia que isso era proposital, pelo jeito eles não confiavam em mim, tanto quanto eu não confiava neles.

Caminhamos em silêncio, Victor e eu. Por mais que eu tentasse e soubesse que a melhor estratégia era a paciência, não pude me conter:

- Então, pra onde estamos indo? – disse com a voz mais doce que pude.

                - A madame não queria andar? Então estamos andando. – ele respondeu com rispidez. Toda vez que ele falara comigo até então, tinha sido dessa forma. Ao que parece ele me odiva tanto quanto eu o odiava. Qual seria o motivo de tanto ódio por mim? Eu tinha motivos para não gostar dele porque além de ele ter me sequestrado, ele me tratava estupidamente; mas o que eu fizera a ele?

                - Como você se chama? – tentei de novo e visto que ele nada respondeu, eu insisti mais uma vez embora já soubesse a resposta:

 - Meu nome é Luíza, e o seu? Como é?

            - Escute aqui, eu sei o que você esta tentando fazer, mas fique sabendo que não vai funcionar, não comigo. O Maicon pode ser idiota o suficiente pra cair na sua e ficar com peninha, mas eu conheço o seu tipo. Não vai funcionar então poupe-se.

                Com toda sua rispidez ele desarmou-me, tudo o que eu tinha vontade de fazer era sair correndo dali, me esconder de baixo da cama como eu fazia quando pequena e chorar, chorar até todo o medo e a dor passar. Decididamente eu não tinha mais palavra, mas com certeza ia ter volta, mesmo assim fiquei em silêncio até voltarmos.

Quando chegamos perto do furgão todo o resto da caravana estava sentada em círculo em volta de uma fogueira. Observei atentamente suas formas, a chama bruxuleante formava padrões interessantes em suas labaredas, era encantador.  Mais uma das coisas em que eu estava mantendo contato pela primeira vez, a lista parecia crescer a cada dia: Iméros, canecas antigas, o banheiro portátil, o furgão e agora a fogueira. Eram tantos objetos novos pra mim, coisas que eu só vira nas aerotvs e agora estava vendo no mundo real, era totalmente instigante.

Por um segundo eu pensei que seria obrigada a voltar para o furgão naquele exato momento, mas quando uma das garotas fez sinal para que eu sentasse ao lado dela, fui até o seu lado timidamente, mais por medo que por vergonha, e me sentei. Eu não sabia nada de real sobre aqueles Iméros a não ser que eram carinhas do mal. O que diabos eles queriam comigo? Fiquei atenta a qualquer movimentação. Ela me observava com curiosidade. Seu rosto tinha um formato arredondado e a forma como seu cabelo escorria encaracolado, me lembrava à feição de um dos anjos de Bouguereau.

- Oi. Meu nome é Sofia. Como é o seu?

- Luiza.

- Oi Luiza. Aqueles são Maicon, Diana, Pedro e Miguel. – ela apontava da direita para a esquerda para cada um deles. – Ah, e claro, o Vitor que estava com você. 

- Oi, pessoal! – eu disse recatadamente.

- Oi Luiza- responderam-me em coro.

- Luiza, nós conseguimos convencer o Victor, você vai poder passar as noites conosco enquanto estivermos acordados. – disse Sofia.

- As noites, porque a luz do dia pode machucar seus olhos, você sabe por causa da claridade, você viveu a vida toda no escuro, pode ser incômodo. – completou Maicon enquanto sentava-se do meu outro lado.

Eles começaram a falar de coisas banais como o tempo e suas peripécias. Por mais que eu esperasse não houve nenhuma menção a minha situação, ou ao que me esperava nos dias seguintes, mas mesmo assim, eu escutava cada um deles com curiosidade. Era tudo tão novo pra mim. Estar do lado de fora da Fortaleza já era algo que eu jamais poderia imaginar; conversar com Iméros, então, era de outro mundo. Enquanto eles conversavam sobre os planos para o próximo dia, me peguei a procura de Vitor. Ele parecia fazer o mesmo, mas desviou o olhar assim que nossos olhos se encontraram. Ele parecia ser o único que não estava se divertindo.

- E então Luiza? O que você diz? – Olhei para o rapaz de quem vinha a voz. Eu não percebera quando tinha virado assunto da conversa, mas continuei analisando suas feições. Seu corpo não era diferente de seus colegas, magro e forte, seu rosto quase triangular e sua pele azeitonada somados a olhos negros como a noite formavam um conjunto extremamente singular. Sem poder adiar mais quis saber do que se tratava:

- Desculpe, estava distraída. O que você quer saber? Pedro não é?

- Sim, eu queria saber sobre a Fortaleza. Aposto que vocês têm coisas diferentes por lá. Eu sou fascinado em tecnologia, tem algo que você possa nos contar?

Pensei em algo que pudesse surpreendê-los e que não pudesse ser usado contra nós depois. Eu tinha que conquistar sua confiança se eu quisesse tentar fugir, então pensei em algo inofensivo:

- Nós temos aerotvs. Elas são como as TVs antigas, não é tão fácil de explicar, elas se chamam assim por que as imagens são projetadas no ar, como hologramas, vocês sabem o que são hologramas não é?

 - Sim, mas é claro, então são TVs em três dimensões, só que sem uma tela onde passam as imagens? Elas são transmitidas ao ar livre?

- Isso mais ou menos. Acho que elas se parecem com as peças de teatros, só que sem atores reais, são apenas hologramas.

E assim a conversa continuou. Contei-lhes sobre os vítreos-livros e os vítreos-fones, explicando-lhes a diferença básica deles. Ambos eram feitos a base de vidro, só que enquanto o primeiro tinha sua placa de vidro específica, onde os textos apareciam como em um tablet, o outro podia ser usado em qualquer vidro, contanto que se colasse o kit 7G no vidro.  Todos escutavam maravilhados, e pelo sorriso em seus rostos pude perceber que eles não tinham nada sequer parecido na Iméria. Pude notar que até Victor estava interessado, embora cada vez que ele notava que eu o olhava, fingia estar entediado.  No total, talvez fosse fácil conquistar a confiança de todos, menos a de Victor, esse seria meu maior desafio, e minha missão de agora em diante.

  Foi uma noite muito agradável no final das contas. Quando percebi estava sonolenta. Gostaria de continuar conversando com eles, eu tinha muitas perguntas a fazer, queria saber por quanto tempo ainda viajaríamos ou pra onde estavam me levando, mas como eu conseguira dar um pequeno passo, não queria estragar tudo e passar o resto da viajem trancafiada naquela caixa, então me calei. Sofia e Maicon me desejaram uma boa noite quando fecharam a porta do furgão e estranhamente tive uma noite de sono tranquila.


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