Acordei receoso de que tudo tinha sido um sonho e que eu continuava preso naquele buraco com Katniss, mas assim que abri os olhos pude respirar mais aliviado. Clove já tinha levantado, mas não deixou meu lado, e Peeta e Katniss estavam em volta da fogueira conversando. Sorri para Clove e ela me deu um beijo como cumprimento. Tentei abraçá-la, mas meus braços continuavam entorpecidos pela dor e não me obedeceram. Mal posso esperar para estar curado, parece que esses malditos machucados sempre atrapalham tudo. Levantei-me com certa dificuldade e fomos nos juntar aos tributos do distrito doze no centro do galpão. Peeta e Katniss me cumprimentaram e retomamos a conversa sobre o escape.

“Eu estive pensando, talvez o gerador possa ser alcançado pelos túneis” Peeta disse.

“Mas a arena é enorme, ainda que fosse possível, levaríamos dias para vasculhar tudo. Nossa comida não durará muito mais” Katniss alertou

“E se o gerador ficasse em algum lugar mais óbvio, como na própria cornucópia?” Ele rebateu

“Você acha mesmo que pode estar aqui embaixo?” Perguntei ausente de muito entusiasmo. Mesmo tendo sido salvo por eles, já tinha diminuído bastante minhas esperanças de sair desse lugar.

“Faz sentido, já que este é provavelmente o centro da arena.” Katniss completou o pensamento do companheiro

“Quer dizer que estamos sentados no problema esse tempo todo? E o que você sugere, cavar até encontrar um motor gigante com um botão on/off?” Clove perguntou, nervosa. Ela odeia quando os outros pensam em algo antes dela.

“É uma boa idéia, mesmo depois de você ter feito soar idiota” Ele disse. ”Temos que procurar alguma abertura na estrutura da cornucópia, talvez uma porta ou um alçapão”

“Tem razão, algo bem grande com uma placa na frente: SAÍDA” Replicou Clove ironicamente. Peeta riu e Katniss fez uma careta, mas pouco depois já estávamos todos levantados procurando por cada detalhe no galpão.

A busca demorou pouco mais de três horas até Katnis gritar que tinha encontrado algo. Fomos ao seu encontro e ela apontou para um pedaço da parede próxima ao chão, ode o rodapé era levemente mais escuro que o resto. Peeta agachou-se para empurrá-lo e este abriu como uma gaveta, revelando uma passagem. Ele se virou para nós e levantou uma sobrancelha para Clove, e ela revirou os olhos e lhe mostrou a língua em resposta.

“Não dá pra ter certeza de que leva até o gerador. Pode ser uma armadilha dos gamemakers” Ela tentou desmerecer o buraco

“Não creio que seja, mas podemos conferir antes, se você quiser bastante” Peeta desafiou, sorrindo. Ele pegou uma pedra e jogou-a lá embaixo, fazendo um enorme barulho. Esperou um pouco com os ouvidos atentos e depois aliviou os ombros.

“Viu, não disse? Não é nada de mais e...”

Antes que ele pudesse terminar um som alto de animais correndo retumbou dentro da câmara, e quem estava com os óculos de visão noturna pôde enxergar os bestantes que restavam se aproximando e pulando alto, tentando nos alcançar. Demos todos uns passos para trás e continuamos a observá-los.

“O que você estava dizendo mesmo?” Perguntou Clove, sem tirar os olhos do buraco

“Ah, cala a boca” Katniss respondeu antes de Peeta “O que vamos fazer agora?”

“Bem, se estão todos aí em baixo é porque alguma coisa há para se guardar” Raciocinei. “agora com um número menor deles é bem capaz que consigamos matar todos daqui de cima mesmo.”

“É, mas meu arco foi explodido, caso você não se lembra” Katniss disse.

“Eu ainda tenho as minhas facas” Clove esclareceu. “Mas vai demorar um pouco mais para matá-los todos sozinha. Assim que o primeiro cair os outros vão perceber o perigo e ficar mais atentos. O melhor seria atacar mais de um de uma só vez”

Ela esperou pela aprovação geral, que veio por meio de acenos de cabeça, e lançou duas adagas de uma vez, acertando entre os olhos de um bestante e nas costas de outro. Eles tombaram e os demais logo se afastaram da abertura, como o previsto. Eram sete bestantes vivos agora, mas apenas três continuavam rondando o lugar perto do nosso campo de visão. Clove acertou mais dois e o terceiro acompanhou o resto da matinha que tinha se dispersado. O fundo ficou vazio novamente, mas estava claro que não era nem um pouco seguro descer ainda. Foi decidido que Clove ficaria de guarda, aniquilando as criaturas na medida em que elas fossem voltando. Ela se sentou escorada na parede, atenta. Peeta e Katniss aproveitaram a deixa dos bestantes para ir ao lago buscar água, e eu me acomodei perto de Clove, já que não tinha mais nada a ser feito.

“Vai ser um dia divertido, hoje” Ela disse com ironia. Já estávamos tão acostumados com a escuridão que conseguíamos dizer com certa precisão se era tempo de noite ou de dia do lado de fora.

“É, parece que sim. O que você quer conversar para passar o tempo?” Perguntei

“Como será que está tudo lá fora? Fiquei pensando nisso desde o anúncio do abandono do jogo...”

“Pensei nisso também. Bom, normais as coisas com certeza não estão. Talvez os rebeldes tenham ameaçado apenas o prédio dos jogos. Mas ainda não descartei a possibilidade de ser tudo isso um truque dos gamemakers. Podem estar nos testando apenas.”

“Para isso eles teriam que redobrar a edição das imagens. Depois que fomos abandonados passamos boa parte do tempo questionando o poder da Capital, e isso não é muito bom de ser divulgado em tempos de insatisfação. Fiquei pensando no nosso distrito. Não consigo imaginar ninguém por lá pegando em armas e partindo para uma guerra aberta. E caso acontecesse, acho que seria mais fácil que estivessem lutando do lado do governo.”

“É, verdade. Katniss falou bastante comigo sobre o presidente Snow e o governo, admito que não sou mais tão fiel à Capital depois de avaliar pelo ponto de vista dela.”

“Peeta também comentou sobre isso. Sempre soube que nós, os mais favorecidos, éramos minoria, mas nunca pensei que fosse por descaso da Capital. Achava que era pura incompetência dos demais distritos e só. A própria idéia dos Jogos agora me é vista como um circo ao invés de uma condecoração.” Ela confessou cabisbaixa.

Pude sentir o nojo em suas palavras, agora com certeza ela julgava ter sido um simples brinquedo para todos da Capital. Inadmissível para qualquer um do Distrito 2 era essa idéia. Somos controladores, calculistas, líderes por natureza, e não fantoches, bonecos de cordas. E essa característica pode talvez impulsionar a população do dois a se juntar ao levante, por puro orgulho. Entretanto não creio que eles estejam vendo as coisas da mesma maneira que nós aqui dentro. Clove ficou alerta de repente, os bestantes haviam voltado a rondar o buraco. Ela foi rápida e conseguiu abater mais três, deixando apenas dois vivos. Voltamos ao diálogo como se não houvesse interrupção alguma

“Qual é a primeira coisa que você pretende fazer quando sair daqui?” Perguntei

“Tomar um banho e matar o Snow, o que for possível primeiro.”

“São bons planos. Eu gostaria de voltar para casa, e ver as gravações desses jogos”

“Isso não faz o mínimo sentido, Cato! Com que finalidade você assistiria essa edição, quando já está participando. Você já viu todos os lances relevantes ao vivo.”

“Sei disso, sei disso. Mas tem algumas cenas que eu gostaria de rever.”

“Como quais?” Ela perguntou, olhando confusa.

“Como o primeiro dia na arena, ou quando os gamemakers anunciaram que poderiam ter dois vencedores, ou quando você falou meu nome dormindo, ou quando matei Thresh...”

Ela enrubesceu um pouco e sorriu com as lembranças, antes de continuar o questionário

“É mesmo, acabei não perguntando sobre Thresh. Você foi mesmo atrás dele depois do banquete?”

“Claro que fui! Eu pensei que estava prestes a te perder, a vingança era inevitável.”

Ela ergueu uma sobrancelha. “E como foi? A morte dele quer dizer.”

“Não foi bonita. Mas digo que foi suficiente para me acalmar um pouco, então você pode imaginar como foi. Sei que você se diverte bastante com esse tipo de coisa, mas não quero que você veja a cena depois”

“Por quê?”

“Porque não. Não me sinto bem que você veja o jeito como ele terminou” Menti. Eu não poderia permitir que ela me visse tão irado como naquele momento. Eu nunca tinha perdido tanto o controle como quando lutei com Thresh. Ele tinha tirado de mim o que mais me valia, e naquele momento meu único desejo era tirar absolutamente tudo dele. Ao cortar-lhe a cabeça meu objetivo não era só descontar minha raiva, mas tirar-lhe também a glória de morrer com decência. Teria cortado mais, se não estivesse tão apressado para voltar ao encontro de Clove. E mesmo depois de passado, não consigo imaginá-la me assistindo naquele estado tão insano, tão selvagem.

Imaginei que ela fosse contra argumentar, no entanto ela apenas fez uma careta e seguiu o assunto.

“Vendo assim, talvez eu também me interessasse em ver alguns pedaços”

“Quais são os seus favoritos?” Perguntei tentando soar divertido. Ela sorriu e brincou com uma faca por entre os dedos

“Quando a Glimmer morreu. Quando você acordou depois das teleguiadas. Quando eu acordei depois da pedrada. No fim das contas os Jogos Vorazes não foram tão inúteis assim, dias toleráveis existiram.”

“É isso que são os dias comigo, toleráveis?” Perguntei arqueando uma sobrancelha, e dando um meio sorriso. Ela cerrou os olhos e sorriu de volta

“Aqui dentro sim. Não dá para viver nada cem por cento na arena, estando sempre em estado de alerta”

“Então o que você sente por mim não é cem por cento?” Perguntei agora meio decepcionado

“Não foi o que eu disse.” Ela respondeu rápido. “De qualquer maneira, foi o mais perto de alguma porcentagem que eu já cheguei” Ela admitiu estática como vidro. Suspirei alto, um pouco irritado com a resposta. Resolvi continuar a falar para que ela não percebesse meu aborrecimento

“De fato, Ruthless, você nunca foi conhecida como afetuosa lá onde a gente mora”

“Pensei que você não soubesse quem eu era antes de virmos para cá” Ela disse desconfiada, e tive que revelar que já a conhecia de vista

“Todos os carreiristas sabem algo sobre você, mesmo que seja apenas o nome. Enobária sempre te treinou com afinco e seus pais são importantes também. Era fácil te reparar quando você era a única que atirava lâminas a uma distância assustadora”

“Você era mais famoso no colégio. Era possível escutar as meninas falando de você a seis cadeiras de distância na sala. Mas elas só faziam referências ao loiro alto carreirista, não me lembrava do seu nome antes da colheita” Ela admitiu

Eu iria agradecer pela recordação, mas fomos novamente interrompidos pelos bestantes que restavam, e Clove finalizou o problema com uma velocidade exemplar. Agora era apenas esperar por Peeta e Katniss e depois descer rumo a nossa maior chance de sair daqui.

Eles chegaram pouco depois com o abastecimento de água, e ficaram eufóricos com a notícia do fim dos mutantes. Arrumamos cada um sua mochila e partimos pelo túnel escuro. Fui içado para baixo por eles, já que ainda estava machucado nos braços. Não demoramos muito para achar a enorme estrutura metálica que produzia o campo eletromagnético em volta da arena. Peeta estava certo, o gerador ficava exatamente abaixo da cornucópia, só o que tínhamos que fazer era desligá-lo.

“Alguém aqui entende algo de baterias?” Tentou Katniss

“Vamos só acertar isso logo” Falei impaciente enquanto me preparava para dar um chute. Foi Peeta que me parou

“Você enlouqueceu? Essa coisa pode ter uma descarga elétrica e te matar na hora. Além disso, tem o risco de que ao invés de desativá-lo, você coloque-o para funcionar infinitamente. Melhor darmos uma checada antes de destruir tudo.”

“Tenho uma noção de baterias e essas coisas” Clove se manifestou. Filos realmente tinha passado muito tempo com ela. Jogamos então a luz da lanterna no negócio, enquanto ela avaliava os trilhões de fios coloridos que se cruzavam. Ela levou um bom tempo na avaliação, até ditar o veredicto

“O campo é fragmentado, como um quebra-cabeça. Cada um dos fios comanda uma das “peças”, e assim que desconectados eles criam um buraco na camada. Mas pelo que parece eles não podem ser mudados de lugar todos de uma vez. Vamos ter que ir tentando na sorte”

“O que?” Katniss gorjeou “Eu não cheguei até aqui para morrer num curto circuito. Já passei por muita coisa, agora a gente vai sair daqui de qualquer maneira. Não tem nenhum padrão na fiação?”

“Tem alguns com coordenadas superficiais, tipo F7, K9, mas nada significativo pra gente. A arena provavelmente é mapeada como um tabuleiro de xadrez, mas não sabemos de que lado começou a marcação, tendo em vista que o campo nos parece ser circular. Levaríamos dias para entender o esquema“

E de repente me veio uma idéia iluminada. “Mas espere, e os pódios?”

“O que?” Perguntou Clove

“Os pódios, por onde entramos na arena! Tem um elevador debaixo de cada um, que ficam protegidos também pelo campo magnético assim que saímos de cima deles no primeiro dia. Por isso ninguém nunca conseguiu sair da arena pelo mesmo jeito que entrou. A chave que desativa o campo deles deve estar aí também, não é?”

“De fato existem vinte e quatro fios de cor diferente aqui, enumerados em pares! Ai céus, vamos conseguir sair daqui!” Clove gritou de euforia. Katniss e Peeta suavizaram a expressão e começaram a comemorar também, e com muito cuidado Clove retirou um quatro cabos azuis do motor. Nada aconteceu, nenhuma explosão ou choque, e respiramos aliviados novamente.

Escalamos para a superfície na velocidade da luz e corremos para o campo, e nos posicionamos sobre aqueles que tínhamos entrado tantos dias atrás. Mas o prato permaneceu imóvel debaixo de nossos pés. Os sorrisos de todos se desmancharam instantaneamente. Poderia ter dado errado?

“Droga de arena, a gente nunca vai morrer aqui!” Manifestou-se Peeta indignado, e pulou no pódio, que se abriu bruscamente e o engoliu por inteiro. Katniss soltou um grito desesperada e foi de encontro ao vão onde antes ele estivera, eu e Clove logo atrás. Conseguimos ouvir a voz dele vinda de baixo, dizendo algo incompreensível devido à distância, mas que claramente significava “ainda estou vivo”. Foi o suficiente para nós três retomarmos nossos postos e trocar um olhar cúmplice antes de fechar os olhos e pular. O tubo se abriu imediatamente e desci em queda livre até ser amparado por uma espécie de campo anti-gravitacional, que amenizou a aterrissagem. A porta do elevador se abriu e reconheci a sala onde Piera tinha me arrumado pouco antes do inicio dos Jogos. Estava toda apagada, e mais vazia do que nunca. Abri a porta e fui vagando pelos corredores até encontrar Clove acendendo o interruptor que iluminava todo o andar. Ela correu até mim e me abraçou fazendo meus braços latejarem mais, mas não reclamei da dor. “Falta pouco” Ela murmurou, e fomos procurar por Peeta e Katniss. Eles estavam no corredor seguinte e pela primeira vez na vida, nos abraçamos todos. Estávamos tão felizes que nem mesmo a rixa de Katniss e Clove importava agora.

Fomos explorando o lugar, abrindo cada porta, na esperança de encontrar a saída do labirinto. O prédio agora parecia assombrado, sem nenhum ruído além dos provocados por nossos passos. Encontramos uma escadaria imensa com um portão ao final e identificamos a entrada. Estava trancado, mas o que são correntes para carreiristas e principalmente, sobreviventes dos Jogos Vorazes? Conseguimos liberar a passagem e ao abrir o portão, fomos quase cegados pela luz do dia, que era muito diferente da das lâmpadas daqui de dentro. Pisquei algumas vezes até conseguir enxergar com clareza, e arregalei os olhos com a vista.

Estava esperando por ruas cheias e prédios acesos, pessoas excêntricas, céu movimentado por aerodeslizadores e tudo mais, os pontos marcantes da Capital, mas ao invés disso nos deparamos com uma imensidão de edifícios vazios, e um murmúrio alto retumbando ao longe. As coisas estavam muito piores do que eu havia imaginado, mas depois de sair daquela prisão eu estava disposto a enfrentar qualquer coisa por um momento de paz. Olhamos uns para os outros e constatamos o óbvio: ninguém iria recuar. Agora era pra valer, e onde quer que estivessem os habitantes da Capital, daríamos um jeito de encontrá-los, essa era a última vez que eles jogariam à maneira deles. Daqui pra frente nós escreveríamos as regras, e sem mudanças de última hora. A sorte estava, de verdade, ao nosso favor.