Verdade Ou Desafio? - 9a Temporada escrita por Eica


Capítulo 21
Mudanças




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/212740/chapter/21

Lucas

Eu teria rido de sua forma de subir a escada se sua vida não estivesse correndo risco. Por isso tive que ajudá-lo a subir até nosso apartamento. Durante o trajeto, ficou resmungando e tentando se safar de mim.

- Eu também não gosto de você. Acha que gosto de te ouvir falar o tempo todo de skate? “Eu fiz isso, eu fiz aquilo...”. Que chatice! Você é chato também, Lucas. Você e seus amigos que não veem a hora de comer a sua bunda!

- RETIRE O QUE DISSE!

- Não retiro porra nenhuma! Você e essa sua carinha bonitinha seduz qualquer mané mal intencionado. Te odeio, seu loiro oxigenado! Acha que é fácil ser eu? Você acha? Não sabe pelo que passo. Não sabe porra nenhuma!

- Pelo que você passa?

- Gosto tanto de você... - neste momento, me pareceu que sua voz estava trêmula. - E você não dá a mínima. Me troca por qualquer um. Aceita qualquer um. Qualquer zé mané é melhor do que eu.

- Aaaaaaaah, não vai começar de novo!

O irritadinho soltou-se de minhas mãos e “correu” para o quarto assim que chegamos. Quando parei em frente da porta, vi-o cair sobre sua cama.

- Ai, Rafael. Você é engraçado.

- Eu sou muitas coisas pra você, ao que parece.

Notei a indireta.

Andei na direção de sua cama. Sentei na beirada, próximo de suas pernas.

- Acho que... No fundo... A gente sempre gostou um do outro. Mas nunca soube dizer ou nunca soube de fato. Não sei. Isso é confuso, né?

Silêncio.

- Eu gosto de você. Já falei isso. Você sabe. Por que duvida? Minha palavra não conta? Não sou de confiança? Por que precisa de provas o tempo todo? Por que todo esse medo? Sou assim tão importante pra você? É disso que se trata? É isso?

Olhei para ele. Estava quieto.

- De todas as pessoas, você é a única que eu sentiria falta de verdade se um dia fosse embora. Ficar sem você é difícil, por mais que você seja um chato. Vamos, estou tentando te animar. Não quer que eu fale mais viadagens, né?

Toquei em sua cintura e sacudi-o um pouquinho, até perceber que o idiota ESTAVA DORMINDO!

- RAFAEEEEEEEEEEEEL!

Chutei-o da cama e o derrubei, fazendo-o acordar.

- Que foi?

- Inacreditável! - disse. - Vá dormir e a gente conversa amanhã.

- Tá.

Para minha surpresa, o bêbado obedeceu e voltou para a cama.

As surpresas não pararam por aí. Ao contrário. Nas semanas seguintes, parecia que eu vivia numa dimensão paralela, numa realidade alternativa. Nos momentos em que voltava para casa após o trabalho, encontrava a casa organizada e comida quentinha e prontinha sobre a mesinha da cozinha. Rafael me cumprimentava com um sorriso sem dentes e me convidava a comer. Ele conversava comigo sem falar palavrão, sem usar as expressões que ele costumava usar e, o mais drástico: não fazia mais piadas.

- O que houve com você? - perguntei logo no primeiro dia de mudança.

- Nada.

- Está me assustando...

- Por que? - indagou ele, com o mesmo sorriso misterioso.

- Você não faz essas coisas.

- Já estava na hora, não?

Quando ia assistir TV, ouvia algo engraçado e dava risada. Fazia algum comentário e Rafael não dava a mínima. Não me seguia na piada dizendo outra logo em seguida.

- Tá legal. O que você está tramando? - indaguei.

- Por que sempre acha que existe alguma razão por trás dos meus atos? Não posso simplesmente mudar o meu jeito de ser por querer ser um pouquinho melhor? Serei assim de agora em diante. Não está bom para você? Agora se me dá licença, tenho que acordar cedo amanhã, afinal, eu também trabalho.

Rafael acabou matando muitos de seus hábitos, incluindo um: o de me mandar sms durante todo o dia. Agora eu não recebia mais de dez. Recebia um pela manhã, um na hora de meu almoço e outro após a saída de meu trabalho.

Após a primeira semana de mudanças dramáticas, Juliano percebeu a preocupação em meu rosto e perguntou o que estava acontecendo.

- O mais incrível – continuei meu relato. - é que ele não parece se forçar a nada. Faz tudo com muita naturalidade, o que é muito assustador. É difícil adivinhar o que está tramando.

- E você acha que ele está tramando alguma coisa?

- Claro que está! Ele se chama Rafael! O conheço desde que éramos crianças. Sei que é capaz de muitas coisas.

- Nossa! - riu. - Deve ser uma figuraça mesmo. Que pena que ele não vai com a minha cara, senão podíamos ser amigos. Você disse que ele tem muitos amigos. Deve ser bastante sociável. Ele também deve gostar muito de você. Você também gosta dele?

- Sim.

Após um suspiro, Juliano concluiu:

- Vocês discutem demais. Se curtem um ao outro, não deveriam perder tempo com esse tipo de coisa. Eu não perderia.

- Isso foi uma crítica?

- De certa forma sim. E também um conselho. Se acha que ele trama alguma coisa, diga que pare com o que está fazendo e voltem a ser o que sempre foram. E se curtam bastante, é claro.

Não vou negar que fiquei irritado com o que disse, mas Juliano estava certo. Vivíamos “discutindo” por motivos bobos e deixávamos a curtição de lado. Tendo isso em mente, quando voltei para casa, procurei por Rafael, mas ele não estava.

- Ué!

Tomei banho, troquei de roupa e fiquei na sala, aguardando pela chegada do sumido. Este apareceu uns vinte e poucos minutos depois. Olhei para ele imediatamente.

- Onde estava?

- Na casa do Du.

- Ele está legal?

- Está.

Segui-o até o quarto. Rafael sentou na beirada da cama para retirar os tênis. Trocou-os pelos chinelos. Depois olhou para mim.

- O que foi?

- Vamos esquecer tudo isso? Não me importa mais o que esteja fazendo e nem por que está fazendo o que está fazendo. Vamos deixar tudo isso de lado. Que acha?

Sentei do seu lado e o abracei sem muita frescurite. Em seguida, beijei o seu rosto e depois alcancei os seus lábios com os meus. Ele correspondeu sem demora. Me beijou repetidas vezes e enlaçou meu pescoço com os braços. Caiu sobre o colchão me fazendo cair sobre ele sem me soltar. E sorriu.

- Você é muito gay, Lucas. Sabia? É muitíssimo gay.

- Você também é.

Após uns segundos de silêncio, ele ainda disse:

- Me desculpa.

Surpreendi-me.

- Está se desculpando?

- É. Não espere ouvir isso de novo.

Soltei de suas mãos e me acomodei melhor na cama, deitando ao seu lado. Assim que fiquei numa boa posição, Rafael agarrou-se a mim.

- Aaaaaaah, é tão bom ficar assim com você... Te adorooooo... Te adorooooo... Te adoroooo... Te adoro.

Esfregou a cabeça em meu peito e me apertou mais forte.

- Tem uma coisa que eu não disse... Uma mulher foi no escritório outro dia. Ela disse que lia a mão das pessoas. Eu tive vontade de rir quando ela disse aquilo. Mas mesmo assim pedi que ela lesse a minha. Ela disse que eu vou ser muito feliz, sabe? Falou que eu estou com uma pessoa muito especial para mim. Eu não disse nada ou fiz nada que a fizesse suspeitar disso para dizer tal coisa. Eu fiquei quieto, só a ouvindo dizer. Ela disse que eu não vou sofrer mais. Que meu sofrimento acabou. Perguntei a ela se vou ficar com você por muito tempo. Sabe o que ela disse?

- O que?

- Que eu não preciso procurar mais. Você já está comigo. Era você o tempo todo. Sempre foi.

- O que quis dizer com isso?

- Era pra gente ficar junto desde o início.

- Você acreditou no que ela disse? Quero dizer, acredita mesmo nessa gente que diz ler mãos?

Ele riu, e respondeu:

- Não acredito, claro que não acredito. Mas fiquei feliz com o que ela disse... Adoro você, Lucas.

- Você repete tantas vezes...

Ele levantou o olhar. Encarei seus olhos.

- Porque uma dúzia de vezes não é suficiente. Você ocupa todo espaço aqui dentro e não me deixa respirar. Meu coração tem dificuldade em bater por sua culpa.

- Nossa! Que poético! - ri.

- Posso escrever quantas poesias você quiser. Ou poemas. Não sei a diferença dos dois. Mas posso escrever ambos e nada será suficiente. Nunca é. Queria que fosse eu por um único dia só para não ter dúvidas do que eu sinto. Assim nunca duvidaria de mim.

- Você é quem precisa ser eu por um dia.

- Não, obrigado. Não quero levar cantada da Juliana.

- É disso que estou falando.

- Se acalma. Foi só uma piada.

- Ah, bom.

Ficamos naquela posição por um tempo, sem dizer uma única palavra. Houve um momento em que Rafael ficou tão calado que suspeitei que estivesse dormindo, mas não estava.

No dia seguinte, assim que vi Juliano na loja, agradeci pelo conselho. Ele ficou feliz por saber que estava tudo legal entre a gente. Em minha hora de almoço, liguei para Rafael.

- O que está fazendo?

- Trabalhando e você está me atrapalhando. - disse, de bom humor.

- Sei que você não é tão atarefado.

- Como estão as coisas por aí?

- Bem, bem.

- Amanhã é sua folga, né?

- É.

- Vai preparar a janta pra mim?

- Já está pedindo demais.

- Aaaah, que isso, Lucas? Faz comida pra mim?

- Não.

- Faaaaz?

- Não.

- Faaaaz?

- Não.

Sem eu me dar conta, ficamos nesse frescurê ridículo por quase dois minutos. Por fim, desliguei o celular para poder mastigar minha comida. Hoje o trabalho foi bastante tranquilo. Não teve tanto movimento quanto achei que teria. Por muitas vezes, pude me unir aos meus colegas para conversar enquanto víamos os visitantes passearem pelo corredor do shopping.

Estava bastante calmo e feliz. Finalmente.

Rafael

Na quinta-feira, uns minutos antes de minha hora de almoço, vi Marco entrar no escritório em companhia do seu maridinho.

- Ué! Não trabalha não? - disse.

- Hoje estou de folga. - respondeu Bruno.

Marco fechou a porta e Bruno parou em frente da minha mesa.

- Que está fazendo aqui?

- Vim passear. Estou de passeio pela city. - disse Bruno.

Quando Marco parou ao seu lado e examinou uma papelada que trouxera consigo, B.B começou a beijá-lo. Suas bochechas pálidas ficaram vermelhas. Tive vontade de rir, mas não ia fazer isso com o coitado. Ele ia ficar ainda mais constrangido.

- Fiz uma visita ao Du. Ele parece tão fraquinho. Fiquei com dó.

- É a consequência de se andar a mil quilômetros por hora. - ri.

- O Donatelo comentou que queria fazer uma festa pra ele.

- Esse aí só fala e não faz nada. Já passou uns par de dias e nada.

Enquanto eu conversava com B.B, Marco atendeu a um telefonema. Sua conversa despertou meu interesse. Assim que ele desligou o telefone, perguntei:

- O cara vai ter que vender o clube?

- Isso. Era do pai dele. Como ele não tem interesse em levar o negócio adiante, já que não dá tanto dinheiro quanto antes, achou melhor vender.

- Onde fica esse clube?

- No Campolim.

- É grande?

- É maior que o Pub.

- Sabe o problema dessa cidade? - comentou Bruno. - É que está cheia de clubes e danceterias, mas nenhuma delas é pra gente como a gente. Quando foi a última vez em que vocês entraram numa boate gay?

- CARA! É ISSO! - gritei.

- Que susto! Que foi?

- Uma boate gay!! É disso que essa cidade precisa!! Sorocaba precisa de uma boate gay!!! - disse, batendo a palma da mão na mesa.

- Está falando em...

- Exatamente! Não deve ser assim tão difícil abrir uma boate. Marco, você que entende dessa área burocrática... O que é preciso para abrir uma boate?

- Ah, Mi!! Seria tão legal uma boate gay!

- Não seria legal mesmo, Bruno?

Ele concordou comigo.

- Quer ser dono de uma boate?

- É claro que eu não tenho dinheiro suficiente para investir numa boate, mas se conseguir empréstimo e sócios, a coisa pode andar, não acha? É evidente que eu não entendo nada disso. Se você puder me instruir um pouco... Compartilhar de sua sabedoria...

- Eu nunca vi um show de drags... - disse B.B. - Seria legal a boate ter shows de drags, né?

- Estão falando sério mesmo? Os dois?

- Por que não? - dissemos B.B e eu.

- Por nada... Bem, eu tenho que ir. Tenho que ir para Araçatuba. Vai ficar aqui, Bruno?

- Não, vou fazer um passeio por aí, depois volto pra casa. Além do mais, quero comprar uma roupa nova... A gente se fala, Rafa.

- Tchau.

Donatelo

- Você, Marco e Bruno? - indaguei, quando Rafael contou seus planos.

- Exatamente.

- Marco está nessa também?

- Ele não estava muito certo sobre isso, mas o Bruno o convenceu. - Rafael riu. - O Marco faz tudo o que o Bruno pede. É impressionante.

- E vocês já compraram o clube?

- Estamos negociando. Mas é certo que vamos comprar.

- Todos já estão sabendo disso? - perguntou Eduardo.

Estávamos reunidos na sala de casa. Rafael viera unicamente para contar a novidade.

- Não, vocês são os primeiros. Vou contar pro resto da galera ainda hoje.

- O que o Lucas disse quando você falou que pretendia abrir uma boate?

- “É a maior burrada da sua vida, Rafael. O que você tem nada cabeça? Nada. No que estava pensando? Você não entende de marketing, não entende de negócios, o que você acha que entende, não entende nem um terço. Não vai dar certo. Como Marco e Bruno concordaram com você?”. Ele disse basicamente isso.

- Então, resumindo, ele não concorda com você? - indaguei.

- Não. O que ele não sabe é que nos finais de semana, vou fazer curso exatamente para saber como administrar o negócio. Já falei disso com a minha mãe. Ela me apoiou cem por cento. Meu irmão também gostou da ideia. Fiquei mais tranquilo depois que minha mãe me apoiou. É bom ter o apoio da nossa mãe, sabe? Que se dane o que o Lucas pensa. Tenho grandes expectativas sobre isso. Tenho certeza de que vai dar certo.

- O Hiro vai ficar triste quando não te ver mais no pub. - disse Eduardo. - Vocês não são amigos?

- Vão competir por frequentadores. - disse. - Serão inimigos nos negócios.

- Ele vai entender, ele vai entender.

- Espero que você não se torne aquele tipo de dono de bar que fica atrás do balcão, bebendo e conversando com os outros bêbados com aquela cara de poucos amigos. - brincou Eduardo.

Rafael deu um tapa em suas costas, rindo. Quando percebeu que machucou Eduardo, que ainda estava com as costelas doloridas, pediu desculpa.

- Não posso me esquecer de pedir uma ajudinha ao Sandro...

- Que Sandro? - perguntei.

- O ex do Du.

- Por que? De que tipo de ajuda precisa?

- Ele não é designer de interiores? Será de grande ajuda na decoração do ambiente.

- Acha que ele fará de graça? Vai ter que pagar a ele.

- Claro, claro. Eu tenho pensado em tudo.

- Isso tudo parece loucura. - comentei, após um breve silêncio.

- Ah, não me venha com seu pessimismo também, seu narigudo! Já me basta o que tenho que ouvir dentro de casa. Aquele loiro oxigenado grasnando no meu ouvido... Quando as coisas começarem a andar, não quero ninguém no meu pé me pedindo dinheiro. Não vou dar um centavo a ninguém!

Rafael despediu-se de nós de um jeito cômico. Olhei para Eduardo quando ficamos sozinhos.

- Ele realmente levou essa coisa a sério.

- Se isso o faz contente... - disse ele. - Só tenho medo dele se decepcionar se não der certo. Mas não acho que dará errado, se tanto ele quanto Marco e Bruno fizerem tudo direitinho.

Danilo

Eduardo voltou a trabalhar no final do mês, mais precisamente numa terça-feira de muita chuva. Estava passando pano no chão da recepção quando o vi entrar pela porta de vidro. Fiquei surpreso quando o vi, já que não cheguei a ser informado de sua volta. Muito provavelmente não deve ter contado a ninguém.

- Oi, bom dia.

- Bom dia.

- Que dia horrível! - disse ele, enfiando o guarda-chuva dentro de um saco plástico. - Quase não encontro coragem pra sair de casa.

- Você está melhor?

- Muito melhor. Já consigo me movimentar como antes. Muito incômodo quando seus movimentos são limitados.

Trocamos mais algumas palavras. Depois ele foi para sua sala e eu continuei com a faxina. Lá pelas dez horas da manhã, recebi uma mensagem de Leonardo: “Podemos almoçar hoje?”. Evidentemente que respondi que sim, e aguardei, muito ansioso, a hora da minha saída.

Cerca de uma hora e meia depois, Eduardo desceu a escada quando eu desligava o monitor. Meu estômago roncava de fome e, pela porta de vidro da recepção, vi que o professor acabara de estacionar o carro em frente da clínica. Ao levantar da minha cadeira, ele entrou na recepção, muito charmoso como sempre, e cheiroso também.

- Oi, Le! - disse Eduardo.

- Oi! Tudo bem com você?

Abraçaram-se. Fui o próximo a receber um abraço de Leonardo.

- Eu estou ótimo. Me sinto muito bem.

- Está indo a algum lugar?

- Vou almoçar agora.

- Vou levar o Danilo para comer também. Quer vir com a gente?

- Nãão, podem ir. Não quero atrapalhar.

- Que atrapalhar que nada. Vem. O Danilo disse que vocês almoçam num restaurante aqui perto, né? Vamos pra lá.

Confesso que não esperava a companhia de Eduardo. Queria mesmo é ficar sozinho com o professor, mas eu não daria uma de antipático não o convidando a ir. Leonardo nos levou de carro ao Carmela. Sentamos numa mesa e começamos a comer a comida quentinha. Felizmente sentamos numa mesa longe das janelas. Longe do frio que fazia lá fora (de vez em quando caía uma pancada de chuva furiosa).

- Esse frango está muito bom. - comentou Eduardo, enquanto comia.

- É, estou olhando para ele e parece ótimo. - sorriu Leonardo. - ...E a vida de casado?

- Nos últimos dias, o Donatelo me tratou muito bem. Cuidou muito bem de mim, mas ontem...

- Iiiih, o que o tonto fez? - indagou Leonardo, rindo.

- Ontem disse umas coisas que não gostei. Tentou se justificar, ele sempre tenta dar razão às coisas que diz, mas ele nunca terá razão e sua insistência me deixou com mais raiva. Às vezes ele tem ideias muito absurdas. Absurdas demais. Não sei de onde tira tanta maluquice.

- Você é psicólogo. Deveria compreender o que se passa na cabeça dele.

- Ah, mas eu compreendo. Compreendo muito bem. - respondeu, de modo sarcástico.

- Você o está ignorando?

- Estou. Vou ignorar até minha raiva passar.

- Que tática cruel. Típico de você.

Observei Eduardo levantar os olhos para Leonardo.

- Não sabe que sua indiferença é incômoda? - disse o professor.

- Não faço intencionalmente. Faço porque se eu falar com ele, vou querer brigar com ele. Tem hora que ele me irrita tanto...

- Então está querendo evitar um novo confronto?

- Claro.

- O que aconteceu? - perguntei.

- Às vezes ele retoma velhas ideias. As mesmas ideias que um dia ele se vangloriou em abandonar. Já expliquei para ele uma centena de vezes, mas ele teima.. Ele se declarou pra mim. Falou coisas tão bonitas... O que faço com ele, Leonardo?

- Não me pergunte. Não estou casado com ele. Se vire. O problema é seu. - respondeu, com uma expressão cômica de indiferença.

Eduardo suspirou. Largou o garfo e mexeu na aliança.

- Não achei que teria esse problema de novo... - divagou, olhando para o nada.

- Nunca parou para pensar que talvez o problema não seja ele, mas sim você?

- O que? Que ridículo! Por que o problema seria comigo se eu nunca fiz nada? Em que posso ter errado?

- É curioso que você cause certo efeito nas pessoas...

Não compreendi o que Leonardo quis dizer, e pela expressão de Eduardo, ele também não.

- Estou meio perdido. O que quer dizer?

- Você já deveria ter percebido. - continuou o professor, com um sorriso misterioso no rosto. - Se bem que não é em todas as pessoas... Ou estou enganado?

- Pare de falar sozinho e me explica.

Leonardo voltou o rosto para Eduardo:

- Vocês já discutiram sobre este mesmo assunto e os resultados não foram muito bons, pelo que me recordo. Tente uma abordagem diferente se acha que vale a pena. Do contrário, peça divórcio.

Eduardo pareceu chocado com a sugestão, e eu, surpreso com a risada que Leonardo deu.

- Já sabemos qual é a queixa dele. Então, libere-o e a si mesmo do sofrimento. Terminem de uma vez. A menos que consiga fazer a cabeça dele. Acho que só mesmo uma lavagem cerebral para dar um jeito no cérebro do Donatelo. Ele é muito idiota. Não imaginei que fosse tanto.

Ficamos em silêncio. Voltei a levar garfadas à boca, tentando entender o que aquilo tudo significava. Quando Eduardo deu a entender que continuava aflito, Leonardo disse ainda:

- Resolva isso de uma vez. Se a situação é tão insuportável, dê um fim a isso. Se não é, aguente até conseguir resolver. Meu Deus, agora eu estou com raiva dele. Que cara mais idiota!

- Por que o xinga se agora a pouco disse que a culpa é minha?

- Não é, é que...

Ele parou imediatamente. Passou as mãos na testa.

- Vai ver ele precisa tirar umas férias de você.

Eduardo riu:

- Já tirou. Mais de uma vez, não se lembra?

- Ele não aprende... Ainda não aprendeu... Que burro... Ah! O Rafael disse que comprou o clube junto com o Marco e o Bruno.

- É, verdade. - sorriu Eduardo, finalmente. - Tirando o Marco, os dois estão bastante empolgados.

- Vi umas fotos do clube no Facebook do Rafael. - comentei.

- Já tirou até foto? - indagou Leonardo, surpreso.

- É um clube muito bonito. Parece bastante espaçoso.

Rafael

Meus tão estimados colegas do Facebook demonstraram entusiasmo quando souberam da grande novidade. Tive que responder mais de cinquenta mensagens na minha página e ainda conversar com dezenas de amigos que estavam online no bate-papo.

“Assim vai ser fácil conhecer os solteiros da cidade XD”, comentou Gabriel.

“Quando vão abrir?”, indagou Luís.

“Aaaaaai, quero beijar! Quero beijar!!”, disse Maria Eduarda.

A mensagem mais recente que recebi foi de um carinha que eu a pouco tempo adicionara no Facebook.

“Está online, Abelinha?”, escrevi.

“Ainda não entendi por que me chama assim”.

“Seu nome não é Abel?”

“Aaaah, agora entendi! Você está sempre online?”

“Nem sempre, nem sempre. Às vezes sou obrigado a voltar à realidade”.

“kkkkkkk Me avise quando estiver online. Gosto de falar com você =)”

“A gente ainda não se falou tanto assim.”

“Mas eu gosto”

“Pois é, eu costumo causar essa reação nas pessoas.”

“Vou poder ir à sua boate?”

“Você é da galera gay da cidade?”

“Tem que ser gay pra entrar?”

“Não necessariamente. Pode ser simpatizante. Seremos bastante tolerantes”.

“kkkkkkkkkk”

Conversei com tanta gente que quase me atrapalhei na hora de “distribuir” as respostas. No dia seguinte, esse mesmo carinha entrou no Facebook e voltou a conversar comigo.

“Gostei das suas fotos. Você é tão fofo!”

“Fofo como um panda ou como uma toalha lavada com amaciante?”

“kkkkkkkkkkkkkkkkkk Fofo como um panda.”

“Menos mal. Odiaria ser um objeto que só serve para as pessoas passarem a mão.”

“kkkkkkkkk”

“Eu vi que você é amigo da Maria Eduarda”.

“Sou.”

“Temos uns amigos em comum aqui no Face.”

“Eu já saí com ela. E com a Manu. Te encontrei através da página dela. Quis te adicionar porque te achei bonito. :$ ”

“Que gentileza, amizade. Valeu, valeu.”

“=)”

Dois dias mais tarde, vi que ele estava online de novo e quis bater papo comigo. Desta vez perguntou se poderíamos nos ver pessoalmente. Falei que eu frequentava o Pub. Disse que se quisesse, poderíamos nos encontrar lá, mas ele achou que era tarde demais para ele.

“Não pode ser em outro lugar? Em outro horário? Não gosto de sair muito tarde. Fico com medo.”

“Não esquenta. Estará comigo. Não vai acontecer nada. Se comigo, que sou bêbado, nunca aconteceu, com você não vai acontecer.”

“kkkk Você é bêbado?”

“Para os meus padrões alcoólicos, não me considero. Você bebe?”

“Não curto muito.”

“Então? Vamos dar uma chegada lá no Pub?”

“Tá legal. Mas promete que a gente vai voltar cedo pra casa?”

“Você que sabe.”

Como o Lucas ia trabalhar, e por isso precisava acordar cedo no dia subsequente, não quis me acompanhar ao Pub. Fui sozinho. Tive que me encontrar com a Abelinha no Terminal São Paulo. Era sábado. Já estava escuro. Precisei usar uma blusa de frio por causa do ar gelado. Fiquei ao lado de um quiosque onde deveria esperar Abel. Um tempo mais tarde, vi-o se aproximar pela esquerda.

- Oi.

- Como é que vai, parceiro?

Ele sustentou um sorriso estranho no rosto. Caminhamos até o ponto do ônibus que deveríamos pegar para chegar ao Pub.

- Se não se importa, quantos anos você tem?

- Vinte.

- Não parece.

- Mas eu tenho vinte mesmo. Não estou mentindo.

Subimos no ônibus, descemos num ponto próximo da rua do Pub e lá entramos. Fui direto ao bar e cumprimentei Hiro. Apresentei-o a Abel.

- Que vai tomar hoje, Rafa-san? O de semple?

- Exatamente. E você? Vai tomar alguma coisa?

- Tem suco ou refrigerante? Qualquer bebida que não tenha álcool?

- Tenho Coca.

- Pode ser.

Observei a movimentação do pessoal na pista de dança. Depois corri os olhos pelo bar.

- Você vem pra dançar?

- Mais para beber do que dançar.

- E não gosta de dançar?

- Eu danço, quando me dá vontade. Você dança?

- Quando me dá vontade.

Durante nossa conversa, notei uma coisa estranha em Abel, e resolvi comentar sobre isso:

- Por que você não olha pra minha cara? Tem alguma coisa feia nela ou o problema é a cara toda?

Ele abaixou a cabeça, dando aquele mesmo sorriso estranho.

- Não tem nada de errado com a sua cara.

- Então...? É a centésima vez que olho pra você e você olha pro outro lado.

- Prometo não fazer mais. Prometo.

- Faça o que quiser, só não aja como se eu fosse repulsivo.

- Você não é repulsivo... Eu não consigo olhar pra você por muito tempo porque, porque... Não sei por que.

Franzi a testa:

- Que... Estranho.

Ele riu:

- Também é estranho pra mim. É a primeira vez que isso acontece.

Continuei bebendo. Vez ou outra Hiro parava em frente da gente para dizer algumas palavras. Abel riu bastante das minhas piadas e me fez muitas perguntas. Às vezes ele desviava o olhar de mim, mas felizmente conseguiu controlar um pouquinho essa sua “necessidade” muuito estranha.

Não ficamos nem duas horas no Pub, porque Abel já quis ir embora. Estava muito preocupado com os horários dos ônibus, afinal, depois da meia noite, não passa mais nenhum. Caminhamos pela calçada da rua do Pub em direção a um ponto que ficava na avenida próxima.

- Posso te chamar de Rafa?

- Pode me chamar de Rafa, de sua Alteza Real... Esteja à vontade.

Riu.

Chegamos à avenida. Tivemos que descê-la um bocado para chegar ao ponto. Encostei-me ao poste e olhei para a rua. Poucos carros passavam. Quando olhei para Abel, pareceu-me que estava tremendo um pouco. Levou as mãos às orelhas. Tirei meu gorro do bolso da blusa e vesti sua cabeça, tapando todo seu rosto com ele. Ele levantou-o até a altura dos olhos e olhou para mim.

- Agora esfriou legal, né?

Soltei o gorro. Ele ajeitou-o na cabeça.

- Posso usar?

- Não estava querendo esquentar as orelhas?

Abel

Seu gorro tinha cheirinho de menta. Na verdade, ele todo cheirava a menta.

Rafael

- Olha o busão descendo ali!

Fiz sinal para o motorista. O ônibus parou ao lado da calçada. Subimos. Passamos pela roleta e sentamos num dos bancos do fundo.

- Graças aos Deuses aqui dentro está mais quentinho.

Abel

Pelo reflexo da janela, pude vê-lo sacudir uma mecha de cabelo. Ao virar o rosto para seu lado, vi-o consultar o celular.

Rafael

No instante em que levantei a cabeça e vi-o olhando para mim, este virou a cara numa velocidade incrível. A intenção dele foi tão óbvia que me foi impossível não provocar:

- Agora não tem como escapar!

Peguei seu rosto, obrigando-o a olhar para mim.

- Qual o problema agora, colega? Que foi?

- Nada, nada.

Ele tentou se safar de mim, mas fui insistente.

- Olha pra mim. Olha pra mim.

Ele bem que tentou se segurar, mas começou a rir. Quando fiz que ia segurar seu rosto outra vez, ele recuou para trás e bateu a cabeça na janela.

- Estou sendo atacado. - brincou.

- Azar o seu. O ônibus está vazio. Ninguém vai te ajudar agora.

- Pare. - pediu ele, rindo.

- Você está rindo de maduro. - ri.

- Porque você me obriga.

- Respira fundo, senão vai acabar tendo um ataque do coração. Sabia que podemos morrer de rir?

- Não sabia.

- É, podemos morrer. Respira com calma. Vamos, respira.

Conseguiu controlar-se.

O ônibus nos deixou no terminal.

- Chegamos, parceiro... Espero que meu ônibus já não tenha ido embora.

- Não é aquele que está chegando?

- É! 'Té mais! Tenho que ir!

Ele riu e se despediu, enquanto eu me afastava correndo.

- Conversamos amanhã, nesta mesma hora, neste mesmo canal.

- Boa noite, Rafa! - gritou ele, na distância. - AH! SEU GORRO!

- NÃO DÁ TEMPO DE PEGAR! DEPOIS VOCÊ DEVOLVE!

- TÁ BOM! TCHAU!

- TCHAU!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Verdade Ou Desafio? - 9a Temporada" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.