Destino escrita por Eve


Capítulo 23
Capítulo Vinte e Três




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XXIII

 

 

Poseidon e Atena passaram a tarde trabalhando numa espécie de trégua forçada, abdicando dos comentários venenosos e respostas espertas em prol da produtividade na resolução dos problemas que estavam à sua frente na forma daquela papelada aparentemente interminável. Pela primeira vez o silêncio entre eles não era desconfortável, e a mera observação fazia Poseidon se encher de esperanças de que estivessem de algum modo evoluindo naquela relação.

Eles funcionavam melhor na companhia um do outro quando tinham afazeres a cumprir e não havia espaço para o estranhamento e as evasivas de Atena ou as investidas fora de hora de Poseidon. Como casal os dois ainda eram uma completa tragédia, apesar de seus melhores esforços, mas como parceiros naquele ofício de coordenar um feudo pareciam estar se saindo razoavelmente bem.

Poseidon estava terminando de redigir sua primeira correspondência oficial a Ótris; Lorde Cronos havia exigido que toda a vida em Atlântida lhe fosse reportada pelo menos duas vezes por mês, submetendo assim cada pequena decisão que ele tomava no seu pequeno reino aos olhos gananciosos de seu pai. Aquilo o incomodava um pouco, mas por enquanto não havia nada que pudesse fazer sobre isso.

Enquanto isso, Atena concluía com precisão mais um pergaminho, pousando a pena ao seu lado e soprando delicadamente para secar a tinta. Ele tentava evitar observar demais esses pequenos gestos, sabendo perfeitamente que era tolice admirar ações tão corriqueiras, mas Atena tinha um encanto particular que parecia lhe capturar a visão em qualquer circunstância e antes que ele percebesse estava apreciando a maneira que ela se sentava ou afastava o véu do rosto para ver melhor o que escrevia; os movimentos precisos de seu punho correndo a pena pelo pergaminho e a inclinação de sua cabeça enquanto analisava rigorosamente a qualidade do que havia produzido.

Ele não havia tentado dar-lhe quaisquer instruções a respeito do que estavam fazendo, e tampouco Atena pedira sua ajuda. Ela aprontava os comunicados e os ofícios e ele derretia a cera azul e carimbava com o selo que havia herdado de seu tio, tornando cada pronunciamento oficial. Seu emblema era ainda novidade para ele, uma vez que os Valence de Ótris utilizavam um símbolo distinto para diferenciar-se do outro ramo da família. O robusto anel de prata que recebera assim que lhe fora entregue a senhoria de Atlântida era esculpido com um tridente em alto relevo, o símbolo do feudo. Aquele timbre havia passado pelas mãos de cada Valence que já ostentara o título de senhor daqueles domínios.

O brasão da família possuía duas cores: preto e azul-escuro, e seus dois principais domínios as utilizavam de maneira inversa: os estandartes de Ótris eram pretos e ilustrados por uma foice anil, enquanto os de Atlântida envergavam um tridente negro sobre fundo índigo.

Atena lhe entregou o último decreto, que ele leu com cuidado, apenas para registrar que assim como os outros não possuía qualquer falha. A caligrafia de Atena era elegante e fluida, diferente daquelas características à maioria das mulheres. Mesmo sua própria mãe sabia escrever poucas palavras, e Poseidon se lembrava de que em suas poucas assinaturas, sua letra era grande e infantil. Assinou rapidamente o documento com um floreio e Atena o tomou de volta para depositá-lo na pilha de pergaminhos finalizados.

Os dois admiraram por um momento o resultado de uma tarde inteira de trabalho e então se deixaram recostar no espaldar de suas cadeiras. Atena soltou um suspiro de cansaço e testou movimentar seu pescoço para os lados, em seguida juntando as mãos à sua frente e estalando os dedos. Poseidon espreguiçou-se. Já era início de noite, um resquício de luz do sol sumindo no horizonte.

— Quem diria que ficar por tantas horas sentado poderia ser tão cansativo? - Ele questionou-se em voz alta para quebrar o silêncio.

Atena riu de leve.

— Se isso o deixa cansado, agradeça nas suas preces de hoje por não ter que fiar ou tecer. Não aguentaria uma tarde. - Ela comentou displicentemente, como se achasse graça.

Poseidon não concedeu uma resposta ao comentário, apenas anuiu em concordância. Não queria estragar a frágil paz que haviam conquistado ali se engajando em mais uma disputa de egos sem sentido. Apesar da tentativa de provocação, Atena parecia mais confortável em sua presença do que estivera nos últimos dias.

— Uma ajuda aqui seria bem-vinda, contudo. - Ela observou, e Poseidon aproveitou a raridade que era vê-la iniciar uma conversa com ele. - Uma vez que o castelo esteja funcionando plenamente não terei tanto tempo livre para auxiliá-lo. Não gostaria de ter um intendente para fazer isso em seu lugar? - Ela perguntou, fazendo um gesto largo que abrangia o trabalho deles dois. - Sei que a maioria dos senhores feudais os tem, por vezes até mais de um. Então você poderia apenas assinar documentos e se preocupar com assuntos de maior interesse.

Poseidon considerou a sugestão.

— Mas a administração do feudo é de meu interesse. Apesar de ser um trabalho entediante, não acho que possa confiá-lo às mãos de outra pessoa. E intendentes devem ser treinados, não se costuma encontrar um vagueando por aí.

Atena ergueu uma sobrancelha, e ele já havia aprendido a interpretar aquele gesto como um indicativo de que ela considerava o que acabara de ouvir uma tolice.

— Eu posso treinar quantos intendentes precisar. Com certeza algumas das servas que trouxermos para cá terão filhos que podem ficar sob nossa tutela para que sejam educados adequadamente.  

Poseidon admirava o instinto ligeiro que ela possuía para solucionar qualquer problema, mas uma pequena parte sua afirmava insistentemente com a voz de seu pai que aquilo era uma má ideia. Ele sabia exatamente o que Lorde Valence pensaria disso: o truque de uma forasteira para gradativamente retirar o poder de suas mãos e plantar uma influência perigosa no comando do seu feudo. Cronos não dividia a tomada de decisões sequer com seus irmãos ou herdeiros e com certeza morreria antes de se deixar ser influenciado por uma mulher, esposa ou não. Lady Atena afinal não era uma Valence - não de nascimento, pelo menos - e uma das primeiras lições que Poseidon aprendera com o pai fora que qualquer um que não fosse de seu sangue era um inimigo.

Mas ele nunca havia gostado da maioria das lições de Cronos, e uma das coisas que garantira sob o olhar cético de sua senhora fora que não partilhava dos valores invertidos de sua família. A havia escolhido como esposa e para ele esse não era um título vazio. Não pretendia partilhar com ela apenas seu sobrenome, mas todos os aspectos de sua vida. E isso incluía o comando daquele território, para o bem ou para o mal.

— Me parece uma ideia maravilhosa. - Ele por fim concedeu, ganhando com isso um sorriso satisfeito de Atena. Registrou vagamente que ele provavelmente já estaria perdido caso sua esposa estivesse tramando algum plano para controlá-lo. Ele cederia tudo que estivesse em seu poder apenas por mais um daqueles sorrisos.

Por fim, os dois se levantaram de seus lugares e deixaram o escritório abarrotado. Caminharam para a torre onde ficavam seus aposentos e quando estavam apenas a alguns passos de se separarem cada um para seu quarto, Atena virou-se para ele.

— Iniciaremos o dia cedo amanhã. Há cerca de dez categorias de servos que precisamos selecionar apenas para a parte interna do castelo. - Enquanto ela explicava, ia tirando o véu que cobria seus cabelos e soltando habilmente as presilhas que os seguravam em tranças. A cascata de cachos dourados despencou livre pelas suas costas, e ela suspirou satisfeita. Todos aqueles adornos realmente deveriam incomodar depois de um dia inteiro, mas o movimento aparentemente inocente o trouxe à memória a sua noite de núpcias. Aquela havia sido a última vez que ele a vira de cabelos soltos até agora. Atena havia continuado o que dizia completamente alheia à sua distração, e agora aparentemente esperava uma resposta. Tudo o que ele conseguiu dizer foi que ela poderia agir como preferisse.

Atena pausou por um instante, como se finalmente notasse algo estranho em seu comportamento, mas então o momento passou e ela deu de ombros.

— Boa noite, então. Até amanhã. - E deu-lhe as costas, entrando em seu quarto e fechando firmemente a porta atrás de si.

Poseidon soltou a respiração que nem percebera estar segurando, ainda atordoado pela visão que era Atena despindo-se tão displicentemente de uma parte de seu impecável traje. Absolutamente patético, aquela voz no fundo de sua mente declarou, e ele infelizmente não tinha como discordar.

 

 


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